Fonte: publicado na Revista do Instituto dos Magistrados Brasileiros
Em breves linhas se convida à reflexão acerca de um assunto que com certa frequência tem sido objeto de polêmicas e até mesmo de conflitividade. Trata-se do que podemos denominar como sendo os efeitos previdenciários da sentença trabalhista que admite e declara a existência de relação de emprego/contrato de trabalho entre partes, sendo que o tempo reconhecido tem efeitos na relação previdenciária entre o trabalhador e o sistema previdenciário.
A lei previdenciária exige “começo de prova documental” para o reconhecimento e declaração do tempo de trabalho, e fragiliza, ou como que esteriliza a decisão judicial da Justiça do Trabalho, quando fundada exclusivamente em prova testemunhal ou confissão do empregador em Juízo, ao fundamento de fragilidade nas razões e fundamentos da decisão, com o que reduz a res judicata laboral à mero início de prova documental, quando muito, não raro argumentando que o Sistema Previdenciário não foi parte no processo, não tendo, assim, a oportunidade de defender seus interesses.
Tem-se a ousadia de afirmar que na verdade é um falso problema, diria um antigo jurista, a discussão versa sobre lana caprina, porquanto parte de alguns pressupostos insustentáveis diante da ordem jurídica estabelecida no direito brasileiro desde 1946 e, mais ainda, com o advento da Constituição vigente desde 1988, senão vejamos.
É mandamento constitucional ancianíssimo, deitando raízes na codificação do Direito Civil, o princípio da irretroatividade da lei, a preservação do direito adquirido e o prestígio da coisa julgada, sendo este princípio prevalente ao longo da evolução constitucional brasileira, incorporado ao elenco dos direitos fundamentais constitucionalmente albergados, como está no inc. XXXVI do art. 5º da CF. Com razão, José Miguel Garcia Medina pontua que: “coisa julgada é a imutabilidade e indiscutibilidade da determinação de conteúdo contido na decisão de mérito.”(Constituição Federal Comentada, ed. RT, SP, 2019, p.149, segs.)
Ora bem, se temos coisa julgada, ou como pretende o direito espanhol sentença firme, esta não pode ser posta em questão, salvo as hipóteses de ação rescisória, sem grave ofensa à disposição constitucional expressa, tanto mais tratando-se de direito fundamental. Temos, desde logo, o questionamento formal e concreto a respeito como ofensa a direito fundamental, em oposição frontal aos fundamentos do Estado brasileiro, que se baseiam na tutela explícita e expressa dos direitos fundamentais, e isto feito por órgão do Estado é imperdoável contradição, o que não pode ser aceito nem mesmo ad argumentadum.
O argumento de que o período reconhecido transcorreu sem a contribuição legal das partes ao sistema é írrito, eis que tal fato deriva da omissão fiscalizatória do próprio Estado, que ao agir assim se vale da própria torpeza porque não fiscalizou a tributação, não buscou a configuração do fato gerador e da obrigação tributária de contribuir, e não buscou constituir o crédito que lhe pertencia; e, mesmo assim, é forçoso destacar que, diante da competência arrecadatória da Justiça do Trabalho no que pertine à previdência nas ações sob sua jurisdição, perece este argumento, até porque o órgão judiciário atua nos casos concretos como fisco, como arrecadador da contribuição, independentemente da ação ou atuação atribuída ao fisco da qual comodamente se omitiu.
Doutra banda, admitir-se que o fisco previdenciário deveria ser parte no feito para defender seus interesses é o mesmo que admitir a oposição essencial entre a cidadania e o Estado, este ex adverso daquele no que concerne ao direito fundamental à previdência (outra violação frontal). Não se acolhe a tese de que a sentença trabalhista não produz efeitos entre aqueles que não foram partes do processo, porque isto negaria a validade e eficácia das normas que determinam a cobrança e mesmo a execução de contribuição previdenciária e imposto de renda incidentes, uma vez que o fisco não foi parte, embora seja beneficiado pela decisão. Portanto, temos a contradição odiosa de admitir-se beneficiar o fisco e recusar-se o que beneficia o cidadão. É negação primaria do Estado de Direito e consagradora da atitude descuidada do fisco.
Veja-se que a Lei previdenciária invade a competência ao fixar critérios do direito probatório, determinando verdadeira limitação substancial ao exercício da jurisdição, sutilmente tarifando meio e tipo de prova, o que não encontra acolhida no sistema jurídico brasileiro porquanto determina que: “não será admitida como eficaz para a comprovação do tempo de contribuição e para os fins previstos na legislação previdenciária, a ação reclamatória trabalhista em que a decisão não tenha sido fundamentada em início razoável de prova material contemporânea constante nos autos do processo.”, como dispõe o parágrafo 3º do art. 55 da Lei 8.213/91, e no mesmo sentido, o inc. I do art. 90 da Instrução Normativa 45/2010, do INSS.
Em nossa modesta compreensão, os dois dispositivos são eivados do vício de inconstitucionalidade, o primeiro, da Lei, porque disciplina direito probatório e exercício de jurisdição, o que é absolutamente incompatível com a natureza e finalidade da norma em si, e o segundo, além disso, tratando-se de exercício de poder regulamentar de autoridade administrativa, ultrapassa os limites de regulamentar, inovando a ordem jurídica, ao invés de se limitar à disciplinar aplicação da Lei.
Não baste tudo isto, é preciso considerar que a decisão trabalhista transitada em julgado, com força da res judicata, é intocável e inatacável, salvo como antes se observou por via rescisória, não pode ser fragilizada ou negada, administrativamente por autoridade administrativa, sendo claramente inconstitucionais normas que determinem este sentido, como as antes invocadas.
Tem-se que a Justiça do Trabalho ao reconhecer relação de emprego, declara-a no exercício da jurisdição que lhe compete, atribuindo efeito erga omines ao decidido na sua plenitude, inclusive em relação ao sistema previdenciário. O contrário disto é admitir-se o inadmissível, que se trata de justiça menor, acobertadora de fraudes, indutora de erros, o que a aproximaria mais da ilicitude do que da condição natural do Poder do Estado, como estabelecido expressamente na Constituição.
Trata-se de mera contribuição ao debate, não mais do que isto. Simples convite à reflexão mais ponderada, menos fiscalista sobre o assunto, até porque não diz respeito apenas aos integrantes e partícipes do Mundo do Trabalho, mas as finanças públicas e aos fins e fundamentos do Estado, de suas atividades fundamentais e de suas relações com a sociedade que vêm a ser sua razão de ser.
Não se trata de defesa institucional de órgão jurisdicional, trata-se sim de defesa, e intransigente, da ordem jurídica constitucional, dos Direitos Humanos Fundamentais incorporados expressamente à Constituição Federal. Se isto implica em confrontar a mentalidade fiscalista imperante de que “todos os meio e modos de arrecadação são válidos, e todos os meios de reduzir despesas são defensáveis”, paciência, o impossível é aceitar soluções superficiais e simplistas, que não conseguem senão soluções de caixa temporárias e instáveis, omitindo-se de discussão e reflexão mais profunda e serena do problema previdenciário, que sem dúvida desafia e está posto permanentemente, mas cuja complexidade e delicadeza impõe tratamento consentâneo e compatível, igualmente complexo e delicado, onde sejamos capazes de distinguir a distribuição dos custos entre os cidadãos pelos meio contributivos previdenciários e as políticas públicas de assistência social e redistribuição de renda, que não pertencem a nenhum sistema previdenciário stricto senso, embora indiscutivelmente deveres do Estado e, como tal, autoriza a busca de outras fontes de financiamento e custeio, cujo enfoque vai além de filigranas, que mais revelam mesquinhez de ponto de vista do que cuidado com o sistema, a ponto de promoverem, como vimos, contradições para sustentar o que pretendem.
Francisco Pedro Jucá: Membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo – UJUCASP. Doutor em Direito pela PUC/SP e pela USP. Livre Docente da USP. Pós-Doutorado pela Universidade de Salamanca, Espanha e Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Professor Titular da Faculdade de Direito de São Paulo – FADISP, da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Paulista de Magistrados da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Membro do Conselho de Orientação do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT. Juiz do Trabalho da 14ª Vara do Trabalho de São Paulo.