Fonte: Migalhas - 07/11/2025

gilda f ferraz

O artigo aborda o descanso e o direito à desconexão como garantias da dignidade e da saúde do trabalhador.

O direito ao descanso e às férias remuneradas vai além de um simples benefício oferecido pelos empregadores; trata-se de um direito fundamental do trabalhador, crucial para a preservação de sua saúde física e mental, dignidade e, consequentemente, para a produtividade e a qualidade do ambiente de trabalho.

Este artigo analisa a importância desse tema nas relações de trabalho, com base na doutrina brasileira, francesa e no direito europeu em geral.

A Visão Brasileira: Dignidade e Direito Existencial

No Brasil, o descanso e as férias são garantidos pela Constituição Federal, especialmente nos artigos 7, incisos XV (repouso semanal remunerado) e XVII (gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal).

A doutrina brasileira destaca a natureza protetora desses institutos, ligando-os diretamente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1, III, da CF/88) e à proteção de um ambiente de trabalho saudável.

Maurício Godinho Delgado, renomado jurista brasileiro, enfatiza que o Direito do Trabalho:

". destaca a importância dos intervalos e descansos, pois representam o oxigênio necessário para a preservação da saúde física e mental do trabalhador, atuando como verdadeiros institutos de saúde pública, diretamente relacionados ao direito fundamental à saúde e à vida."

Recentemente, o debate no Brasil se expandiu para o conceito de "Dano Existencial", reconhecido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) em casos de violação repetida dos períodos de descanso. Esse dano surge da frustração da expectativa legítima do trabalhador de aproveitar sua vida pessoal, familiar e social, devido à jornada excessiva ou à supressão de seus repousos, impactando seu projeto de vida.

Para aprofundar o tema, é fundamental focar no conceito de Direito à Desconexão e sua relação com o dano existencial, destacando a contribuição pioneira da França e sua recepção e desenvolvimento no Brasil.

I. O Direito à Desconexão: Uma Resposta à Hiperconectividade

O Direito à Desconexão (Droit à la Déconnexion) garante que o trabalhador não seja obrigado a permanecer conectado a ferramentas digitais de trabalho (e-mails, mensagens, ligações, etc.) fora de sua jornada regular.

A. A doutrina francesa e a positivação

Na França, o direito foi positivado no Código do Trabalho (art. L. 2242-17, 7º, da lei 2016-1088), resultado da evolução jurisprudencial da Cour de cassation (Tribunal de Cassação). A doutrina francesa, ao analisar a lei, observa que a desconexão é uma extensão do direito ao repouso e um mecanismo de proteção contra o risco psicossocial da fusão entre vida profissional e pessoal.

Jean-Emmanuel Ray, renomado autor francês e referência no tema, define a desconexão como uma medida preventiva essencial para a saúde do trabalhador. Ele enfatiza que a lei não proíbe o uso de ferramentas digitais, mas sim a obrigatoriedade ou incentivo ao seu uso durante os períodos de descanso. O objetivo, segundo o Professor Ray, é assegurar a indisponibilidade permanente do trabalhador, combatendo o "esgotamento digital".

A inclusão do tema na seção sobre QVT - Qualidade de Vida no Trabalho e na negociação anual sobre igualdade profissional, conforme a norma francesa, demonstra uma preocupação genuína com o aspecto humano do trabalho, indo além da mera limitação da jornada.

No Brasil, o Direito à Desconexão foi, por muito tempo, uma garantia implícita, derivada dos princípios constitucionais e normas da CLT, até ser formalmente reconhecido com a Lei do Teletrabalho. Autores brasileiros argumentam que a desconexão não é um "novo" direito, mas sim o reconhecimento da necessidade de garantir os direitos fundamentais ao descanso, lazer, saúde e vida privada (art. 5, inciso X, e artigos 6 e 7 da CF/88) na era digital.

Após a reforma trabalhista (lei 13.467/2017), a CLT passou a prever, ainda que de forma genérica, o dano extrapatrimonial (Artigos 223-B e 223-C), que inclui o dano existencial.

Já no que pertine à jurisprudência, esta se tem tem consolidado para entender que a violação ao direito de desconexão e ao descanso efetivo se enquadra na ofensa a bens jurídicos, tais como o lazer, a vida privada e o convívio familiar, garantindo a indenização por Dano Existencial.

Direito francês e o Direito à Desconexão

A França, com seu forte histórico na proteção social, é mesmo pioneira na consagração de novos direitos relacionados ao tempo de não-trabalho.

O direito francês não só assegura as férias anuais remuneradas e os períodos de repouso, como também inovou ao instituir o Direito à Desconexão (Droit à la Déconnexion).

O direito à desconexão foi formalmente estabelecido pela lei 2016-1088, de 8 de agosto de 2016 (Lei do Trabalho ou "Loi El Khomri").

Antoine Lyon-Caen, um dos grandes nomes do Direito do Trabalho francês, ao analisar a evolução da legislação, destaca que a desconexão nada mais é que uma resposta à ubiquidade das ferramentas digitais no trabalho e visa proteger a fronteira entre vida profissional e vida privada.

O direito à desconexão é a afirmação da não-disponibilidade permanente do trabalhador, mesmo após o término de sua jornada. É uma extensão lógica da proteção ao repouso na era digital.

O direito à desconexão visa, em última análise, a efetividade dos períodos de descanso (diário, semanal e anual) e a proteção da saúde mental do empregado contra o esgotamento (ou soi-disant, "burnout").

A perspectiva europeia

Embora a expressão "dano existencial" não seja tão utilizada no mesmo rigor técnico-jurídico brasileiro, o Direito Europeu reconhece a necessidade de indenização em casos de violação das normas de tempo de trabalho.

A jurisprudência da CJUE é clara ao proteger a saúde do trabalhador.

Em casos de inobservância da Diretiva de Tempo de Trabalho, a indenização visa compensar o prejuízo causado à saúde e à vida pessoal.

A Corte entende que a não concessão das férias anuais pagas viola um direito de ordem pública, a gerar o dever de compensação financeira ao término da relação, mesmo que o trabalhador tenha estado doente ou de licença (Súmula de Jurisprudência da CJUE).

Portanto, em ambas as vertentes jurídicas, a finalidade é a mesma: proteger o trabalhador contra a exploração e o esgotamento, reafirmando o valor fundamental do tempo de descanso para a sua plena realização.

A França e o Brasil, com o "Direito à Desconexão" e o "Dano Existencial", respectivamente, respondem, cada um à sua maneira, à premente necessidade de impor limites à intromissão do trabalho na esfera privada.

Isto demonstra que o Direito Comunitário Europeu enxerga o tempo de não-trabalho como um pilar da política social e da proteção da saúde do trabalhador, sendo pois, um direito irrenunciável e de ordem pública.

Direito europeu: Fundamento comunitário da proteção

No âmbito da União Europeia, o direito ao descanso é tratado como uma questão de saúde e segurança do trabalhador, com base em diretivas comunitárias. A principal fonte é a Diretiva 2003/88/CE, relativa a certos aspectos da organização do tempo de trabalho.

A CJUE - Corte de Justiça da União Europeia, em sua jurisprudência consolidada, interpreta que os períodos de repouso devem ser efetivos e têm a função de garantir que o trabalhador se beneficie de períodos de repouso adequados que permitam a recuperação da fadiga resultante do trabalho, bem como de períodos de repouso preventivos, de forma a minimizar os riscos à saúde que a acumulação de períodos de trabalho sem o repouso adequado possa acarretar.(Interpretação da Diretiva 93/104/CE, precursora da 2003/88/CE).

A convergência doutrinária e normativa entre o Brasil, a França e o Direito Europeu revela que o descanso e as férias não são meros benefícios, mas sim requisitos estruturais para a sustentabilidade das relações de trabalho e para a concretização do valor da dignidade humana.

Ao garantir o efetivo gozo desses períodos, o ordenamento jurídico não apenas protege o indivíduo contra a exploração e o esgotamento, mas também promove um ambiente de trabalho mais saudável e produtivo.

A emergência de conceitos como o Direito à Desconexão vem sublinhar a necessidade de constante adaptação do Direito do Trabalho aos desafios impostos pela tecnologia, reafirmando o valor do tempo de vida em face do tempo de trabalho.

Share on Social Media