Narra Plutarco em suas “vidas de homens ilustres” que Teseu (vol. 1º), herói grego que depois de longa jornada e feitos célebres, ia trocando as velhas peças de madeira de seu barco. Os filósofos disputaram se a galeota era a mesma ou já não era mais o barco de Teseu.
Assim é nossa pobre Constituição Federal. Orgulho e superação da ditadura, o diploma serviu de modelo de abertura democrática. Mas, tem sido tantas vezes conspurcada que já não mais é a Constituição libertária que, orgulhosamente, Ulisses Guimarães rotulou de cidadã.
O Executivo encaminha PEC que dispõe sobre o pagamento de precatórios (creio que se cuida da sexta emenda que modifica o art. 100). Infeliz credor do Estado que vê a madeira de seu crédito ser trocado a toda hora. O barco de Teseu já perdeu todas as peças.
A Emenda Constitucional n. 109/2021 anterior aumentou o prazo de pagamento dos precatórios até 2029, o que já muda muitas madeiras do barco do devedor.
Encaminha, agora, a PEC 23/2021 que altera, profundamente e de novo, o art. 100 da Constituição Federal, ao lado de outras providências. Analisemos seu inteiro teor. Os credores que tenham acima de sessenta (60) anos, os doentes graves e com deficiência serão pagos com preferência, nos termos do parágrafo 5º do mesmo artigo 100, até o triplo do fixado em lei para pequeno valor. Admite-se o fracionamento.
Os credores de precatórios que possuam débito com a Fazenda Pública e inscritos como dívida ativa, o montante a ser pago será encaminhado ao Juízo da cobrança executiva para decidir sobre o destino do valor do precatório.
O parágrafo 11 da PEC dispõe que é facultada ao credor a “entrega de créditos em precatórios para compra de imóveis públicos ou aquisição de participação societária do respectivo ente federado”. Se ocorrida a hipótese, o credor do precatório pode dar em pagamento o valor constante do precatório para a transação. A cessão do precatório impõe o abatimento de débitos líquidos e certos (redação dada ao parágrafo 14 do art. 110).
Valores de até 66 mil reais serão pagos imediatamente, ficando fora do parcelamento.
Créditos acima de 66 milhões serão pagos em dez (10) anos. O argumento é compatibilizar o débito público da União com o teto de gastos. Será que a contabilidade não acusou isso antes? Podemos nos indagar o que acontecerá no segundo exercício de pagamento em que faltarem recurso? Não tem importância: faremos outra PEC e partilhamos em mais vezes, dirá o governo (ou como diria Olavo Bilac, ouviremos estrelas, por termos perdido o senso).
Para estes, haverá um pagamento de 15% o restante em nove parcelas. Poderá ocorrer acordo direto com redução máxima de 40% (quarenta por cento), se não houver recurso pendente.
De outro lado, os referencias de ajuste alteram jurisprudência pacificada no STF que aplicava o IPCA. Agora, taxa básica de juros, o que faz cair o crédito perto de 5%.
Alteração esdrúxula é a do parágrafo 2º do art. 109 em que se altera a competência dos juízes federais para as ações de tutela coletiva que deverão ser propostas no Distrito Federal. Assim, evita-se que juízes de diversas circunscrições judiciárias de todos os Estados possam editar liminares, o que atrapalha a defesa da União. É útil o dispositivo porque concentra as ações coletivas onde está o poder central.
Haverá um “encontro de contas” dos créditos/débitos públicos. Abate-se o valor do precatório de quem for credor. Mais parte do madeirame de Teseu é trocado. No caso de o litigante ser o Município opera-se compensação automática com a União.
Outro problema é criado pelo inciso III do art. 167. Hoje as operações de crédito nos orçamentos fiscal e da seguridade social apenas podem ser realizadas por “créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa”. Se aprovada a emenda, basta autorização pela lei orçamentária anual. Escancara-se e quebra-se a regra de ouro dos limites de endividamento e do teto. Deixa-se de lado a exigência de maioria absoluta.
Institui-se, no ADCT (disposições transitórias) o art. 80-A que cria o Fundo de Liquidação de Passivos da União. Vendas de imóveis, participação societária, dividendos recebidos de estatais, outorga de delegações de serviços públicos, royalties da exploração de petróleo e arrecadação decorrente de redução de benefícios tributários, tudo formará um Fundo destinado ao pagamento antecipado de precatórios e solução da dívida pública federal.
As despesas realizadas pelo Fundo não estarão sujeitas aos limites impostos pelo art. 107 do ADCT, isto é, escapam dos “limites individualizados para as despesas primárias”, o que significa que não serão consideradas para sujeição ao teto.
Estaria havendo uma compatibilidade da regra inserida na Constituição do pagamento dos precatórios até 2029 com o parcelamento? Não se pode negar que há adequação dos débitos com o termo ad quem do exercício financeiro.
A PEC proposta não é um bicho de sete cabeças (à imitação das cobras na cabeça da Medusa, uma das górgonas), mas é estranha, de qualquer maneira. É mais uma forma de tungar credores.
A seriedade que se impõe aos agentes públicos é de dar segurança jurídica à população. Mas, como ela pode se conformar com isso, se a cada período a forma de pagamento é alterada? O credor público deveria receber “na boca do caixa”, isto é, tão logo seu crédito seja proclamado pelo Judiciário, com decisão transitada em julgado. Como pode programar sua vida se a cada biênio vê sua perspectiva de recebimento altera?
Seria a PEC inconstitucional em algum aspecto? Haveria quebra da coisa julgada, de vez que se estabelece o parcelamento do pagamento? A celebração da coisa julgada significa que não pode ser modificada. O que ou quem? O conteúdo da lide instaurada. O montante do débito não pode ser alterado. Tem que ser atualizado para representar a mesma quantia originária. Mas, nada se estabelece sobre a forma de pagamento. Não vejo quebra.
O preceito outorgaria privilégio à União por força de compensação de pagamentos? Igualmente não parece haver infração à Constituição. O preceito é racional e elimina questões financeiras entre entidades públicas. Agrediria o direito de propriedade do credor ao determinar confronto de débitos? O que parece é que há a racionalização dos pagamentos, terminando o infindável confronto e perseguições creditícias. A mudança de critérios de correção beneficia a União? Aqui o problema poderá ser questionado junto à Suprema Corte. É que os valores não podem perder seu valor aquisitivo ao longo do tempo. Se isso ocorrer, com certeza haverá prejuízo.
O que deve realmente preocupar não são inconstitucionalidades pontuais (que podem ocorrer), mas é o pouco caso, a irrelevância, o menoscabo, a desconsideração do Estado Federal em relação a seus credores. Desmandos do passado não justificam desmandos do presente.
Não se pode, positivamente, prestar homenagem a Teseu. Seu barco já não é o mesmo. Vejam como os heróis são tratados pelo futuro!
* Regis Fernandes de Oliveira - (Professor titular aposentado da USP)