No último dia 12 (estamos em maio de 2018), o estimado e aplaudido Professor Eros Roberto Grau publicou no “Estadão” um artigo interessante sob o título Em defesa do positivismo jurídico, em que, exaltando a figura de Hans Kelsen, o expositor da doutrina do normativismo jurídico, desta parece identificar, entre outros, o seguinte fundamento: “... há uma diferença essencial entre justiça e Direito, lex e jus. Os juízes aplicam o Direito, não fazem justiça. O que caracteriza o Direito moderno é a objetividade da lei, a ética da legalidade. Não me cansarei de repetir que os juízes interpretam/aplicam a Constituição e as leis, não fazem justiça.” (Pág. A-2).
O trabalho de Eros Roberto Grau mereceu duas oportunas críticas de dois amigos nossos, estudiosos da ciência jurídica que se formaram na nossa querida Faculdade Paulista de Direito (PUC-SP). Foram eles o Desembargador aposentado Francisco César Pinheiro Rodrigues, nosso colega de turma, e o doutor Renato Rua de Almeida, nosso antigo estagiário e aluno, hoje Professor naquela Faculdade e Presidente do Instituto Jacques Maritain do Brasil.
Fazemos esse registro para mostrar a coincidência do pensamento contrário à adoção cega da teoria positivista, forjado em doutrina extraída das bases sólidas expostas num curso que ensinava o direito como ciência.
O artigo do Professor Eros Roberto Grau parece-nos recheado de assuntos bons para comentários e reflexões. Não nos ocuparemos, obviamente, de todos. Comecemos pelas dúvidas.
Não entendemos bem a argumentação do ilustre articulista: diz que os juízes não fazem justiça, aplicam a lei, porque a justiça “absoluta” só pode vir de Deus, mas defende o positivismo, que coisa outra não é senão a lei que os juízes aplicam. Com todo o respeito: em que ficamos?
Começa distinguindo entre fazer leis e aplicar as leis (“fazer justiça”) e afirmando que, no nosso tempo, “o legal e o justo (direito e justiça) não se superpõem”. Um aluno diria: assim é porque se distingue o legal, isto é, o que está na lei, do que é justo, do que é direito. Não é velha a distinção entre legalidade e legitimidade? Não há leis iníquas, isto é, não équas, isto é, contrárias ao direito?
No artigo, a seguinte afirmação: “Fazer e aplicar as leis (lex) e fazer justiça (jus) não se confundem.”
Respeitosamente: não haveria aí um equívoco? Ius não é justiça, é direito: Ius est ars boni et aequi, ensinou Celso; e a justiça é uma virtude: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuens, ensinou Ulpiano.
O normativismo kelseniano apega-se à lei e desconsidera, principalmente, a sua causa. Na voz do próprio Kelsen, a sua teoria pura do direito “procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como ele deve ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.” E acrescenta: “De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.” (“Teoria pura do direito”, trad. de João Baptista Machado, Martins Fontes, São Paulo, 2018, págs. 1 e 2).
Vê-se que a chamada teoria pura do direito, de tão ciosa de sua pureza abandonou até a ética, que desde Aristóteles, ou antes, todos sabemos ser o fundamento do direito. Como rechaçar a não apenas conexão, mas um vínculo como um cordão umbilical, ligando o direito à ética? Parece elementar que o que é humano é moral. Será possível não ver que o direito é a aplicação mais humana da lei moral? É possível negar que o direito seja a ciência do dever ser?
O normativismo de Kelsen é o supedâneo do positivismo de hoje. Não se dê à lei, nas cogitações aprofundadas do estudo do direito, posição que ela não tem; nem papel diferente do que uma – embora, sem dúvida, a mais importante – forma de expressão do direito; jamais “fonte” do direito.
Há que se identificar estas três etapas: a) direito (ius) - b) lei (lex) - c) justiça (iustitia), nessa inevitável ordem cronológica.
Escreve ainda o eminente jurista Eros Roberto Grau: “Os juízes aplicam o Direito, não fazem justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender Direito, não a justiça. Esta, repito, é lá em cima. Apenas na afirmação da legalidade e do Direito positivo a sociedade encontrará segurança e os humildes, proteção e garantia de seus direitos de defesa.”
Atrevemo-nos a umas rapidíssimas considerações a respeito:
O direito que os juízes devem aplicar supõe-se esteja na lei. É o direito positivo; é a legalidade. Por que não fazem justiça? Porque se apartam sempre da lei? Ou porque se deparam com leis iníquas? Não mais do que com a experiência de velho professor de direito e jamais com intuito de sequer contestar a afirmação do caríssimo Professor Eros Grau, sempre entendemos que os alunos devem ir às Faculdades para aprender e os professores para ensinar o direito como ciência, que estuda a busca do justo para transformá-lo em lei e, em seguida – somente em seguida – estudar a lei, para ver se ela se conforma com o direito, isto é, se ela possibilita, e como, a concretização do justo. Isto é o direito como ciência; esta é a ciência do direito.
Estamos a dizer que a positivação do direito deve ser consequência da conformidade da lex ao ius. Porque a lei que não exprime o direito que a antecede é espúria, não é lei. Provamo-lo com a elementar pergunta: Eu tenho direito à vida porque está na Constituição, ou está na Constituição porque eu tenho direito à vida?
E o mal que grassa nos cursos das nossas faculdades de direito, hoje, é exatamente esse, de não estudar o direito como ciência e ocupar-se apenas da superficial interpretação da legalidade, dos textos escritos, exercício elementar que se deveria aprender antes do ingresso na faculdade. Se se estudar o direito como ciência e não como interpretação de textos de obediência obrigatória porque emitidos pela autoridade estatal (cuja legitimidade, aliás, também deve ser objeto de estudo jurídico sério e sem preconceitos!) talvez se chegue com menos demora à concepção de justiça. Duas perguntas aos cidadãos responsáveis: não é disto que carecem os cursos de direito? Devemos formar juristas ou leguleios?
Do apego a textos de lei e do desinteresse no estudo das origens e causas do direito posto advém a consequência do empirismo no legislar, que traz entre outros gravíssimos efeitos a desobediência da pletora legislativa, na qual se veem leis “que pegam” e leis “que não pegam”. Que soberania e que poder de coerção terá o direito positivo transformado num cipoal indestrinçável, ou como disse Theotônio Negrão, no resultado de uma legislorreia incontida?
Salvaguardemos a lei como a primeira expressão do direito, para que se não avilte nem se amesquinhe. Importa resgatar a dignidade da norma, que por exprimir o direito tem justificado o dever da sua obediência. Para isso é preciso que a norma não se aparte do direito. Repetimos que uma elementar consulta à consciência jurídica do homem faz emergir o direito e fundamenta o juízo, igualmente elementar, da justiça ou iniquidade de um diploma legal. Não é direito apenas quod principi placuit (o que agrada ao príncipe; hoje, a um Estado onipotente mas com autoridade impotente) nem se admite o iustum quia jussum est (é justo porque é mandado).
A ciência do direito é mais nobre. Vai aos fundamentos, desce às causas.
Para terminar, dois exemplos lastimáveis do apego a textos de lei sem correspondência com o direito:
- um é a discrepante Lei n. 13.655, de 25 de abril último, que modificou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, violando a natureza de supra direito do diploma atingido, e
- outro, a inútil e ridícula Lei n. 13.050, de 8 de dezembro de 2014, que institui o dia nacional do macarrão!
Essa é a lei. Esse é o direito positivo escrito. Tal situação é deplorável!
O direito exige estudo com profundidade, para que a lei mereça obediência por ser a sua mais importante forma de expressão. Quanto mais se faz superficial o estudo da ciência jurídica, mais se amesquinha a lei. A própria natureza repele a lei que se não conforma ao direito. Porque contra o direito não é lei, é corrupção da lei.
Milton Paulo de Carvalho - Titular da Cadeira n. 56 - Patrono: Plínio Barreto