(O Estado de S.Paulo)
Hoje volto ao tema da união estável e de seus efeitos patrimoniais sucessórios, que serão desastrosamente equiparados aos do casamento, a menos que os Ministros do STF alterem seus votos no RE 878.694. A partir do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, Relator nesse Recurso Extraordinário de repercussão geral, que sintetizou os argumentos de quem defende regimes sucessórios idênticos para cônjuges e companheiros, pretendo explicar por que esses argumentos são equivocados e por que o STF, a começar pelos votos dos Ministros que ainda não se manifestaram, deve rever seu entendimento, que ainda é provisório em razão do adiamento do julgamento realizado a pedido do Ministro Dias Toffoli.
O Ministro Barroso abre seu voto relembrando o tempo do Código Civil de 1916, em que o Direito brasileiro só reconhecia um modelo tradicional de família, baseado no casamento entre o homem e sua esposa, que além de ser submissa, perdia sua capacidade jurídica ao casar e assumia o chamado “débito conjugal”, que era o dever da mulher de disponibilidade sexual ao marido. Ainda nessa época, o divórcio era vedado e filhos havidos fora do casamento eram discriminados.
Nada disso, com todo o respeito, tem a ver com o caso e com os tempos atuais.
Uma observação inicial deste artigo é que farei referência sempre ao companheiro morto e à companheira viva, porque este foi o norte do Ministro Relator, mas não se pode esquecer que o mesmo se aplica à companheira falecida e ao companheiro sobrevivente.
A intenção do Ministro Barroso é incluir o regime sucessório diferenciado da união estável nessa mesma classe de anacronismos injustos para a sociedade atual. Trata-se de comparação inadequada, que deprecia os Tribunais Estaduais de São Paulo (Ação de Arguição de Inconstitucionalidade nº 0359133-51.2010.8.26.0000) e de Minas Gerais (Incidente de Inconstitucionalidade nº 1.0512.06.0322313-2/002), que sempre aplicaram as regras sucessórias da união estável constante do atual Código Civil, que entrou em vigor em 2003, como também o Superior Tribunal de Justiça, que também aplicava essas regras em seus julgamentos, em que se destacam os acórdãos proferidos sob a Relatoria da Ministra Nancy Andrighi (Recurso Especial nº 1117563/SP) e do Ministro Fernando Gonçalves (Recurso Especial nº 887990/PE).
A Constituição de 1988, prossegue o Ministro, acabou com esses arcaísmos. Igualou homens e mulheres em suas relações afetivas, e consagrou a união estável como entidade familiar. Duas leis do Congresso Nacional na década de 1990 foram além e equipararam totalmente os efeitos sucessórios da união estável aos do casamento, segundo o voto desse Ministro Relator. Esquece-se o Ministro que à época do Código Civil de 1916 e das leis que foram promulgadas antes do Código Civil, que entrou em vigor em 2003, a legislação não atribuía à pessoa casada o direito sucessório de propriedade sobre os bens exclusivos do falecido, mas somente o direito ao usufruto (mera utilização ou gozo, sem possibilidade de alienação) dos bens do cônjuge morto.
“Vivíamos todos felizes sob o regime legal de equiparação da esposa à companheira”, até que sobreveio o Código Civil em 2003, mas sob um Projeto de 1975, de outra época, quando a sociedade era outra, afirma o Ministro Barroso, demonstrando aqui muito do indevido “pré-conceito” que permeia o seu voto.
Primeiramente, é preciso mencionar que o Projeto de Lei de que resultou nosso atual Código Civil não permaneceu na gaveta do Congresso por quase trinta anos até ser votado; foi, isto sim, debatido e alterado diversas vezes durante o período de sua tramitação nas duas Casas do Congresso Nacional. Em segundo lugar, o Código Civil, no art. 1.790, especificamente quanto ao regime sucessório da união estável, além de não ser antiquado, de maneira alguma é inconstitucional. E, ainda que fosse considerado antiquado, por não inconstitucional, o STF não teria a competência para alterá-lo, caberia ao Poder Legislativo, em procedimento apropriado, alterar a norma, conforme lembrou o próprio Ministro, já o fez no passado quanto ao direito sucessório.
É certo que a Constituição Federal não exige um regime sucessório diferenciado entre união estável e casamento. Mas igualmente certo é que também não o proíbe.
Pelas palavras do Ministro, seria de concluir que o Código Civil, e sua proteção alegadamente insuficiente e desigual aos companheiros, teria sido danoso ao instituto da união estável no Brasil. É de lembrar, neste passo, que as estatísticas mostram que as uniões estáveis cresceram consideravelmente na última década, sendo que hoje 1/3 dos casais vive não em casamento, mas em união estável, portanto 2/3 vivem em casamento, segundo o próprio Ministro.
Com indignação, o Ministro Barroso cita como absurda a regra do Código Civil pela qual a companheira somente participa na herança em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, regra esta que tanto nada tem de absurda que o STJ já se viu obrigado a estendê-la ao próprio casamento para fazer justiça em casos concretos (a título de exemplo, Recurso Especial nº 992.749/MS, da Relatoria da Ministra Nancy Andrighi).
E diz, o Ministro, que o quinhão da companheira é sempre menor do que o da esposa no casamento, o que não é verdade, porque a companheira pode receber mais bens do que a esposa, a depender do momento da formação patrimonial; se a constituição patrimonial for posterior ao início da relação, a companheira receberá quinhão maior do que a pessoa casada.
Analisando o caso concreto que motivou o RE 878694, o Ministro diz ser inadmissível que certa mulher seja obrigada a dividir a herança de seu falecido companheiro com os irmãos dele, sendo que, se fosse esposa, herdaria sozinha.
Sobre isto, há uma relevante consideração a ser feita: se um dos motivos que levaram o falecido a optar pela união estável em vez do casamento foi justamente o desejo de ter os irmãos como herdeiros de seus bens exclusivos e não a sua companheira? Este homem, pego de surpresa pelo STF, terá ainda mais limitada a sua liberdade sucessória, a qual já é restrita pelo regime da comunhão parcial, regime este advindo da lei, em que a companheira sobrevivente tem direito à meação sobre os bens adquiridos no curso da união estável. Esclarece-se, assim, que a companheira já tem o direito de meação, caso o regime de bens seja o da comunhão parcial de bens, sendo este o regime mais comum por ser o legalmente previsto e que independe de pacto em sentido diverso, na conformidade do Código Civil, em seu art. 1.723, além do direito sucessório sobre os bens adquiridos onerosamente no curso do casamento, em concorrência com os outros herdeiros do falecido, no caso de irmãos, a 1/3 da outra parte da meação, restando aos irmãos do morto os outros 2/3, segundo o referido art. 1.790 do Código Civil. Portanto, realizando-se o cálculo dos direitos sucessórios da companheira em avos, a companheira terá direito a 4/6 dos bens adquiridos no curso da união estável e os irmãos aos restantes 2/6 desse patrimônio.
Quanto aos bens exclusivos do falecido, adquiridos antes da união estável ou por herança ou por doação, os irmãos os herdarão.
Deve-se, portanto, ter presente que de um caso concreto não se pode extrair uma conclusão geral sobre o regime sucessório da união estável.
Pensemos em dois companheiros que constituíram uma união estável ainda jovens, sem possuírem quaisquer bens exclusivos. A união se estende no tempo, de modo que, ao fim da vida do companheiro, todos os bens que lhe pertencem foram adquiridos onerosamente na constância da união. A companheira sobrevivente, neste caso, além da metade do patrimônio que lhe cabe por meação, será herdeira sobre a outra metade dos bens, ou seja, terá direito a 4/6 do patrimônio do falecido. Se fosse cônjuge, os direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente se dariam somente sobre o patrimônio exclusivo do falecido, que, neste exemplo, é nenhum! Portanto, vê-se que sabiamente, o Código Civil distinguiu os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, para favorecer este último quando os bens são adquiridos durante a união estável, quando as pessoas têm consciência da relação que vivem, quando a ajuda da companheira, ainda que indireta na construção do patrimônio, presume-se que existiu.
A justiça ou injustiça de um regime sucessório dependerá sempre de cada caso concreto. Por isso que a liberdade dos indivíduos em escolherem aquele que melhor os satisfaz deve ser preservada.
Mas ainda que aceitasse isso, o Ministro Barroso julgaria inconstitucional o tratamento sucessório da união estável em razão de uma leitura equivocada do artigo 226, § 3º, da Constituição, que estabelece: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”. Desta norma constitucional, o Ministro deduz que união estável teria sido totalmente equiparada ao casamento e qualquer diferenciação seria inconstitucional. Mas este não é o sentido do artigo.
O artigo 226, § 3º tem por fim atribuir a natureza de entidade familiar à união estável, para impedir, por exemplo, que o programa Bolsa Família distribua seus benefícios somente às famílias geradas por casamento, ou que uma lei previdenciária pudesse prever um benefício somente aos cônjuges e não estendê-lo aos companheiros. Este é o significado do artigo 226, § 3º da Constituição: proibir discriminação voltada à união estável, ou seja, proibir que seja considerada “menos família” do que as famílias constituídas por casamento. A verdade é que Constituição equiparou a união estável ao casamento, mas não os igualou. Tanto que prevê a possibilidade de que aquela se converta neste no mesmo artigo 226. Entre um e outro instituto – casamento e união estável -, permanecem diferenças importantes, oriundas da forma de sua constituição e dissolução, que precisam ser respeitadas e o foram pelo Código Civil vigente.
Os equívocos do Ministro Barroso e dos demais Ministros que o acompanharam, se acabarem resultando mesmo na total equiparação dos efeitos sucessórios da união estável aos do casamento, o que se espera que não aconteça, terão consequência sociais graves. Certamente que a decisão será noticiada nos principais veículos de informação; advogados prevenirão os seus clientes; amigos darão a notícia uns aos outros, e a equiparação total da união estável ao casamento se tornará de domínio público, aliás, o que se recomenda acontecer.
Como consequência, os casais se assustarão. Porque é de senso comum, intuído pelo Congresso Nacional na aprovação do atual Código Civil, que uma união que se dá no plano dos fatos, e que, por isso mesmo, é informal e natural, não tenha as mesmas amarras e limitações que o vínculo formal e solene do casamento. O STF, de maneira irresponsável, tornará a aproximação e o estreitamento das relações afetivas naturais – de que a união estável resulta – em um ato da mesma gravidade e magnitude que dizer “sim” a um Oficial do Registro Civil.
Ao contrário do que pretende o Ministro Barroso, se o STF equiparar indevidamente a união estável ao casamento, os casais em união estável não escolherão entre nela permanecer, ou casar.
Assustados, e com razão, pela insegurança jurídica em que o STF os deixará, os casais em união estável, muito mais provavelmente, ponderarão entre mantê-las, ou dissolvê-las. Se dissolvidas, não existirão direitos sucessórios!
Quem ainda não vive em entidade familiar, possivelmente temeroso de seus efeitos sucessórios, permanecerá sozinho, fará declarações de namoro para assegurar que a relação que vive não é de união estável, enfim, não poderá extravasar seu afeto, terá que contê-lo, tornar-se-á infeliz e isto em razão de uma decisão equivocada do STF.
O STF, então, ou revê seu entendimento, por ora provisório, ou pode ter a certeza de que, apesar de suas melhores intenções, estará contribuindo a afrouxar os relacionamentos e a destruir o afeto.
Se não houver posicionamento pelos Ministros que ainda não votaram pela constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e revisão dos votos já proferidos, o STF tirará das pessoas o seu direito de amar.