Francisco Pedro Jucá. Livre Docente e Doutor em Direito (USP). Doutor em Direito (PUC/SP). Pós Doutoramento em Direito Público (U. Salamanca, Esp.). Pós Doutoramento em Direito Social (U. Nac. de Córdoba, Arg.). Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Financeiro – SBDF. Presidente da Academia de Direito do Trabalho do Mercosul. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Professor Titular da Faculdade Paulista de Direito – FADISP. Juiz do Trabalho de 1º Grau da 2ª Região (SP).

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RESUMO: A compreensão das Finanças Públicas e da vida financeira do Estado em nossos dias demanda uma visão de transversalidade com o Direito, a Economia, a Governança e a Política, sendo marcada pela orientação de sua instrumentalidade a serviço da realização de um Bom Governo, entendido como Direito Fundamental, e, que a seu turno consiste na concretização dos Direitos Fundamentais dos cidadãos. Com isto se impõe haja controle não mais apenas formal, mas, sobretudo da qualidade das despesas públicas tomando como critério o efetivo retorno concreto do despendido com os resultados obtidos.

PALAVRAS CHAVE: Instrumentalidade. Eficiência. Mensuração de resultados. Controle qualitativo. Governança. Direitos Fundamentais.

ABSTRACT: The understanding of Public Finance and the financial life of the State in our days demands a transversal vision with Law, Economy, Governance and Politics, being marked by the orientation of its instrumentality in the service of the realization of a Good Government, understood as a Fundamental Right, and which, in turn, consists of the realization of the Fundamental Rights of citizens. With this, it is imperative that there is no longer just formal control, but, above all, the quality of public expenditures, taking as a criterion the actual concrete return on expenditure with the results obtained.

KEYWORDS: Instrumentality. Efficiency. Measurement of results. Qualitative control. Governance. Fundamental rights.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Perfil conceitual e conteúdo do Direito Financeiro. 3. Constituição e Organização das Finanças Públicas. 4. Estado, Governo e Políticas Públicas. 5. Conclusão. 6. Referências

  1. INTRODUÇÃO

A Presidência do IBEDAFT (Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário) por ocasião do III Seminário Internacional, acontecido em junho de 2023, evento que já vem construindo tradição de qualidade no universo jurídico, sempre com a participação de juristas estrangeiros, propôs como tema de uma breve comunicação o tema: “ Direito Financeiro: importância e utilidade”.

Para atender à solicitação, que vem a ser de certa forma propor uma resposta quanto a essa importância e utilidade, apresenta-se algumas reflexões, naturalmente breves e sumárias, colacionadas neste pequeno ensaio, dando ênfase mais pronunciada na importância e utilidade (real e concreta) do Direito Financeiro, o que serve de fundamento justificador de seu estudo metódico e sistemático, o que por si só responde o porquê se deve estuda-lo.

Partindo de um perfil conceitual da matéria e gizando seu conteúdo, vamos a dimensão constitucional de suas raízes, identificando a vinculação essencial de sua conformação jurídica com as finalidades e objetivos do Estado (até mesmo sua razão de ser), e os reflexos disto nas linhas orientadoras a atividade governativa e da atuação dos mecanismos e seus agentes operadores, na gestão e manuseio das finanças públicas ao império da conformidade jurídica, como só acontece no Estado de Direito Democrático, estabelecido entre nós pela letras expressa da Constituição.

Entendendo-se que a razão e finalidade do Estado e de toda a organização política e administrativa é atender ao seu destinatário essencial que é o ser humano, destaca-se que toda a ação deste aparato (material e imaterial) está orientada obrigatoriamente à busca pela concretização dos Direitos Fundamentais, à construção da sociedade justa, solidária e equilibrada, na qual todos tenham oportunidades reais e concretas de desenvolvimento de seu potencial humano, dentro de suas características e atributos individuais.

Assim, nos se afigura que a compreensão clara do fenômeno financeiro e de sua regulação jurídica, enfim, o estudo do Direito Financeiro, encontra seu horizonte exatamente na contribuição dele para a concretização dos Direitos Fundamentais.

  1. PERFIL CONCEITUAL DO DIREITO FINANCEIRO

Até pela natureza e finalidade deste trabalho não se vai aqui oferecer, propriamente, definição e conceito completo do Direito Financeiro, diversamente, em voo sobre reputados doutrinadores do tema, vamos colacionar traços de suas formulações e, mais adiante, fazer as inferências que consideramos úteis.

O Jurista Marcus Abraham1 oferece explicação lapidar quando dá conta de que: “O Direito Financeiro é destinado a disciplinar a atividade financeira do Estado, ou seja, é o conjunto de normas que regulam o relacionamento do Estado com o cidadão para arrecadar, gerir e aplicar recursos financeiros, de acordo com o interesse público.”

Régis Fernandes de Oliveira2 pontua:

Podemos definir o direito financeiro como “o conjunto de princípios e regras que dispõe sobre a arrecadação das receitas não tributárias, colocando-as no orçamento, estabelece as despesas, realiza-as, controla-as por seus órgãos e instrumentos de controle, administra receitas e despesas, distribui-as entre os diversos entes federativos, exige responsabilidade na aplicação dos recursos e impõe sanções às infrações cometidas.

Kiyoshi Harada3, de forma enriquecedora aponta: “Podemos dizer que o Direito Financeiro é ramo do Direito Público que estuda a atividade financeira do Estado sob o ponto de vista jurídico.”

Mas, prossegue-se adiante, aduzindo aspectos que são relevantes para a reflexão que se faz neste estudo, quando menciona4:

Seu objeto material é o mesmo da Ciência das Finanças, ou seja, a atividade financeira do Estado que se desdobra em receita, despesa, orçamento e crédito público. Enquanto esta estuda esses desdobramentos sob o ponto de vista especulativo, o Direito Financeiro disciplina normativamente toda a atividade financeira do Estado, compreendendo todos os aspectos em que se desdobra.

Ricardo Lobo Torres5 propõe:

O Direito Financeiro, como sistema objetivo, é o conjunto de normas e princípios que regulam a atividade financeira. Incumbe-lhe disciplinar a constituição e a gestão da Fazenda Pública, estabelecendo as regras e procedimentos para a obtenção da receita pública e a realização dos gastos necessários à consecução dos objetivos do Estado.

O jurista português Antonio L. de Sousa Franco6 ensina:

A actividade financeira envolve complexas arbitragens de interesses e uma estruturação institucional, articulada em razão de fins públicos e do exercício do poder político ou da autoridade pública; por força tem e então de ser regidas por normas jurídicas e determina a existência de instituições, situações e relações jurídicas. Daí que, tomando-a imediatamente como objecto de uma regulação jurídica, ela dê origem ao aparecimento de um complexo jurídico (ordem normativa e ordenamento concreto) e de uma disciplina da ciência jurídica, designados todos por Direito Financeiro. As normas jurídicas que regulam a actividade financeira em função de valores, fazem-no fundamentalmente em dois planos: I)-o da organização e funcionamento interno da atividade financeira de Estado e demais entidades públicas; 2)- o das relações financeiras entre o Estado e outras entidades, nomeadamente os particulares.” E mais adiante, arremata: “O Direito Financeiro é assim o ramo do Direito que regula, mediante um regime próprio, nascido no século XVIII, a actividade financeira.

Alexandre Barros Castro7 sugere: “O Direito Financeiro é um ramo autônomo do Direito Público, que estuda os preceitos sore receita pública em geral, gestão patrimonial, dispêndio dos serviços públicos, arrecadação tributária, elaboração orçamentária e tributária, além de toda a escrituração contábil.”

Feito este sobrevoo, podemos desde já fazer as primeiras inferências que se julga relevantes.

A primeira delas é que toda a atividade financeira desempenhada pelo Estado tem fundamento no exercício concreto de poder político, tanto para a obtenção de recursos financeiros como também para o seu dispêndio. Ora, se estamos em um Estado de Direito, por óbvio, que todo este ciclo em que o Poder Político se opera necessariamente está submetido a ordem jurídica – de forma imperativa -, exatamente para que seja, como todo o poder, limitado e controlado, sob pena de ser mero arbítrio, sem controle, negação absoluta do Estado de Direito mesmo.

No que respeita a obtenção dos recursos, tal deita raízes da solidariedade social necessária e inerente à organização humana, da qual decorre o dever de todos e de cada um em contribuir, na medida de suas posses e capacidades, para construir o interesses geral, identificado nas opções políticas em consenso na sociedade; da mesma forma, no que respeita ao dispêndio, há de estar submetida à concretização destes mesmo interesses gerais, os quais, naturalmente, estão orientados às representações dos valores vigentes na sociedade a seu tempo.

Noutras palavras, da mesma forma que o Estado enquanto organismo não é um fim em sim mesmo e o governo, atividade que o opera e o põe em atividade, também não o é, a conclusão necessária é a de que a gestão e aplicação destes recursos igualmente está jungida aos mesmos valores e princípios, tudo em conformidade com um sistema normativo dotado de coerência e harmonia interna, voltado as essas mesmas finalidades e objetivos, sendo inegável (e mesmo essencial) seu caráter político, como o pioneiro Aliomar Baleeiro8 dá conta ao afirmar: “Necessidade pública é toda aquela de interesses geral, satisfeita pelo processo do serviço público. É a intervenção do Estado para provê-la, segundo aquele regime jurídico, que lhe dá o colorido inconfundível. A necessidade torna-se pública por uma decisão dos órgãos políticos.”

Temos, pois, assim, que a atividade estatal em todos os níveis, instâncias e formas está direcionada à uma finalidade, constituindo-se, assim, em instrumento para a funcionalidade do sistema, viabilizando a obtenção de resultados concretos que vão ao encontro dos interesses da sociedade que estejam estabelecidos, como se pode acompanhar na visão do já citado Ricardo Lobo Torres9:

Característica importantíssima da atividade financeira é a de ser puramente instrumental. Obter recursos e realizar gastos não é um fim em si mesmo. O Estado não tem o objetivo de enriquecer ou de aumentar seu patrimônio. Arrecada para atingir certos objetivos de índole política, econômica ou administrativa. Apesar de instrumental, a atividade financeira não é neutra frente aos valores e princípios jurídicos, senão a eles se vincula fortemente.

  1. CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DAS FINANÇAS PÚBLICAS

Se se atenta para o fato (essencial) de que existe um Poder Financeiro do qual o Estado é detentor, porque arrecada recursos a partir de parte da riqueza produzida pelos cidadãos e suas atividades e, por outro lado, faz a aplicação destes recursos no desenvolvimento de atividades que alcançam de certa forma todo o conjunto da cidadania, é forçoso concluir que esta atividade encerra um conteúdo enorme de poder político, que, como tal, no contexto de um Estado de Direito, como já se observou antes, deve estar sujeito à limitação e controle, de sorte a prevenir, evitar e, mesmo quando necessário, coibir os excessos e abusos, no seu exercício.

Exatamente por isso, o emolduramento do Direito Financeiro demanda estar inserido na Constituição, hoje não apenas naquilo que se refere a elaboração e execução do Orçamento com controle à posteriori, mas, mais além, merecendo atenção especial e cada vez maior naquilo que diz respeito à governança e a gestão dos recursos, de sorte que a aplicação ou empregos deles guarde afinidade e, mais do que isso, fidelidade para com os objetivos estatais, obedecendo aos princípios orientadores e com os critérios de definição próprios, tudo isso inserido no texto constitucional, vindo a ser o que o já citado Ricardo Lobo Torres denomina de Constituição Financeiro, como sendo o conjunto de normas disciplinadoras, no nível constitucional, de toda a atividade financeira estatal, com especial destaque no Estado Social, como sendo aquele que centra toda a sua atividade e atuação na promoção e realização do bem estar geral da sociedade, seu desenvolvimento pleno e substancial, dando meios e instrumentos jurídico-institucionais para enfrentar e superar as crises cíclicas da economia e mesmo da sociedade. Ilustra-se com as palavras do autor10:

O Estado Social seria impensável sem a Constituição Financeira, pois que sua essência repousava na definição constitucional das limitações do poder tributário frente às liberdades individuais e à propriedade privada; como observa Forsthoff, “se inexistisse a distinção entre a imposição tributária e a expropriação da propriedade, retirar-se-ia do Estado Social hodierno a sua fundamentação constitucional.” A segunda grande crise fiscal do século XX, que se aguçou na década de 1980, só foi superada com a reformatação do Estado Fiscal e da sua Constituição Financeira, ancorada em princípios como os do equilíbrio orçamentário, proporcionalidade tributária, responsabilidade fiscal, a transparência financeira, proteção da concorrência, eficiência e apoiada em novas fontes financeiras surgidas no ambiente da globalização e da informática (tributação dos intangíveis).

Mas a concepção que se propõe para compreender as finanças públicas nas suas raízes constitucionais coaduna com a ideia de constituição total, acerca da qual Manoel Gonçalves Ferreira Filho11 elucida: “Aplicado ao Estado, o termo “Constituição” em sua acepção geral pode designar a sua organização fundamental total, quer social, quer política, quer jurídica, quer econômica. E na verdade tem ele sido empregado – às vezes – para nomear a integração de todos esses aspectos – a Constituição total ou integral.”

No mesmo sentido Jorge Miranda12, observa a respeito:

Sendo o Estado comunidade e poder, a Constituição nunca é apenas a Constituição política, confinada à organização política. É também Constituição social, estatuto da comunidade perante o poder ou da sociedade politicamente conformada. Estatuto jurídico do Estado significa sempre estatuto - do poder político e estatuto da sociedade – que dizer, dos indivíduos e dos grupos que a compõem – posta em dialética com o poder e por ele unificada. E, sendo Constituição do Estado (em si) e Constituição de Direito do Estado, necessariamente abarca tanto o poder quanto a sociedade sujeita a esse Direito.

Linares de Quintana13 tratando do conceito específico de Constituição:

(...) do qual deriva o adjetivo constitucional, como qualificativo de um determinado tipo de Estado – que única e exclusivamente expressa a ideia de um ordenamento jurídico estatal orientado a consecução de um fim supremo e último: a garantia da liberdade e da dignidade do homem na sociedade, regime que implica em direitos individuais e sociais. Somente o Estado que tenha uma Constituição com um conteúdo teleológico semelhante justifica a qualificação de constitucional e tem especificamente uma Constituição.

Como já se pode inferir, a Constituição Integral (como a vemos) implica na organização jurídica não apenas do Estado, mas também da sociedade na sua totalidade, porque reconhece status político às relações sociais e econômicas que geram efeitos (direitos ou indiretos) em outras relações e instituições, repercutindo, não importa em que grau, no contexto da sociedade. E assim é porque estado e sociedade são organismos vivos, interativos e com dinâmica própria, o que torna indispensável regulação adequada e abrangente. O pano de fundo de todo este conjunto é o que se pode considerar como sendo “conjunto político integrado”, cabendo à medida justa e precisa, a consideração de Jorge Miranda14 ao lecionar:

Assim, antes de mais, enquanto parcela do ordenamento jurídico do Estado, a Constituição é elemento conformado e elemento conformador das relações sociais, bem como resultado e fator de integração política. Ela reflete a formação, as crenças, as atitudes mentais, a geografia e as condições econômicas de uma sociedade e, imprime-lhe caráter, funciona como princípio de organização, dispõe sobre os direitos e os deveres de indivíduos e dos grupos, rege seus comportamentos, racionaliza as suas posições recíprocas perante a vida coletiva como um todo., pode ser agente ora de conservação, ora de transformação. Porém, por ser Constituição, Lei Fundamental, Lei das Leis, revela-se mais do que isso. Vem a ser a expressão imediata dos valores jurídicos básicos acolhidos ou dominantes na comunidade e política, a sede da ideia de Direito nela triunfante, o quadro de referência do poder político que se pretende a serviço dessa ideia, o instrumento último de reivindicação de segurança dos cidadãos frente ao poder.

Já é possível observar que o “direcionamento” da antes referida Constituição Financeira, em harmonia e sistematização com a Constituição na sua integralidade, está voltado necessária e obrigatoriamente aos valores, referências e objetivos nela insculpidos e orientado pelos princípios explícitos e implícitos nela contidas.

Com esta leitura, identifica-se com clareza que o regramento constitucional e infraconstitucional da vida financeira do Estado ganha forte caráter instrumental, na medida em que vem a ser o elemento essencial para a realização das atividades estatais, com o uso dos recursos financeiros obtidos da sociedade em benefício dela própria, na conformidade com as prioridades e escolhas políticas dela, debuxadas nos consensos políticos estabelecidos (pactuados) através das instâncias decisórias formais, informais e cooperativas existentes no organismo social na sua totalidade.

Há de ser destacado que a organização das finanças públicas, em conformidade com os aspectos conceituais e principiológicos até aqui expendidos, está obrigatoriamente jungida ao regramento constitucional respectivo, o que significa dizer, hão de estar ordenadas em todo o ciclo respetivo com a estrita observância daquilo que antes se mencionou como sendo Constituição Financeira.

A organização não basta que seja tecnicamente correta e adequada sob o aspecto formal, há de conter os traços fundantes da natureza instrumental que lhe é própria, portanto, posta como meio útil (essencial até), para viabilizar a ação estatal/governamental direcionada ao atingimento dos objetivos constitucionais preconizados através da realização de Políticas Públicas, enfim, todas as ações de Estado e de Governo, no mesmo sentido, efetivando de fato as escolhas políticas feitas pela sociedade no processo de consenso democrático para atender às demandas sociais formuladas, reconhecidas e estabelecidas.

  1. ESTADO, GOVERNO E POLÍTICAS PÚBLICAS PAR A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Vem-se destacando ao longo de todo este estudo o traço instrumental das finanças públicas, a forma da sua organização e gestão, portanto alcançando a todo o ciclo: arrecadação, gestão, aplicação e controle, de maneira sistêmica, orgânica e direcionada à objetivos e finalidades determinadas, na conformidade das demandas acolhidas no contexto da pactuação social, definida na conformidade com as instâncias de decisão política institucionais e formais.

A característica apontada perpassa as instituições do Estado, como se mencionou antes, que é uma estrutura organizacional, em princípio, hábil e suficiente para buscar os interesses gerais da sociedade; do Governo, entendido como aparato estrutural e humano de organização formal e racional de recursos com a finalidade de, valendo-se da estrutura estatal em funcionamento, dar curso às ações concretas, Políticas Públicas, voltadas à concretização e efetivação dos Direitos Fundamentais dos cidadãos, de sorte a perseguir em caráter permanente os meios e modos do pleno desenvolvimento humano, em todas as suas dimensões.

A função essencial da organização política em nossos dias vai muito além da organização do Poder Político, as maneiras de aquisição, manutenção, exercício e transmissão dele, desaguando necessária e obrigatoriamente na realização de ações concretas que vão ao encontro das necessidades da sociedade, de seus interesses politicamente legitimados pelo consenso democrático na conformidade com o processo decisório, acontecido nas instâncias pertinentes que estejam estabelecidas.

O delineamento destes interesses (bem como, interesses geral ou público) é feito pela atividade governamental através de seus órgãos, com a interpretação das demandas e a formulação de ações destinadas a atender tais demandas (sempre obedecida a reserva do possível), em conformidade com uma escala de prioridades que, por natureza e pertinência, está inserida nesta mesma interpretação concretizadora a que se alude.

Exatamente a partir da interpretação feita devem ser formuladas “as respostas” concretas e concretizadoras, através do instrumento denominado de Políticas Públicas, que alcançam o variado e largo espectro em face a diversidade enorme de demandas.

Para a concretização destas Políticas Públicas são necessários os recursos financeiros arrecadados da sociedade, significando que, com fundamento na solidariedade social que embasa a organização da sociedade mesmo, cada membro da sociedade contribui com parcela determinada parcela de sua riqueza, destinando-a a financiar a ação estatal através das políticas públicas, através das ações de Estado e de Governo, tudo em conformidade com aquilo que está constitucionalmente estabelecido.

É importante acentuar aqui ser inaceitável o divórcio entre tais ações e a real moldura constitucional da teleologia e dos princípios fundantes, nisto consistindo a conformidade constitucional inerente à qualificação de Estado não apenas de Direito, porque conformado e operado conforme o Direito, mas do Direito, no sentido de que busca a concretização dos valores contidos na ordem jurídica, já que estes espelham o que se considera a vontade geral da sociedade, noutras palavras, integra o universos das escolha feitas.

Com efeito, a atividade governativa e a responsabilidade dos agentes que a exercem está inteiramente submetida a este desenho, remetendo o necessário espaço discricionário (escolhas concretas) àquilo indispensável à flexibilização necessária e adaptativa na execução das ações em busca de tais objetivos. Isto significa dizer que a atividade governamental caminha na concretização daquilo que está posto e determinado pela e na ordem jurídica, até porque, esta é a ordem estabelecida pela sociedade.

Destarte, toda a atividade e toda a ação desenvolvidas hão de coincidir no mesmo sentido e direção – concretizar e efetivar os Direitos Fundamentais -, e isto consiste em prestar os serviços públicos, entendido o termo na sua acepção clássica e tradicional que engloba todas as atividades estatais, com direcionamento claro.

Implícito a tal direcionamento está aquilo que hoje se consagra como sendo “qualidade da despesa pública”, e que tem conteúdo bem mais amplo e profundo do que os aspectos formais de regularidade de fluxo de recursos, bem mais porquanto nela se tem a eficiência real dos dispêndios, que significa a capacidade real de resposta direta e mensurável dos resultados obtidos e alcançados com o desembolso feito.

Por óbvio, isto tudo se reflete no que hoje se chama de qualidade governativa, como sendo o emprego técnicas e práticas de gestão adequadas e aperfeiçoadas de sorte a extrair os maiores e melhores resultados das ações empreendidas e dos recursos dispendidos, significando o retorno em benefícios à sociedade e aos indivíduos de tudo o que é feito.

Naturalmente não se vive no mundo ideal, tem-se sempre presente as limitações não raro severas, impostas pela reserva do possível, assim, as demandas e objetivos não podem ser atendidos simultaneamente, é imperioso o escalonamento com a fixação de uma escala de prioridades, o que também com frequência coloca os dolorosos dilemas de escolhas (como ensinam os economistas: canhões ou manteiga). O que o Estado de Direito Democrático (definição constitucional do Estado brasileiro) impõe é que também as escolhas determinantes da citada escala de prioridades sejam transparentes, clara, e também ela, objeto de consenso político, o que é uma das tarefas mais difíceis e delicadas da atuação de governo, forçoso é reconhecer. Talvez aí esteja algo da arte na política.

É mais ou menos o que pondera o já citado Antonio de Sousa Franco15 quando diz:

Sem que os direitos, liberdades e garantias do tipo clássico sejam necessariamente subalternizados (embora possam sê-lo, quando as finanças intervencionistas se integram numa estrutura de Estado autoritária, ou até totalitária), surgem, todavia, com crescente expressão financeira, direitos econômico-sociais. Assim, o direito à segurança social, o direito ao trabalho e ao emprego, o direito à saúde, o direito à educação, a nova dimensão da igualdade de oportunidades e a qualidade de vida, exprimem-se em numerosas pretensões, que determinam prestações por parte do Estado, da Administração Pública ou de outras entidades públicas – portanto, aumento das despesas e do setor público em geral.

O painel da gestão pública em geral e da gestão das finanças públicas em particular é realmente amplo e complexo. O crescimento da sociedade não apenas demográfico, mas na multiplicação (quase infinda) das variedade e peculiaridades dos segmentos sociais, e ainda mais, a fugacidade das convergências de interesses, tornam cada vez mais difícil o estabelecimento de linhas gerais de ação e com isso de destinação de recursos e aplicação deles com eficiência, conduzindo o processo a uma “era de incertezas” mesmo, o que exige cada vez mais cuidado, atenção, discernimento e capacidade de aglutinar e harmonizar interesses e reivindicações.

Neste quadro, as Finanças Públicas, sua organização, regulação e gestão, também ganham complexidade especial.

E tal é importante (fundamentalmente importante) porque a sociedade ganha cada vez mais consciência, porque sente diretamente na sua vida cotidiana o peso da tributação, da parcela de sua riqueza que tem que transferir para o Estado cumprir suas funções, e, também, no que respeita ao retorno efetivo e concreto dos resultados e consequências das ações governamentais.

Pode-se dizer que hoje, como nunca, a vinculação da regulação jurídica das finanças públicas, tanto no nível constitucional como no nível infraconstitucional, tem implicações e reflexos cada vez maiores e mais intensos na vida do cidadão, no seu prosaico dia-a-dia, o que leva a conclusão necessária de que a compreensão, mesmo a técnica superficial do sistema, valoriza o estudo do Direito Financeiro, já que é cada vez mais perceptível que assistimos a construção de uma “Cidadania Financeira”, ampliação da dimensão de cidadania que alcança a movimentação financeira do Estado em seus pontos de contato (cada vez maiores) com a vida dos cidadãos. É fato que estes sempre existiram, o novo é que aos poucos, gradativamente, a percepção deles vai crescendo e ganhando corpo.

É razoável e necessário destacar que a atuação do Parlamento, através de seus mecanismos, influenciando na destinação e aplicação de recursos à determinadas finalidade, a nosso ver, aumenta a conexão com a sociedade na medida em que aproxima ações governamentais e recursos públicos de demandas concretas de segmentos da sociedade, parcelas da populações ou regiões geográficas, o que é positivo, na medida em que acentua o caráter instrumental a que se vem fazendo referência ao longo deste breve estudo.

Diante do que se viu, quando se cogita de controle, seja interno, seja externo, há que se considerar que o modelo tradicional que enfatiza a formalidade da prática do que chamamos de atos administrativo-financeiros, sua conformidade com a ordem jurídica positivada, está superada, não só pelo tempo, mas sobretudo pelas necessidades atuais e pela expectativa de ação estatal que permeia a sociedade civil, a qual registre-se é legítima, especialmente se considerado o complexo universo relacional que envolve a todos.

O enfoque necessário (indispensável até) é o de atentar para a qualidade das despesas realizadas, buscando a mensuração dos resultados obtidos com elas, identificando as respostas dadas pelos fatos, as mudanças acontecidas, os efeitos alcançados, constituindo o que se pode considerar como sendo de qualidade por resultados, o que vem a ser, e em grau considerável, elemento de legitimação política da ação governamental, que repousa no que Casalta Nabais chama de “dever fundamental de pagar impostos”, com o fito precípuo e fundamental de atender os “direitos fundamentais” constitucionalmente estabelecidos, finalidade maior do Estado, chegando a ser, até, a razão essencial de sua existência, já que como antes se referiu não existe para si próprio, mas para a sociedade e para a cidadania.

Esta é a compreensão atual do Direito Financeiro. Percebê-lo como instrumento de promoção humana através da gestão controlada e eficaz dos recursos financeiros, sempre limitados, e como tal, insuficientes para atender prontamente a todas as demandas da sociedade, mas pelo menos hão de estar compatíveis com a execução daquelas Políticas Públicas voltadas aos objetivos estabelecidos na escala de prioridades decidida politicamente pela sociedade, através das suas instâncias formais e institucionais.

  1. CONCLUSÕES

A importância e utilidade do Direito Financeiro apresenta-se inquestionável quando se considera sua instrumentalidade à serviço da execução das atividades estatais materializadas em Políticas Públicas que vão ao encontro daquilo que a sociedade escolheu como prioridade dentre seus interesses e aspirações em ver concretizados.

Sem dúvida, há e haverá sempre a necessidade uma visão pragmática e acompanhamento formal, relativa à conformidade jurídica da atividade financeira no seu todo, porém, ganha relevo especial agora, no tempo em que vivemos, a busca pela boa governança financeira que contém a necessidade enorme de qualificação dos gastos, centrando a atenção na relação essencial entre dispêndio e resultado concreto e mensurável.

Integra o conjunto o universo das ações, decisões e práticas componentes da concepção de bom governo, como sendo aquele que identifica, interpreta e problematiza as demandas e aspirações da sociedade, de seus diversos segmentos, que é de uma variedade gigantesca e cambiante; sendo capaz de, a partir desses elementos, formular ações, atividades e ações, e executá-las com a eficiência necessária.

Naturalmente que para que todo esse processo de governo tenha curso regular e capaz de produzir resultados concretos demanda de recursos financeiros destinados a custeá-los, da mesma forma que a gestão em si das atividades e tarefas, também a gestão financeira há de ser técnica, precisam coincidir em seus passos, e principalmente, na busca dos resultados pretendidos.

Esta articulação necessária é que vem a constituir da concepção de Bom Governo, como sendo um governo capaz de fazendo funcionar a máquina estatal com eficiência, obter resultados concretos no mundo da realidade social, não apenas mensuráveis, por razões de gestão, mas sensíveis à sociedade por legitimação política de quem, exercendo o poder, os execute.

Assim posto, no contexto do sistema de Direito Público, naquilo que Lobo Torres16 chama de Constituição Financeira, do que é consectária a ordem infra constitucional em toda o seu desdobramento hierárquico normativo, vindo a formar a Ordem Jurídica Financeira – Subsistema normativo, inserido no universo do Sistema Total, que é a ordem jurídica e, em harmonia e integração com este mesmo sistema, ganha um papel a cada dia mais relevante, merecendo assim e por isso mais acurada atenção.

Em abono a afirmação aduz-se que a interação do Estado na Economia, tanto na dimensão da Política Econômica como da Economia Política, envolve cada vez maior volume de recursos, e os reflexos e repercussões destas ações na sociedade como um todo, e também na vida de cada cidadão, impõem seja cada vez mais rigorosamente técnica a gestão e controle do dinheiro público, eis que o Estado não gera nem produz riqueza, antes, abastece-se de parte da riqueza produzida pela cidadania, pelos cidadãos individualmente considerados, e a legitimação política, a justificação jurídica e a finalidade prática desta apropriação compulsória de riqueza, porque derivada de ação tributária, que é impositiva e como tal indeclinável, por isso mesmo chamada de “imposto”, precisa e deve circular na economia como eficiência e eficácia, viabilizando aquelas atividades (públicas no sentido atribuído ao termo pelo já citado Aliomar Baleeiro) voltadas a atender as necessidades e demandas sociais, que vêm a ter a natureza de promoção humana e de concretização dos Direitos Fundamentais.

  1. REFERÊNCIAS

ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro, ed. GenForense, RJ, 2021;

BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças, ed. Forense, RJ, 2012;

CASTRO, Alexandre Barros. Manual de Direito Financeiro e Tributário, ed. Forense, RJ, 2004;

FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, SP., 2015;

HARADA. Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário, ed. GenAtlas, RJ, 2019;

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo II, ed. Coimbra, 2000;

OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro, ed. Thomson Reuters, SP, 2015;

QUINTANA, Linares de. Tratado de La Ciência del Derecho Constitucional – Argentino e Comparado, Tomo III, ed. Plus Ultra, Buenos Aires, 1978;

SOUSA Franco. Antonio L. de. Finanças Públicas e Direito Financeiro, ed. Almedina, Coimbra, 2015;

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário, ed. Renovar, RJ, 2008.

 

1 Curso de Direito Financeiro Brasileiro, ed. GenForense, RJ, 2021, p. 31

2 Curso de Direito Financeiro, ed. Thomson Reuters, SP, 2015, p.206

3 Direito Financeiro e Tributário, ed. GenAtlas, RJ, 2019, p. 17

4 op.cit.loc.cit

5 Curso de Direito Financeiro e Tributário, ed. Renovar, RJ, 2008, p.12

6 Finanças Públicas e Direito Financeiro, ed. Almedina, Coimbra, 2015, p.97

7 Manual de Direito Financeiro e Tributário, ed. Forense, RJ, 2004, p.15.

8 Uma Introdução à Ciência das Finanças, ed. Forense, RJ, 2012, p.p.4-5

9 op.cit.p.5

10 op.cit.p.20

11 Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, SP., 2015, p.20

12 Manual de Direito Constitucional, Tomo II, ed. Coimbra, 2000, p.21

13 Tratado de La Ciência del Derecho Constitucional – Argentino e Comparado, Tomo III, p.108, ed. Plus Ultra, Buenos Aires, 1978

14 op.cit.68

15 op.cit.p.65

16 op.cit.