Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery
Não é de hoje que temos tido notícias sobre aquilo que se logrou denominar de “ativismo judicial”, para significar que os membros do Poder Judiciário – notadamente, os Ministros do STF e do STJ – vêm decidindo causas e nos impondo normas e condutas que não estão contidas, nem na Constituição Federal, nem nas leis promulgadas pelo Congresso Nacional.
Nos últimos tempos, os juristas têm sido surpreendidos com decisões judiciais inesperadas, fundadas em comandos que a lei não dá e, não raras vezes, tendo que se subordinar a ordens que não decorrem da coerção legal, ao contrário, a desmentem: uma face nova do desafio aos princípios do estado de direito e da legalidade.
Mas, o que aconteceu?
Por ocasião de julgamento de um processo de Habeas Corpus, em que se discutia a regularidade da prisão preventiva de pessoas acusadas de terem praticado o crime de aborto, o Min. Barroso mandou soltar os presos, sob o argumento de que o aborto praticado nos três primeiros meses da gestação, não se constitui como fato típico penal. Liberou os presos e foi acompanhado pelos Ministros Fachin e Rosa Weber, contra os votos de Luiz Fux e Marco Aurélio, que liberavam os presos sob outros fundamentos.
A decisão, pelo seu fundamento principal – o fato não é típico e, por isso, não há crime – afronta a Constituição Federal e as leis, desmente as afirmações feitas pelos julgadores, (quando sabatinados pelo Congresso Nacional como candidatos às vagas de Ministro do Supremo Tribunal Federal negaram que fossem a favor do aborto) e nos provoca a entender porque exatamente isto vem acontecendo.
Não acredito, como dizem alguns, que o STF esteja julgando “ideologicamente” porque isso seria a “venezuelização” do Poder Judiciário brasileiro que não devemos – nem de longe – considerar possível .
Acredito, entretanto, que os membros do Poder Judiciário das Cortes Superiores estão indignados com a propalada falência institucional do Parlamento Brasileiro, que não legisla, mas se interessa, repentina e desabusadamente, por soluções pontuais, pautadas por necessidades que não são aquelas imperiosas à segurança da vida civil.
De toda a maneira, um tema de relevância máxima para a defesa de direitos fundamentais (a análise sobre a vida e a morte, sobre quando a vida se inicia e sobre quando termina) não se pode aceitar que o juiz possa se arvorar na pretensão de, legislando, tornar relativo aquilo que a Constituição Federal realça como direito fundamental: a Vida.
A decisão foi estridente, porque diz que se pode matar, que isso não é crime, que quem praticou o ato não está sujeito à pena e que a repressão feita pela autoridade pública sobre o criminoso é ilegal.
A afirmação é de uma ousadia que não se compraz com a atividade judicante, nem com a compostura da Corte maior do país.
Ela provoca a mesma reação atônita de quem, no Brasil de nossos dias, se visse condenado à pena de morte: se é o STF quem lê e diz o que a Constituição Federal quer, e a preservação da vida não é um obstáculo para certas ordens, por que não pode mandar alguém para a cadeira elétrica? Ou, por que não se pode linchar alguém em praça pública?
Extremismos por extremismos é mais justificável aquele ato que explode de uma sociedade doente, faminta de justiça e temerosa da violência civil: que diremos se tivermos que julgar o pai que caçar e matar o estuprador da filha? De outra parte, nessa lógica de exercício do poder, o STF poderia reconhecer como necessária, nos dias atuais, a pena de morte, já que a vida humana é relativa e é necessário preservar direitos de quem sofre.
De toda a maneira, não se pode aceitar que essa decisão venha em favor dos interesses das mulheres.
Nas duas hipóteses em que o Código Penal deixa claro que o Estado não deve punir quem pratica o aborto - se a concepção decorreu de violência contra a mulher e se é necessária a prática para salvar a vida da mãe -, reconhece claramente que o Poder punitivo do Estado não quer cruzar a linha das questões que ultrapassam o jurídico e aportam na experiência de vida e de morte com que cotidianamente convivem os médicos.
É um absurdo que a mulher estuprada tenha que ir ao Judiciário para pedir autorização para matar. É um absurdo que se deva ir à polícia para contar o que se passou. Ela é vítima de violência, não está obrigada a denunciar o crime de que é vítima, e deve procurar o médico, do SUS, sim, que está autorizado a tomar as medidas que ele bem sabe quais são para proteger a saúde e a vida dessa mulher.
Todos os dias no Brasil, os médicos têm que escolher entre a vida e morte de seus pacientes, porque não há vagas para todos nas UTIs; todos os dias os médicos precisam descartar embriões excedentes, nos laboratórios de clínicas especializadas em procriação artificial. Em defesa dessas Vidas ninguém levanta a voz. O Congresso Nacional não se levanta para estudar essas questões e legislar sobre elas.
Em matéria de promoção da Vida, senhores, as mulheres têm muito a lhes ensinar. Elas não precisam ir à Delegacia para fazer BO para contarem que foram vítimas de estupro, se não quiserem.
Todos os dias as mulheres promovem a Vida com atos de heroísmo, cuidando de milhares de crianças deficientes, idosos abandonados, alimentando bocas miseráveis, limpando feridas e cuidando de corpos cobertos de excrementos. Sabem perfeitamente de suas responsabilidades, cuidam do ser que concebem, promovem a Vida, porque para elas o fruto que carregam é filho no sacrário de seu corpo.
Esses fatos devem ser levados em conta, agora, ao ensejo da cogitação do nome do Min. Ives Gandra Filho para assumir a vaga do falecido Ministro Teori Zavascki no STF.
Sua figura honesta, impoluta, culta e digna seria de grande valia para o equilíbrio das forças argumentativas no STF.
Não importa, a essa altura, que coisa pensa o Ministro a respeito da função e da posição da mulher dentro do matrimônio religioso católico, se ele se comprometer a cumprir a Constituição e as Leis do País, que dizem que marido e mulher são civilmente iguais diante da lei.
Afinal, até hoje os teólogos não resolveram a questão intrincada sobre o papel de Maria Madalena como a primeira anunciadora da Boa Nova. Ela não é considerada Apóstola, muito embora tenha sido ela a testemunhar e a anunciar por primeiro o fato mais importante da Fé Cristã: a Ressurreição.
Nélida Piñon, em uma de seus mais belos momentos literários, nos diz “que a memória da mulher está na Bíblia, ainda que ela nunca tenha sido interlocutora de Deus”. É verdade. Mas João nos lembra, num relato com forte conteúdo messiânico, que “junto à cruz de Jesus estava, de pé, sua Mãe” (Jo 19, 25): humilde e valente: interlocutora de Deus, não pela Palavra, mas pelas ações. Aquela que ficou na penumbra, agora se coloca em primeiro plano, com seu silêncio e sua dignidade. É ela a protagonista principal do encerramento da função messiânica do Cristo: Mulher eis o seu filho; Filho, eis sua Mãe. Ele sabia que tudo já estava consumado (Jo 19, 28).
Lembrei-me dos versos de Chico Buarque, porque, sinceramente, os detentores do Poder no Brasil e os profissionais da mídia deveriam voltar “à escuridão do ventre, de onde nunca deveriam ter saído”.