Autor: Ney Prado - Editora Inconfidentes - 1994
I - Introdução
O Tema
A atual Constituição brasileira completou cinco anos de vigência no dia 5 de outubro de 1993.
Inquestionavelmente é a mais polêmica de tantas quantas regeram o País. Tem sido objeto de agudas controvérsias, antes, durante e depois de sua elaboração.
A esta altura, o Texto Constitucional já recebeu abundantes apreciações de vários segmentos da sociedade brasileira e avaliações críticas dos setores políticos, econômicos e jurídicos, dando-nos um panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos, tanto os positivos quanto os negativos.
Um dado, entretanto, é recorrentemente enfocado. Emerge como uma tônica, constante em quase todas as apreciações: a Constituição de 88 é um documento provocativo, inegavelmente criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exageros em afirmar-se que seu advento provocou enorme insegurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu os negócios e investimentos internos e externos, sem falar nos conflitos sociais que gerou, em níveis jamais experimentados entre nós.
São, com efeito, muito grandes as perplexidades suscitadas pelas inovações da Carta de 1988, Por vezes, sem precedentes na práxis de outros povos; por vezes, repetitivas de antigos preconceitos; por vezes, sepultadas na experiência dos países mais desenvolvidos; por vezes, imprecisas e duvidosas; por vezes, incompletas e indefínitórias, multiplicam-se elas no texto, positivadas em grande quantidade de normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Essas perplexidades têm se refletido no Parlamento, no Executivo e nos Tribunais, bem como nos inúmeros seminários e congressos em que as novas instituições vêm sendo analisadas e debatidas. Há quase um geral reconhecimento, que o nosso Magno Diploma Jurídico trouxe mais dúvidas do que certezas, quanto à interpretação de seus duzentos e quarenta e cinco artigos, somados aos setenta das Disposições Transitórias.
Nossa Constituição possui reconhecidamente vícios e virtudes. Mas necessária ou não, progressista ou retrógrada, boa ou má, bem vinda ou não, estamos diante de um dado de fato inarredável, qualquer que seja a avaliação de seu conteúdo e a inclinação política do intérprete.
"Pode-se tudo criticar a respeito dos constituintes de 1988 e da qualidade de seu trabalho. Justa ou injustamente, correta ou erroneamente, pode-se-lhes apontar deficiência na legitimidade, timidez ante o ativismo agressivo das esquerdas, concessão demagógica ao revanchismo, indisfarçável apego ao estatismo ou desconhecimento sobre o que se passava no mundo. Essas e outras críticas não serão mais que o exercício normal das liberdades políticas recobradas pela Nação e que eles próprios afirmaram no frontispício da Constituição".1
A Retomada das Advertências
Como se sabe, o processo de elaboração da Constituição de 1988 iniciou-se com a criação da Comissão de Estudos Constitucionais, que tive a honra de integrar como seu membro e Secretário Geral.
Essa condição não me impediu de exercer contemporaneamente um dever de crítica quanto ao conteúdo do Anteprojeto dela resultante.
Preocupado com as influências negativas que o Anteprojeto da então chamada "Comissão Afonso Arinos" podería exercer sobre os trabalhos constituintes, dispus-me a sintetizar várias advertências num livro publicado em 1987, sob o título "Os Notáveis Erros dos Notáveis "2.
A crítica ao Anteprojeto, sem atingir os seus notáveis autores, pretendia ser, à época, um guia de elaboração constitucional contendo lições, não minhas, mas da História, que não poderíam ser, de nenhum modo, desconsideradas.
Ao deixarem-se levar pelo preconceito, em vez de praticarem a isenção de espírito; ao se perderem em casuísmos, em vez de valorizarem os grandes princípios; ao sucumbirem à tentação de elitismo, em vez de se aterem à sua missão de estudos, com objetividade e humildade; ao se perderem na utopia das postulações irrealizáveis, em vez de distinguirem corretamente o possível; ao fraquejarem ante a sedução do distributivismo fácil, em vez de abrirem os olhos à dura realidade da limitação dos meios; ao descambarem para a tendência socializante, universalmente em declínio, em vez de valorizarem a livre iniciativa e a economia de mercado; ao se renderem à falácia do paternalismo burocrático estatizante, em vez de fortalecer o pluralismo social; e, finalmente, ao se deixarem levar por um nacionalismo xenófobo e isolacionista, em vez de reconhecerem que o mundo marchava para a interdependência econômica, científica e tecnológica, os notáveis "progressistas" renegaram valores sociais fundamentais, como a tolerância, a isenção, a objetividade, a humildade, a autenticidade, o pragmatismo e sobretudo, a liberdade, todos, necessariamente, incluídos no conceito de progresso.
Não obstante toda nossa expectativa e esperança de que os constituintes de 1988 houvessem aprendido com nossos erros, lamentavelmente, a Carta Constitucional elaborada por eles acabou por repeti-los, quando não agravá-los! Daí, a necessidade sentida de aqui retornar às advertências de então.
As dificuldades metodológicas
Saliente-se, desde logo, que difícil seria, senão quase impossível, abordar um tema tão vasto, complexo e polêmico, sem cairmos, de alguma forma, no subjetivismo e no campo das preferências valorativas individuais.
Para que o trabalho de classificação das virtudes e dos vícios da atual Constituição não desnature sua qualidade, o intérprete deve assumir, tanto quanto possível, uma atitude reflexiva, crítica, desapaixonada, despreconceituosa e impessoal.
Para dar maior objetividade à classificação, que me proponho a apresentar, levarei em conta, não tanto as minhas preferências valorativas, mas os dados objetivos tirados da realidade, à luz das conseqüências, positivas ou negativas que o Texto Constitucional vem provocando no mundo jurídico, político, econômico e social nestes últimos cinco anos de vigência.
Por outro lado, o seu caráter analítico e até casuístico, envolvendo assuntos centrais, não vinculados especificamente ao Direito, está a exigir, por parte do intérprete, uma visão mais ampla e sistêmica do assunto.
Tratando-se de um Texto polifacético, quase sempre de difícil compreensão, os especialistas tendem a simplificá-lo para contê-lo em seus respectivos ramos do conhecimento. Políticos, juristas, economistas e sociólogos observam, sob diferentes ângulos, a mesma realidade, sendo normal que não a compreendam em seu todo.
Por isso, é necessário, como premissa inafastável da tarefa de enfrentar e levar a bom termo o estudo do tema, admití-lo em sua irrecusável multidisciplinariedade. O perigo da abordagem setorial está na ênfase indevida de um aspecto em detrimento do outro, capaz de conduzir a conclusões parciais ou errôneas.
A natureza essencialmente interdisciplinar do tema levou a que se fizesse confluir, para o seu exame, elementos teóricos básicos provenientes não só do Direito Constitucional, mas da Ciência Política, da Sociologia Política, da Sociologia Jurídica e da Economia.
Há que se realçar, ainda, que a diversidade de opiniões sobre a nossa Constituição não decorre apenas da distinta escala de valores ou da extensão, mas da complexidade e profundidade do objeto analisado. Mesmo compartilhando, em tese, idênticos valores, atribuindo-lhes idênticas prioridades, nem todos se atêm a uma metodologia comum. A mesma realidade pode ser vista sob distintos enfoques científicos.
Assim, para os cultores do Direito, a elaboração, redação e interpretação da Constituição é tarefa para os juristas, principalmente os constitucionalistas. Para os políticos, no entanto, os problemas constitucionais não são problemas de Direito, mas do Poder.
Ambos têm razão e ambos se enganam, porque a Constituição é bí-dimensional, por sua própria natureza: é um documento político porque trata do poder e é um documento jurídico porque positiva opções. É, assim, um documento juspolítico.
Há que se salientar, ainda, que qualquer trabalho de interpretação não pode desconsiderar as condições objetivas e subjetivas, internas e externas, existentes no momento histórico em que a Constituição de 1988 foi reinvidicada e elaborada.
Por isso, é bom lembrar que, no plano interno, a idéia de uma nova Constituição surgiu num momento de transição, coincidente com o esgotamento do ciclo autoritário e os movimentos de redemocratização do País: "diretas já" e "constituinte já"!
Nada obstante, à inexistência de ruptura institucional, a justificar necessariamente a convocação de uma Constituinte, ganhou corpo um movimento que se apossou do País; rotulado por muitos de "constitucionalite". Havia chegado o momento de se institucionalizar a democracia, passar o Brasil a limpo, revogar por inteiro a Constituição de 1969.
A idéia dominante era de que a nova Constituição "não deveria marcar somente a volta ao Estado de Direito mas a desmontagem das estruturas políticas, econômicas e ideológicas que foram consolidadas durante a ditadura. Ela não exercería apenas o papel de tradutora dos valores predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais. Não podería ser igual às outras. Nem na forma, nem no estilo, nem nas afirmações e nas formulações fundamentais. O de que se tratava era fazer uma Constituição realmente libertadora do nosso povo, que pudesse garantir ao mais humilde cidadão ter seus direitos totais assegurados, inclusive o direito de simplesmente não aceitar o fato de não ter nada quando alguns poucos têm tudo"?
Em resumo, a expectativa era que a nova Constituição criaria condições para a correção das injustiças sociais, a consolidação da democracia e a retomada do desenvolvimento econômico. Tinha-se a impressão de que, pela primeira vez na história política do Brasil, não existia ninguém, a rigor, que pudesse ser rotulado de antidemocrático ou contrário à convocação de uma Assembléia Constituinte.
Todavia, após o generalizado desejo de mudança do regime, e a necessidade de um novo ordenamento constitucional, percebeu-se que a unanimidade de pensamento era momentânea e aparente.
O problema que se colocava na ocasião não era mais desejar a Democracia mas, sim definí-la. Em outras palavras: todos eram a favor da democracia. Mas... qual democracia?
Na medida em que se tentava buscar o seu verdadeiro significado, os conceitos se multiplicaram, as idéias se contrapuseram, o antagonismo ideológico se manifestou, as pessoas, grupos e partidos foram se tornando perfeitamente identificados e, como decorrência, a unanimidade desapareceu.
No plano externo, na década de 80, a divisão bipolar do mundo começou a dar lugar à fase da multipolaridade. O dogmatismo ideológico passou a ser substituído pelo pluralismo das idéias. Renascia em toda parte o anseio de liberdade, principalmente por aqueles que ainda viviam subjugados pelos regimes autoritários de direita ou de esquerda. Como decorrência dessa nova realidade, muitos Países deram início ao seu processo de abertura democrática. Na América Latina, o vendaval democrático varreu-nos de repente. O novo momento político no mundo teria que influir, como já ocorrera em muitas fases da nossa história, na feitura do nosso texto Constitucional, principalmente no Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais.
Foi nesse contexto democratizante que a chama da liberdade política voltou a brilhar mais forte em todo o Continente e, por via reflexa, também no Brasil.
Mas quando a Constituição foi promulgada em outubro de 1988 "ainda não havia clara percepção das dramáticas transformações mundiais, caracterizadas pelo colapso do dirigismo socialista. Se a gravidez constitucional se tivesse prolongado por um período adicional de nove meses, os constituintes teriam percebido a enorme mudança na ecologia econômica mundial". Em outro estudo, prossegue o mesmo autor: "Uma quádrupla rebelião: a primeira contra o Estado regulador, que destrói a flexibilidade necessária às sociedades industriais modernas; a segunda contra o Estado exator, que aumenta tributos sem cortar gastos e sem melhorar serviços; a terceira contra o Estado empresário, que não pode ser julgado pelos testes de mercado, por operar com monopólios e privilégios; e finalmente contra o Estado previdenciário, que agrava desnecessariamente os custos de mão-de-obra quando seus serviços poderíam ser executados com menor custo e maior eficiência pelas próprias empresas, mediante acordos fiscalizados pelos trabalhadores."
A opção classificatória
Antes de adentrarmos propriamente na análise das virtudes e vícios da nossa atual Constituição, vale recordar que toda obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições e, portanto, de censura. Ainda porque, como lembrou Theodore Roosevelt: "O único homem que jamais comete erros é o homem que jamais fez alguma coisa".
De fato, acertar e errar é uma contingência humana. Seria mera idealização imaginar que os nossos constituintes pudessem acertar e tornar a Constituição uma obra perfeita e acabada. Mas erraram tanto, a ponto de tomá-la quase imprestável.
Todavia, erro e acerto não estão isolados; um induz o outro. No caso do erro, um defeito de percepção acaba levando a outro e assim sucessivamente.
É, pois, necessário que se adote um critério metodológico que permita seguir de perto esse relacionamento entre virtudes e vícios.
Sem dúvida, desde logo, a atitude iniciai do constituinte deve ser considerada. Se ele depositou sua crença num valor particular é possível que toda sua obra seja deformada por essa visão. Assim, a tarefa do analista há de perquerir quais os defeitos originais para, a partir deles, identificar os que deles derivam. Tampouco se pode considerar virtude ou defeito como "categorias puras": virtudes, como até mesmo certos defeitos, podem ser, por vezes, ambivalentes.
Assim, para efeito de classificação, o que realmente importa são as características predominantes de cada virtude e do vício identificado.
A fim de alcançar a desejada objetividade na análise das virtudes e dos vícios e de suas relações consequentes, entendemos ser aconselhável adotar uma classificação, destacando a origem, a forma e o conteúdo de cada uma das etapas a serem analisadas.