Fonte: Revista Oeste – 26/09/2025 – edição 289 – Crystian Costa

Juristas afirmam que o STF extrapola funções, pratica ativismo político e toma decisões que ferem a democracia
Ives Gandra, Dircêo Torrecillas Ramos, Gauthama Fornaciari,

Supremo Tribunal Federal (STF) ocupa hoje um lugar central na vida políticа O brasileira - e, para muitos juristas, esse protagonismo tem se transformado em abuso. A Corte, que nasceu para guardar a Constituição, passou a abrir inquéritos de ofício sem consultar o Ministério Público Federal (MPF), suspender leis aprovadas pelo Congresso Nacional e impor limites à liberdade de expressão, assumindo papéis que não lhe foram dados pelo texto constitucional.

O fenômeno não é exclusivo do Brasil, mas aqui ganhou contornos dramáticos. Em meio à inércia do Poder Legislativo e à radicalização da política, o STF passou a atuar como Poder hegemônico e até "moderador", de acordo com o ministro Dias Toffoli. Quem perde no Parlamento, recorre ao Tribunal. E, não raro, consegue reverter votações legitimamente aprovadas por 513 deputados e 81 senadores com a decisão de um único ministro, a exemplo da questão do aumento do IOF.

Essa concentração de poder tem efeitos corrosivos. Além de abalar a separação dos Poderes, mina a segurança jurídica e alimenta um clima de instabilidade permanente. Decisões que deveriam ser técnicas ganham conotação política; medidas justificadas como "defesa da democracia" acabam por violar direitos fundamentais; e o tribunal se vê, cada vez mais, no papel de legislador e executor, ao mesmo tempo que julga.

Juristas ouvidos pela Revista Oeste alertam que esse processo pavimenta o caminho para uma "juristocracia" - regime em que 11 ministros, sem voto popular, decidem sozinhos os rumos de 150 milhões de eleitores. Para eles, o STF já ultrapassou os limites da sua função e precisa de contenção, sob pena de a democracia representativa ceder lugar a uma ditadura togada.

A seguir, o que pensa cada um deles.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho Professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho vê o STF como uma Corte que abandonou a contenção e passou a agir como poder supremo do Estado. Para ele, o caso dos inquéritos de ofício é emblemático: "O art. 43 do regimento do STF só permite a abertura de inquérito se a infração ocorrer na sede do Tribunal", constatou o jurista. "No Inquérito das Fake News, essa limitação foi ignorada, e a relatoria designada sem sorteio. Trata-se de um vício que, em tese. tornaria o processo nulo."

Na avaliação de Ferreira Filho, o Tribunal passou a legislar e até a governar, valendo-se de princípios vagos para justificar decisões contrárias à lei. "É um ativismo que transforma a interpretação constitucional em mero pretexto para impor preferências ideológicas", disse. Ele distingue esse ativismo do governismo, quando a Corte atua em sintonia como Executivo para atender a interesses do governo de plantão. “Há casos em que o STF enxerga constitucionalidade ou inconstitucionalidade conforme o pedido ou a pressão governamental", observou o professor.

O jurista também aponta as consequências políticas desse comportamento: a radicalização do debate público, a perda de prestígio da instituição e a percepção de que ministros se alinham a quem os indicou, formando "bancadas” internas. "O STF se empenhou na defesa da democracia, mas adotou a máxima maquiavélica de que o fim justifica os meios", afirmou. "E, ao fazê-lo, instaurou uma juristocracia em lugar de uma democracia."

Ives Gandra da Silva Martins

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Para o jurista Ives Gandra Martins, professor emérito de diversas universidades, o Supremo se afastou da visão originalista, que limitava sua função à interpretação da Constituição, e abraçou uma corrente consequencialista, segundo a qual os ministros se veem no direito de reescrever a Carta conforme suas próprias convicções. "O papel que a Constituição deu à polícia judiciária foi assumido pelo STF, que passou a se tornar investigativo em muitos casos", diz Martins.

O professor vê nessa mudança uma transformação preocupante. "Hoje, os ministros não são apenas juízes, mas players do jogo político, o que corroeu a imagem de uma instituição que já foi a mais respeitada do País", afirmou. Martins recordou que, décadas atrás, ministros do STF circulavam livremente sem seguranças, enquanto hoje necessitam de forte aparato de proteção - reflexo do desgaste institucional.

Sobre como conter abusos, Martins rejeita a via do impeachment e defende a autocontenção dos próprios ministros, citando André Mendonça, Luiz Fux e Edson Fachin como exemplos dessa postura. Ao mesmo tempo, entende que cabe ao Congresso Nacional reagir com clareza: "O Parlamento deveria ter a coragem de legislar, delimitando rigorosamente as competências dos Três Poderes, para evitar a contínua invasão de atribuições", defende.

Na sua análise, a expansão da Corte decorre do enfraquecimento do Legislativo. "Um Congresso fragilizado abriu espaço para que o STF se tornasse o mais forte Poder da República, capaz de condenar todos, sem ser condenado por ninguém", adverte. Para ele, a democracia deve ser conduzida pelo Executivo e pelo Legislativo, eleitos pelo voto popular, e não por uma Corte formada por ministros nomeados por um único presidente.

Dircêo Torrecillas Ramos

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Para o jurista Dircêo Torrecillas Ramos, vice-presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas, o Supremo avançou sobre competências que não lhe cabem. Ele lembra que a Constituição atribui a função de investigar à Polícia Federal e ao MPF, jamais ao Judiciário. "O Regimento Interno do STF até prevê a abertura de inquérito de ofício, mas ele não pode se sobrepor à Constituição", ressalta.

Para Torrecillas, o Supremo deixou de ser um órgão técnico para se transformar em ator político. "Quando o Judiciário ultrapassa seus limites interpretativos, estamos diante de um ativismo inaceitável, contrário à separação dos Poderes", critica. "O fenômeno", acrescenta, "abriu caminho para que decisões judiciais assumissem papel de normas gerais, em prejuízo da democracia representativa".

O jurista observa ainda que o Congresso dispõe de instrumentos claros para reagir. Torrecillas cita o artigo 49 da Constituição, que determina que cabe ao Legislativo preservar suas próprias competências, e o artigo 52, o qual prevê a possibilidade de processar ministros por crimes de responsabilidade. "Indubitavelmente, o Congresso pode corrigir os excessos do Judiciário, dentro da legalidade, sem romper o equilíbrio entre os Poderes". diz.

Na sua avaliação, o Supremo tem adotado medidas que não apenas ferem a Constituição, mas comprometem valores democráticos elementares. Torrecillas cita episódios de censura e desmonetização de contas, bloqueio de bens e prisões sem base legal clara. "A prisão em ginásio de esportes, sem separação de homens, mulheres, idosos e enfermos, os inquéritos com presidente indicado sem sorteio, o flagrante permanente fabricado e a Constituição fatiada são práticas que violam normas democráticas e favorecem determinadas ideologias partidárias", comenta, em alusão aos manifestantes do 8 de janeiro, detidos em 2023 após um quebra-quebra na Praça dos Três Poderes.

Gauthama Fornaciar

Gauthama Fornaciari

O advogado Gauthama Fornaciari, mestre em Direito pela FGV, destaca que a Constituição de 1988 instituiu o sistema acusatório, no qual polícia investiga, MPF acusa e o magistrado julga. "O juiz não pode proceder de ofício", afirma. "Se toma conhecimento de um crime, deve comunicar ao MPF ou à polícia. Quando o STF instaura inquéritos por conta própria, viola a imparcialidade e rompe o equilíbrio do processo penal." Ele critica atos que extrapolam a funçãojurisdicional. "Uma decisão politizada é arbitrária e ilegal", diz. "Quando um tribunal relativiza até a coisa julgada, como no caso recente da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, temos um exemplo claro de ativismo judicial que contraria a segurança jurídica."

Na sua visão, cabe ao Congresso reagir por meio de leis mais claras ou até pedidos de impeachment, sem descartar a possibilidade de denúncias internacionais em casos de abusos. Fornaciari também salienta que a judicialização da política expôs ministros a holofotes e a comentários públicos sobre temas em julgamento, minando a credibilidade da Corte.

Ele é categórico ao afirmar que o STF tem violado normas democráticas. Para ele, os julgamentos relacionados ao 8 de janeiro são prova disso: "As evidentes violações ao devido processo legal, ao direito de defesa, ao princípio do juiz natural e imparcial, e a aceitação de delações obtidas por meio de prisão provisória são exemplos de decisionismo jurídico que fragiliza a proteção dos direitos individuais no Brasil", aponta.

O jurista alerta que essa flexibilização pode contaminar todo o sistema de Justiça. "Em vez de afirmar garantias constitucionais, como deveria, o Supremo cria um mau paradigma que acabará por influenciar as demais instâncias, em prejuízo da segurança e da liberdade dos cidadãos". avalia.

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