Fonte: Poder 360 - Opinião - 02/07/2024
O Estado brasileiro é laico desde a Constituição de 1891, o que é conceitual, mas nada efetivo, escreve Roberto Livianu.
Um ano e meio atrás, uma jovem foi estuprada em Barcelona (Espanha) em uma boate por um boleiro brasileiro. Ele acabou condenado, mas depositou estranha e polpuda fiança após a sentença, o que lhe permitiu responder ao processo em liberdade, depois de depositar outro valor milionário para reparar danos sofridos pela vítima (que ela não desejava). Isso reduziu a pena pela metade.
A vítima vive deprimida, não consegue trabalhar e ao ouvir a pronúncia de uma única palavra em português revive o horror do crime.
Cinco anos antes do delito, a sociedade espanhola não aceitou a condenação do crime coletivo de “La Manada“ por mero abuso, exigindo que os criminosos fossem condenados por estupro, o que acabou ocorrendo na Suprema Corte da Espanha. Isso levou o Congresso a mudar a lei para proteger de forma mais efetiva a dignidade das mulheres. Na França, a proteção jurídica foi incorporada no texto constitucional para que o sopro pendular de uma mera mudança legal não as expusesse a riscos.
No Brasil, permite-se há mais de 80 anos à gestante incondicionalmente decidir pela interrupção da gravidez a qualquer tempo em 3 situações: se ela foi estuprada, se há risco de morte ou se ocorre anencefalia fetal. No Congresso, especialmente na Câmara, ao mesmo tempo em que são apresentados projetos de retrocesso nesse campo de tempos em tempos, nota-se a conformação com a paulatina e progressiva perda da relevância do poder de decisão individual dos deputados.
Tem-se permitido a naturalização massiva das deliberações pelo método da urgência de votação, por acordo de líderes, com supressão dos debates nas comissões, eliminando-se as audiências públicas, enfraquecendo-se significativamente a democracia.
Foi este o método político mais uma vez inicialmente utilizado em relação ao projeto de lei 1.904/2024, que propõe punir mulheres que interrompam a gravidez decorrente de estupro a partir da 22ª semana com pena de 6 a 20 anos de reclusão.
Foi este o método político mais uma vez inicialmente utilizado em relação ao projeto de lei 1.904/2024, que propõe punir mulheres que interrompam a gravidez decorrente de estupro a partir da 22ª semana com pena de 6 a 20 anos de reclusão.
Ou seja, pena superior à do próprio estuprador. Pesquisas já divulgadas indicam que quase 70% dos entrevistados são contrários ao projeto. A urgência de votação foi inicialmente aprovada em 23 segundos, prenunciando aprovação “de boiada”. O presidente da Câmara só recuou diante da grande rejeição social ao projeto. A prosseguirmos nesse ritmo, serão mais de 350 urgências de votação em 2024 (para efeito de comparação, foram 22 em 2008).
Por que a Câmara não aprova com a mesma rapidez e prioridade a urgência de votação do projeto que institui prisão após condenação criminal em 2ª Instância, como fazem todos os países ocidentais democráticos?
Conforme avaliação de Letícia Bonifaz Alfonso, perita do comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, esse projeto viola padrões internacionais de direitos humanos e, se aprovado, representaria ameaça para a vida, principalmente das mulheres mais pobres do Brasil (especialmente menores de 18 anos).
O Estado brasileiro é laico desde a Constituição de 1891, o que é conceitual, mas nada efetivo. Observa-se no dia a dia da Justiça que a grande maioria dos juízes tem a consciência de que o ambiente de julgamentos deve respeitar o caráter laico do Estado, não os adornando com crucifixos, que dizem respeito a uma escolha privada de uma fé.
Mas, nos plenários do STF, do STJ, do Senado e da Câmara há enormes crucifixos, símbolos cristãos, não obstante sejam espaços públicos, coexistindo ali paradoxalmente com o busto de Ruy Barbosa (1849-1923), cultor máximo dos valores republicanos, inclusive da laicidade do Estado, apesar de não sermos uma teocracia.
O Censo demográfico que acaba de diagnosticar nossas entranhas geográficas, econômicas e sociais, detecta que temos 3.737.607 logradouros públicos com nomes começados por “são”, “santo” ou “santa” –são as referências campeãs. Há outros tantos com nomes de coronéis, mas só 640.133. Outros 646.012 são dedicados a homenagear padres, proibidos de ser candidatos a cargos eletivos.
Censo reafirma o que se nota no STF, STJ e nos plenários da Câmara e Senado: a separação é jurídica, mas, na prática, a Igreja protagoniza o debate público antiaborto, desconsiderando as hipóteses legais. A Igreja Católica não reconhece sequer o direito constitucional ao planejamento familiar, considerando-o pecado.
Ao analisarmos em que termos se trava o debate público nas redes sociais em relação ao PL 1.904/2024, observam-se na linha argumentativa doses de histrionismo apelativo, evidenciando-se a desumanidade e a visão da distribuição de justiça como raso exercício de vingança.
Em momento nenhum se considera a ótica da saúde pública, não se admite que a vítima de estupro, que corre risco de morte ou que carrega um feto anencéfalo possa ser extremamente pobre e vulnerável socialmente, o que pode ter dificultado por alguma razão a interrupção da gravidez até ali.
Propor aumentar a pena de prisão de estupradores pode, a essa altura, ser considerado até garantismo penal, pois se fala sem cerimônia em pena de morte, prisão perpétua, cárcere privado, chicoteamento público e castração química de estupradores, desconsiderando a vedação constitucional pétrea a penas degradantes.
A naturalidade é tamanha que parece que inexistem direitos humanos garantidos constitucionalmente. Ou pior, parece que seríamos uma nação adepta de algum fundamentalismo religioso do homem de Neandertal.