Linha fina: Ex-presidente fez críticas a posicionamentos do PT sobre a economia e comentou decisões do ministro Alexandre de Moraes
Chovia fino e ventava gelado quando Michel Temer entrou na sala de reunião de seu escritório, localizado no Itaim, bairro nobre da capital paulista, pontualmente no horário marcado para a entrevista, às 15h30. Enquanto arrumava o terno cinza-claro, o ex-presidente caminhou lentamente para fechar a porta do espaço com carpete bege e adornado com prateleiras de madeira marrom-escura. Na estante, inúmeros livros de Direito, história, filosofia e política. Entre eles, Esquerdas e Direitas, de Joaci Góes, e Homo Deus, de Yuval Harari. Durante os primeiros minutos da conversa, Temer falou num tom descontraído sobre seus dois anos e meio de governo. “É curioso que, seis meses antes de assumir, meu partido, por meio da Fundação Ulysses Guimarães, redigiu o documento Ponte para o Futuro, que continha medidas que passamos a adotar de prontidão”, lembrou Temer, enquanto ajeitava a gravata azul-marinho, combinando com a camisa azul-clara. “Logo nos primeiros dias da gestão, um membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social me disse para aproveitar a impopularidade e fazer as reformas de que o Brasil precisava. Por isso, mexemos em uma série de assuntos que são verdadeiros vespeiros. A questão trabalhista, entre outras.”
Sobre o governo Lula — repleto de integrantes que o chamaram de “golpista” ao suceder Dilma Rousseff depois do impeachment —, limitou-se a tecer críticas pontuais à economia. Entre elas, os ataques do Palácio do Planalto à taxa básica de juros, que é determinada pelo Banco Central independente, sob o comando do presidente Campos Neto. “Não acho útil perder tempo falando dessa questão a todo momento, porque é algo que instabiliza a economia e abala o mercado”, observou. “Acho também que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é uma boa surpresa, mas sinto que ele sofre com resistências internas no próprio governo.”
Ao falar sobre sua única — e polêmica — indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e as sentenças controversas do ministro, Temer voltou ao tom formal, cerimonioso e fechado dos tempos na Presidência. Elogiou o juiz do STF, mas fez uma constatação importante, como jurista, sobre uma das decisões proferidas por Moraes: o caso Filipe Martins, preso mesmo não tendo viajado para os Estados Unidos com Jair Bolsonaro em dezembro de 2022. “Se o ex-assessor da Presidência demonstrou cabalmente que não viajou para os EUA na data alegada no processo, e caso o único motivo da prisão tenha sido esse, a decisão está errada”, constatou, ao ponderar que precisaria consultar os autos do processo. O ex-presidente comentou ainda o inquérito das fake news, que já dura seis anos. E também falou sobre o protesto do 8 de janeiro.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor deixou um legado reformista para o Brasil ao sair da Presidência. Qual é o seu maior feito no governo?
Não citaria uma medida única, mas, sim, um conjunto delas que colaboraram para o Brasil caminhar para a frente. Ao assumir o governo, ouvi de alguém próximo que eu deveria usar a minha impopularidade para mexer em vespeiros que as pessoas costumam evitar. Por isso, fizemos coisas ousadas, como a reforma trabalhista, que não tirou direitos das pessoas como se diz. Estabelecemos um teto de gastos, que equilibrou as contas públicas, e reformamos o ensino médio, uma área bastante ideologizada, além de trabalhar pela queda dos juros e pela redução do tamanho do Estado. Só não avançamos mais, com a reforma da Previdência, porque houve o episódio que envolve o empresário Joesley Batista, o qual acabou impedindo esse avanço. De acordo com um livro, à época, esse senhor chegou a ser instruído pelo então procurador-geral da República [PGR], Rodrigo Janot, a gravar uma conversa comigo, durante uma reunião. Só assim a colaboração premiada com a PGR avançou. Um jornal chegou a publicar que eu renunciaria, o que não aconteceu.
Hoje, Joesley e Wesley Batista são figuras centrais do governo Lula. O que o senhor pensa a respeito?
Cada governo tem as suas escolhas, e este optou por estar com esses empresários. É uma questão de preferência. Sei que há uma ligação de muito prestígio desses senhores com o governo atual. Não há como negar que são grandes empreendedores, por comercializarem proteína animal no Brasil e no mundo, além de várias atividades no país e fora dele. Agora, volto a lembrar da questão da Previdência porque, se aprovássemos a reforma naquele momento, o Brasil teria ganhado fôlego de dois anos e meio.
Qual nota o senhor daria para a terceira gestão do PT?
Não cabe a mim dar notas a governos. O que posso dizer é que, no plano econômico, vejo como problema a insistência nas críticas à taxa básica de juros. Não acho útil perder tempo falando dessa questão a todo momento, porque é algo que instabiliza a economia e abala o mercado. Acho também que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é uma boa surpresa, mas sinto que ele sofre com resistências internas no próprio governo. Por fim, falta a essa gestão uma palavra de harmonia a todo o país. Durante dois anos e meio de ataques que recebi, não saí achincalhando a oposição sempre que ela vinha feroz para cima de mim.
O senhor indicou o ministro Alexandre de Moraes para o STF. O que tem achado do desempenho dele?
Eu o fiz na ciência e consciência de que é um grande constitucionalista. Quando esteve comigo no governo, teve também um ótimo desempenho como ministro da Justiça. Não fosse a coragem dele, acho que não teríamos tido eleições no país em 2022. As pessoas criticam bastante o episódio do 8 de janeiro, com penas pesadas que chegam a 17 anos. É algo que se pode discutir. De todo modo, ele não poderia deixar impune quem destruiu as sedes dos Poderes.
As penas dos manifestantes são compatíveis com o que aconteceu na Praça dos Três Poderes?
A dosimetria é uma questão a que cada um pode fazer críticas. Vejo que a atual postura do Supremo tem sinalizado no sentido de que, num futuro próximo, não é improvável que haja diminuição do tempo que essas pessoas ficarão presas.
O senhor é a favor da anistia aos presos do 8 de janeiro?
É um tema complicado, que exige bastante diálogo. Não sei dizer se o adequado seria a anistia geral ou uma anistia redutora de penas, portanto, um meio-termo. Resolver essa questão ajuda a pacificar o país, que não pode continuar vivendo na radicalização. Quando um novo presidente toma posse, virou moda destruir o que foi feito no governo anterior, na esteira daquela expressão que ficou popular: “herança maldita”. Se continuarmos nesse estado, vamos desmoralizar o Brasil não só aqui, mas também no exterior.
Moraes manteve Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro, preso durante seis meses, mesmo com a apresentação de provas da sua inocência. Ao libertá-lo, manteve ele preso a uma tornozeleira eletrônica. Como advogado e jurista, o senhor concorda com essa decisão?
Não conheço o caso dele totalmente. Sendo assim, precisaria consultar os autos. Imagino que o ministro Alexandre tenha considerado outros elementos ao manter essa prisão. De todo modo, se Martins demonstrou cabalmente que não viajou para os Estados Unidos na data alegada no processo, e caso o único motivo da prisão tenha sido esse, a decisão está errada. No Brasil, lamentavelmente, as prisões preventivas se tornaram um hábito. Em alguns casos, elas foram alongadas quase que indefinidamente e se tornaram praticamente uma condenação. Esse tipo de prisão é um instrumento para prevenir certos fatos, em um determinado período. Quando são exageradas, entendo que não são úteis para o sistema político-jurídico do nosso país.
O inquérito das fake news no STF já dura seis anos. Ele já deveria ter acabado?
Quanto antes acabar, melhor. Soube, recentemente, que o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, falou que a investigação deve se encerrar em breve. Certamente, os demais ministros estão dispostos a liquidar o caso muito proximamente. O tribunal tem feito outros movimentos também, como conceder a progressão do regime ao ex-deputado federal Daniel Silveira. A Corte tem liberado muita gente, já. Ou seja, pouco a pouco, o STF, que impôs penalidades a algumas pessoas, está, agora, libertando-as.
Qual é o caminho para a pacificação do país? Isso está sendo feito?
Certamente, passa pelas autoridades públicas, à medida que elas falarem a palavra “pacificação”. O que aconteceu na Espanha, quando se estabeleceu o Pacto de Moncloa? O governo chamou a oposição e, juntos, criaram um grande acordo. Continuaram divergindo, mas fizeram um pacto pelo país. Sobre se está sendo feito aqui, acho que há uma certa despreocupação em relação a isso. De vez em quando, digo às pessoas: "Se, na próxima eleição, aparecer uma figura política que tenha peso, tamanho, credibilidade e que pregue a harmonia e a tranquilização do país, esse alguém terá grandes chances de obter êxito nesse tema".
O senhor vê uma figura como essa na política hoje?
A safra de governadores eleitos em 2022 é muito boa. Tenho tido contato com eles. O de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, por exemplo, é um sujeito adequadíssimo. Cito também os governadores de Goiás, Ronaldo Caiado; o do Pará, Helder Barbalho; o do Paraná, Ratinho Júnior; e o de Minas Gerais, Romeu Zema; além de Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul. São pessoas muito adequadas e centradas. Acho que o próximo passo da futura eleição vai ser o de moderação para o país inteiro. Isso vai ser útil porque cria respeitabilidade também no exterior.
O senhor acha que o caminho para a pacificação passa por um maior comedimento do Poder Judiciário, em específico o STF?
Não. Acho que ele passa pela aplicação rigorosa do texto constitucional. A nossa Constituição é muito detalhista e trata de vários temas, como a família, a educação, a cultura e a economia. Tudo está na Constituição. Então, todas as questões são levadas ao Supremo de alguma forma. Fui presidente da Câmara três vezes. Sabe quem mais provocava o Supremo? Era a classe política. Quem perdia um projeto no Parlamento ia bater na porta do STF.
Mas os ministros precisam, necessariamente, decidir sobre tudo? E o STF está cumprindo a Constituição?
Se provocado, o Poder Judiciário não pode negar jurisdição. Negá-la é proibido pelo próprio texto constitucional. Entendo que o STF está cumprindo a Carta Magna. Há séculos, o jurista Rui Barbosa disse que o Supremo é o único Poder que tem o direito de errar por último. Ele pode até errar, mas tem competência para isso. Eu, como advogado, posso e vejo alguma decisão do STF como errada. Todavia, a última palavra é dele. E, sendo dessa forma, é também o que dá estabilidade ao sistema.
O senhor conversa com o presidente Lula?
Conversei muito com ele no passado, principalmente quando era presidente da Câmara. Hoje, não.