Distinção feita pelo STF da hipótese em que a cobrança do imposto deprende de lei complementar da hipótese em que sua cobrança prescinde de prévia lei complementar
O STF, na ausência de lei complementar definindo o fato gerador do imposto, ora vem interditando o exercício da competência tributária pelos Estados, ora vem permitindo essa tributação, sem intermediação da lei complementar.
Ao tempo da vigência do adicional do imposto de renda conferido aos Estados pela Emenda Constitucional nº 3/1993 e extinto a partir de 1º de janeiro de 1996, o STF vinha exigindo a formalidade de lei complementar em obediência ao disposto no art. 146, III, a da CF.
A Lei Paulista de nº 6.352, de 29-11-1988, que instituiu esse adicional de 5% incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos do capital, foi declarado inconstitucional pelo STF, sob o fundamento de que sua cobrança depende de previsão na lei complementar (RE nº 170.005-0-SP, jurisprudência do STF, v. 191/281). Outras legislações estaduais sobre a matéria, igualmente, foram declaradas inconstitucionais.
Entretanto, com relação ao IVV e ao IPVA, apesar de imprevisão na lei complementar reclamada pelo art. 146, III, a da CF, o STF nunca pronunciou a sua inconstitucionalidade. O IVV, a exemplo do adicional do imposto de renda, veio a ser suprimido posteriormente.
Porém, o IVA, apesar dos conflitos de competência tributária entre os Estados por falta de regulamentação em nível nacional, o STF jamais condenou esse imposto deixando para dirimir o conflito quanto a competência se e quando esse conflito ocorrer.
Foi o que aconteceu na disputa que envolveu os Estados na cobrança do IPVA, quando o STF, em sede de repercussão geral, fixou a seguinte tese:
“Decisão. Em continuidade de julgamento, o Tribunal, por maioria de votos, fixou a seguinte tese (Tema nº 708 da repercussão geral): “A Constituição autoriza a cobrança do imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) somente pelo Estado em que o contribuinte mantém a sede ou domicilio tributário, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes (Relator para o acórdão), vencidos os Ministros Mauro Aurélio (Relator) e Roberto Barroso” (RE nº 1.016.605/RG/MG, DJe 16-12-2020).
Tudo indica que o voto majoritário confundiu local de domicílio com o local do registro do veículo que, segundo o Código Brasileiro de Trânsito, pode ser o local do domicílio ou da residência do proprietário.
A tese aprovada, por maioria de votos, cria dificuldades de ordem prática. Pergunta-se, como efetuar o pagamento do IPVA fora do Estado em que é registrado o veículo? O RENAVAN só poderá ser acessado no local do registro.
Apesar da dificuldade apontada o STF permitiu a cobrança do IPVA sem regulamentação por lei complementar.
Entretanto, em relação ao ITCMD, na hipótese do doador domiciliado no exterior, ou ainda no caso de inventário processado no estrangeiro, a Corte Suprema vem declarando a inconstitucionalidade das legislações estaduais por entender necessária a lei complementar como exige o art. 155, § 1º, III do CF, para evitar conflitos tributários.
Nesse sentido a tese aprovada na solução do Tema 825 da repercussão geral:
“É vedado aos Estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo dispositivo constitucional” (RE nº 851.108/RG, DJe 8-4-2021)
Qual, afinal, a diferença entre a exigência contida no inciso III, do § 1º, do art. 155 da CF, voltada especificamente para o ITCND, e aquela contida na letra a, do inciso III, do art. 146 da CF, aplicável à generalidade de impostos?Há que se ponderar que mais de 32 anos se passaram, sem que o legislador nacional editasse a lei complementar faltante, e nada indica que o fará nos próximos anos. Por longas décadas os Estados estão manietados no exercíico da competência tributária deferida pela Constituição.É o caso de conferir aos Estados competência legislativa plena de acordo com as prescrições dos §§ 3º e 4º, do art. 24 da CF, para que os Estados possam instituir o imposto que lhes coube na partilha constitucional de rendas. Sobrevindo a lei complementar, a lei estadual cessará sua vigência naquilo que for contrariado pela lei nacional. O que não pode é o Estado continuar impedido de exercer a sua competência tributária que deriva diretamente do Texto Magno.A regra do art. 155, § 1º, III da CF não pode ser oposta ao princípio de autonomia dos Estados previsto no art. 18 da CF, protegido em nível de cláusula pétrea.Mesmo nas hipóteses de conflitos entre princípios constitucionais – e não é o caso sob exame – um princípio não pode ser interpretado à custa do esvaziamento total de outro princípio. No caso trata-se de um conflito entre simples norma e um princípio que paira acima das normas. Cabe aos Estados impedidos de tributar ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO – perante o STF.
SP, 23-5-2022.
Kiyoshi Harada * - Jurista com 34 obras publicadas. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT. Ex procurador chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.