Fonte: Revista Época - 22/10/18
O jurista Ives Gandra Martins, aos 83 anos, juntou-se às fileiras de apoiadores de Jair Bolsonaro. Não vê qualquer risco de golpe e desrespeito à Constituição num eventual governo do candidato do PSL. “Os militares são hoje escravos da Constituição”, afirma.
1 - Como o senhor se posicionará neste segundo turno entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad?
Eu tenho muitos amigos no PT, mas votei em Bolsonaro e votarei de novo. Num primeiro momento, ele não era meu candidato. Eu ia votar no Alckmin (candidato do PSDB), achava o mais preparado, mas no momento em que vi que as candidaturas se diluíram e a eleição se encaminhava para um debate entre valores morais e o não reconhecimento da corrupção pelo PT, decidi votar no Bolsonaro. Foi na última semana.
2 - Seu voto em Bolsonaro é por convicção às propostas dele ou um voto apenas anti-PT?
É preciso entender que todo nós brasileiros fomos postos diante de uma eleição de exclusão neste ano. Eu voto, sim, por convicção no Bolsonaro. Nem o conheço, trocamos apenas e-mails quando ele era deputado.
3 - Como constitucionalista, concorda com a proposta de uma nova Constituição feita por notáveis?
Não há a menor possibilidade no Brasil de fazer uma Constituição exclusiva, por uma razão muito simples. É preciso que 6o% dos deputados e senadores autorizem isso. Você acha que eles, eleitos pelo povo, vão abrir mão do direito de decidir para criar uma comissão de notáveis? O que se pode fazer são reformas, e muitas delas são fundamentais, como a tributária, a previdenciária e a política. Mas a espinha dorsal da Constituição tal qual temos hoje, de equilíbrio dos Poderes e garantias individuais, é muito boa e não pode ser mudada.
4 - Adversários dizem que um governo Bolsonaro poderia levar a um golpe militar.
De jeito nenhum. Os militares de hoje não têm nada a ver com os militares de 1964. Posso dizer isso porque sou professor emérito há 29 anos da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército. Eu conheço a mentalidade deles. Eles são hoje escravos da Constituição. Quando se fala com eles, dizem que respeitarão o Artigo 142 da Constituição, que dita as três funções das Forças Armadas.
5 - A presença de militares num eventual governo de Bolsonaro não o preocupa?
Não tenho o menor receio. Pelo contrário. Tenho impressão de que haverá mais disciplina, a corrupção vai ser combatida e respeitarão profundamente a Constituição. Eu estive com o general Villas Bôas (comandante do Exército) há cerca de um mês e ele me disse que os militares sabem que são uma instituição do Estado, não são instituição de um governo e que a função deles é garantir os Poderes constituídos. Foi o que sempre lecionei a eles.
6 - Ficou surpreso com resultado das urnas no primeiro turno?
Não. O que tivemos foi uma reação muito forte da sociedade contra o fato de o PT não reconhecer os erros que cometeu, a corrupção que praticou e o ataque às instituições. Haddad acabou herdeiro e prisioneiro da imagem do Lula. Se por um lado herdou parte do eleitorado do Lula, por outro não consegue conquistar novos espaços. Se o PT tivesse feito um mea-culpa no momento da condenação do Lula em segunda instância, talvez pudesse agregar outras forças nesta eleição. Esse discurso de atacar as instituições, dizendo que julgamentos são políticos e que houve golpe, foi bom para unir a militância do PT, mas politicamente desagregador. Depois do segundo turno, vão dizer o quê? Que houve um golpe do eleitor?
7 - E a "onda conservadora" que varreu o país nas eleições para os legislativos, governos estaduais e a Presidência da República?
Faço uma distinção sobre esse assunto. Sempre disse a meus alunos que não há mais esta história de esquerda e direita, e sim de governos eficientes e ineficientes. Muita gente não percebeu nesta eleição a importância da questão da moral para o debate político. Ela veio na esteira do repúdio à corrupção, mas foi além. O povo tomou consciência do que estava acontecendo nos porões do poder. Sem nenhum preconceito contra homossexuais — eu tenho amigos homossexuais —, mas o debate sobre ideologia de gênero, pregando educação sexual para crianças e banheiros unissex, gerou uma onda de valores moralistas na família brasileira. Mas também vejo essa onda como resultado de erros de outras candidaturas. O PT errou ao não reconhecer seus erros, o Alckmin atacou o inimigo errado, o Ciro pulou de um galho para outro — primeiro tentando ser herdeiro do PT, depois indo para cima dos petistas —, e sobre a Marina nem tenho o que falar. Ela teve menos votos do que a deputada estadual mais votada de São Paulo, a Janaina Paschoal.
8 - Como o senhor vislumbra um eventual governo Bolsonaro
Ao contrário dos outros, eu estou mais otimista. Aos 83 anos, muitos me veem como um dinossauro, mas tenho certeza de que ele vai delegar muita coisa. Vai ter uma base razoável no Parlamento, porque a renovação política fez PT, PSDB e MDB perderem força. Ele vai ter a seu lado a bancada agropecuária, a dos evangélicos, a do PSL com 52 deputados. Ele vai ter mais facilidade para negociar. Por outro lado, terá de fazer as reformas tributária, administrativa, previdenciária e política.
9 - E como enxerga um eventual governo de Haddad?
Eu me dou muito bem com Haddad, gosto dele. Mas acho isso muito difícil. Esta não foi uma eleição de projetos e convicções. Ficou uma campanha dos que querem a volta do PT e dos que não querem. Não acredito numa virada eleitoral.
10 - Esta é uma eleição marcada por uma polarização pautada pelo ódio. O país aguenta mais quatro anos dividido?
Eu gostaria de ver uma pacificação nacional depois das urnas, mas não acredito nisso. Ainda vamos ter um período de muita tensão pós- eleição. O tamanho disso vai depender muito do estilo que o presidente eleito vai adotar e da capacidade dele de estabelecer diálogo. Considero esse um dos maiores desafios do próximo presidente. Acho também que, se os projetos começarem a dar certo, principalmente na economia, com geração de empregos e investimentos, a tensão política tende a arrefecer. Só espero que o Brasil dê certo.
11 - O segundo turno está se encaminhando para uma ausência de debates diretos na TV entre Haddad e Bolsonaro. Isso é bom para a democracia?
O Lula, quando liderava as pesquisas, não foi a debates. Fernando Henrique fez o mesmo. Não vejo o Bolsonaro obrigado por duas razões. Primeiro, ele está fisicamente debilitado. Qualquer pessoa que vai para um debate desse tipo sabe que é extenuante, isso sem contar a preparação. Segundo, ele está com uma vantagem confortável. No debate, Haddad tem tudo a ganhar, e Bolsonaro tem tudo a perder. Acho que, a esta altura, é capaz que ele dê uma de Lula e Fernando Henrique.
12 - Não é uma postura distanciada do interesse público e de prejuízo ao processo eleitoral?
A esta altura, o que está em jogo é conquistar o poder. Não vejo problema nesta eleição porque estamos com duas candidaturas bem definidas. O eleitor sabe quem é um e outro e em quem vai votar. Quando a diferença entre os candidatos é pequena, o debate é fundamental. Mas agora a diferença é de 8 milhões de votos, é muito grande.
13 - Uma das propostas defendidas nesta campanha por Bolsonaro é o aumento do número de ministros do Supremo Tribunal Federal. O senhor concorda com ela?
Acho que ele está dizendo isso sem conhecer a realidade do Poder Judiciário. Qualquer alteração desse tipo tem de ser de iniciativa do Poder Judiciário. Tenho a impressão de que o problema do Supremo não é esse. O que teria de haver é uma mudança nas competências do Supremo. O acúmulo de processos existente é uma barbaridade. Defendo que seja apenas uma Corte constitucional, e não de matéria penal.
14 - Bolsonaro não se compromete com a lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República. Como vê essa postura?
Acho que algumas dessas afirmações, no momento em que o ministro da Justiça for escolhido, serão reavaliadas. Isso está na Constituição e dificilmente será modificado. Algumas afirmações são feitas em campanha e, quando dizem respeito ao processo constitucional, têm de se adaptar depois das urnas. Repito que qualquer alteração na Constituição precisa ter 6o% da Câmara dos Deputados e do Senado em duas votações. É impossível.
15 - Como tributarista, o senhor concorda com a proposta do economista Paulo Guedes de recriar um imposto sobre movimentação financeira?
Vamos ser claros. Nenhum ministro da Fazenda faz o que quer sem antes negociar com o Congresso. Todo o projeto de um presidente da República diante de um Congresso novo vai ter de ser negociado. Sou favorável a uma redução do tamanho do Estado, do corporativismo e da carga tributária. Será uma batalha com o Congresso, afinal estamos numa democracia.