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Francisco Pedro Jucá. Livre Docente em Direito Financeiro (USP). Doutor em Direito do Estado (USP). Doutor em Direito das Relações Sociais (PUC/SP). Pós Doutoramento Direito Público (Universidade de Salamanca-Espanha). Pós Doutoramento Direito Social (Universidade Nacional de Córdoba-Argentina). Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Financeiro-SBD-F. Membro e Integrante do Conselho Consultivo e de Orientação do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário-IBEDAFT. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cad. 07. Membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas, Cad. 14. Membro da Academia Paulista de Magistrados. Presidente da Academia de Direito do Trabalho do Mercosul. Foi Conselheiro do Conselho Consultivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT, vinculada ao Tribunal Superior do Trabalho. Professor Titular da Faculdade Paulista de Direito-FADISP. Juiz do Trabalho de 1º grau da 2ª Região, São Paulo.

 

RESUMO: É estudado neste ensaio o processo de ausculta dos interesses das diversas parcelas da sociedade e a condução para a formação de consensos à respeito, por iniciativa do Poder Executivo, e a formulação das respostas à tais consensos com vistas a atende-los através de Políticas Públicas. A Formação dos consensos, bem assim como a formulação das correspondentes Políticas Públicas e ações de governo contam necessariamente com a participação do Parlamento, inclusive como agente de fortalecimento da legitimação política, tanto dos governantes quanto das atividades que desenvolvem. A concepção de atividade governativa envolve os chamados poderes do Estado, atuando nas suas competências constitucionais em harmonia, compartilhando a responsabilidade política, e daí acontecerem eventuais desencontros e até mesmo atritos que se resolvem pela auto-contenção, com a estrita observância da Constituição e a fidelidade ao texto constitucional ao longo de todo o processo governativo.

SUMÁRIO:
1. Introdução.
2. Formação de consensos, identificação de demandas e Poderes do Estado.
3. Conclusões

PALAVRAS CHAVE: Harmonização de interesses. Formação de consensos. Governo através dos três Poderes. Autocontenção. Observância e fidelidade ao texto constitucional.

  1. Introdução

     Neste ligeiro ensaio, convida-se à reflexão e discussão sobre o tema, abordando a concepção, formulação e execução das políticas públicas, tendo como pano de fundo a separação tripartite de poderes, destacando o papel de cada um deles, suas funções constitucionais, os limites delas e as maneiras de administrar e resolver os eventuais atritos da concorrência entre eles.

     O ponto de partida é a concepção de governo, entendido enquanto direção integral do Estado e da sociedade e suas relações, o que significa dizer que os três poderes exercem a função de governo dentro de seus perfis e atribuições constitucionais, daí se justificando e fundamentando a dicção de harmonia e independência que deve conter, e também a colaboração e apoio mútuo, tanto no campo político, quanto no campo governativo propriamente dito.

     A sociedade organizada implicitamente pactua a forma da organização, o processo pelo qual as relações internas acontecem e se desenvolvem; concerta, através da formação de consensos políticos em torno de interesses preponderantes de suas partes e, assim, estabelece objetivos e finalidades para os quais direciona os esforços e ações da estrutura organizacional que formulou.

     Destes consensos decorrem as demandas da sociedade com traço mais forte de concretitude, que ganham corpo e substância ao longo do trânsito delas pelas estruturas e instâncias decisórias, daí resultando a categoria genérica das “demandas públicas”, que o Direito Público tradicional oferece como conceito aberto de “necessidades coletivas públicas”, nas quais são acomodados os interesses gerais do conjunto social e de parcelas significativas dele.

     A resposta a estas demandas é que faz movimentar a ação estatal, é buscando atendê-las que o Estado encontra a sua razão de ser e existir, porquanto ele existe pela e para a sociedade que o constrói, como já acentuou Ataliba Nogueira em sua memorável tese de Cátedra: o Estado não é um fim em si mesmo significando que não existe para si, mas, para a sociedade. Neste particular tem-se a visão da natureza instrumental do Estado, é um instrumento do qual a sociedade se vale para buscar seus objetivos e interesses. É a palavra de Rafael Bielsa1: “Toda a função do Estado é determinada pelas necessidades coletivas, e como estas além de jurídicas são de ordem econômica, cultural e assistenciais, conclui-se que o Estado deve realizar funções sociais.”

    O governo, tal como entendemos, é o conjunto de estruturas e pessoas que faz funcionar o Estado, desenvolvendo ações e atividades direcionadas a alcançar os objetivos estatais materializados naquilo que foi estabelecido no consenso construído no processo político, conforme antes se referiu.

     Ora bem, a organização da estrutura estatal, bem assim os fundamentos que o embasam e os princípios que o informam e dão essência estão estabelecidos na Constituição, que nesta visão vem a ser o instrumento jurídico do pacto político, ao qual dá forma, organização, meios e instrumentos de controle e exigibilidade. Assim sendo, pode-se afirmar que a organização e funcionamento do Estado e do Governo estão emoldurados no texto constitucional e, porque a ele submetidos, têm vinculação em tudo aos princípios e mandamentos ali estatuídos.

     É importante destacar que neste emolduramento tem-se estabelecido o que se pode considerar como limite de licitude, donde tudo aquilo que a este ultrapasse, eivado está de ilicitude, sendo assim, de ser rejeitado pela ordem jurídica, desprovido de valor e eficácia e, mais ainda, atribuindo responsabilidade àqueles que os praticam, deram causa ou dele obtiveram benefícios. Nesta formulação, tem-se o perfil de conformidade de juridicidade, de bloco de juridicidade, vez que tudo o praticado há de estar conforme o estabelecido, limitado e definido pela ordem jurídica.

     É com esta conformação e perfil que todo o processo de governo e de administração é determinado e deve ter o seu curso.

    É importante destacar que, observados esses traços essenciais, tem-se os meios e formas de administrar e solver os problemas e atritos internos, mesmo desencontros, que devem ser compreendidos como vicissitude natural da condição humana, já que se vive em uma sociedade de seres humanos, com todas as suas contingências e limitações, características orientações.

     Com efeito, a compreensão mais clara do tema implica sejam considerados, não apenas a formulação constitucional positivada que dita o texto constitucional, mas também, e com especial atenção, o modo de funcionamento, a dimensão operacional do sistema, eis que exatamente neste aspecto é que soem acontecer alguns problemas, o mais das vezes desencontros entre aqueles que exercem concretamente a funções estatais e de governo, afinal, como assinala segundo V. Linares de Quintana2:

“Em suma, consideramos que a expressão sistema político é a mais adequada para designar o conjunto da vida política de um país; isto é, a forma ou modo de viver politicamente de um Povo, o estado de atividade dos governantes e governados, a luta política que se desenrola no seio dessa comunidade, dentro e fora do quadro jurídico-constitucional estabelecido pela Constituição, com todas as implicações econômico-sociais, pois é impossível isolar o fenômeno político do complexo e intricado tecido econômico-social em que está inserido. O sistema político é, portanto, o conjunto coerente e coordenado de ideias, normas, princípios, comportamentos, forças, processos, interações e, em geral, todos os demais fatores e circunstâncias que constituem, caracterizam, integram e definem o trabalho e a vida política de um país para que fique claro que as formas jurídicas de Governo e Estado nada mais são do que elementos ou aspectos que integram o conjunto total do sistema político.”

     Identificar o que seria o perfil do processo de concepção e execução de políticas públicas, seu controle, fiscalização e avaliação de resultados, mesmo seu julgamento formal (jurídico) e político, impõe que se leve em conta a pluralidade da formação e composição da sociedade, a variedade enorme das demandas das diversas parcelas, a concorrência e disputa entre elas, as formas de negociação e prevalência, o processo de formação de consensos (sempre preservado o conteúdo democrático de participação social substancial), e assim, considerados tais elementos, pode-se perceber um quadro determinado, entender seu conteúdo e compreender o seu funcionamento.

     Naturalmente que tudo isso leva a marca indelével da contingencialidade humana, enfrenta e vivencia todas as características dela, e, mais do que isso, tem em seu seio a precariedade que é inerente à condição do homem (e sua circunstância – frase clássica de Ortega y Gasset).

  1. Formação de consensos, identificação de demandas e Poderes do Estado

     No sistema governativo Presidencialista, o que temos no Brasil, a figura do Presidente da República incorpora a um só tempo a Chefia de Estado e a Chefia de Governo, enfeixando, assim, as atribuições da direção política do Estado e o comando do Governo. É forçoso admitir, desde logo, que a vastidão e complexidade da sociedade, seus problemas, relações e atividades tem dimensão que em muito supera a capacidade humana de um indivíduo, por mais qualificado que seja, demandando, assim, uma engenharia política e jurídica que, de fato, pulverize tudo isso em uma estrutura razoavelmente grande, capaz de suportar o encargo, ainda que em condições que não sejam as ideais.

     Tem que se destacar também o aspecto político eleitoral, porque a experiência histórica tem evidenciado a sua relevância.

     No mundo ideal, o Presidente precisaria ser eleito ao lado de maioria do Parlamento, organicamente, de sorte a demonstrar a prevalência de uma visão política da sociedade efetivamente hegemônica, ou ao menos significativamente majoritária, portanto, com a capacidade de buscar a concretização desta visão nas atividades de governo. No mundo real, todavia, não é assim. Quase sempre o Presidente é eleito, muitas vezes com uma parcela expressiva do Parlamento, porém que não é a maioria, sendo conduzido a formação de uma base parlamentar, que significa a composição política com outros segmentos, o mais das vezes díspares, e até mesmo conflitantes entre si, de sorte a tornar possível a governabilidade, entendida como a capacidade real de executar efetivamente as tarefas necessárias, com as características que tem o pacto político que se forma. Invariavelmente, nestas hipóteses, o compartilhamento de poder que se impõe, acaba por evidenciar suas contradições e desencontros, remetendo à Chefia de Estado e Governo arbitrar e construir equilíbrio em todo o processo decisório, que alcança não apenas a problematização técnica das demandas sociais identificadas, como também o que respeita a forma, ritmo e maneira de execução, com a necessária acomodação de interesses que gera gigantesca pulverização de poder nas mais variadas esferas e instâncias.

     Diante deste quadro não faltam críticas duras, algumas sob certo ponto de vista pertinentes, que apontam todo o tipo de problemas e desvios no processo tal como se apresenta. Porém, o que não é aceitável é negar a realidade, as coisas são como são. E são assim.

     A sociedade contemporânea é marcada pela fragmentação em pequenos grupos, reunidos em torno de interesses que são comuns em determinadas situações e condições, porém, de duração temporal muito curta para os padrões a que se está acostumado a ver, têm um acentuado grau de fugacidade, são cambiantes, com isso a composição e a dimensão destes grupos se altera constantemente, alterando, igualmente, as posições que adotam.

    Disso resulta que a formação de consensos sobre demandas motivadoras das políticas públicas sofre gigantesco impacto, abalo mesmo, ficando sujeita a constantes e permanentes ajustes e redirecionamentos, impostos exatamente pela fugacidade e mobilidade exacerbada do processo social. É evidente que todo este quadro dificulta enormemente a ação governamental, de qualquer matiz, porquanto exige flexibilidade e capacidade adaptativa enormes e, que nem sempre são possíveis ou factíveis.

      No quadro que se apresenta, não há espaço para dúvida de que identificar demandas, conceber soluções, formular políticas e executá-las é um desafio para gigantes.

      A formulação constitucional que se tem, da separação tradicional dos poderes e funções do Estado, dá sinais claros de insuficiência, pelo menos na leitura que dela se faz, isto porque a complexidade da estrutura e da conjuntura escapa em muito da concepção tradicional, mais esquemática e simples.

     Mais uma vez e recorre ao monumental Linares de Quintana, que observa1:

O pluralismo, inevitável no sistema constitucional, opera como uma espécie de projeção do princípio da divisão e separação de poderes, uma vez que se distribui entre eles o poder exercido pelos inúmeros e heterogêneos fatores que compõem a sociedade democrática, o que, por pelo menos ao mesmo tempo, eles são verificados e equilibrados. Atuam, assim, como uma força de contrapeso, segundo outros

     E, mais adiante, fundado em Loeweinstein, pontua2:

“Dentro de uma concepção do sistema constitucional que atribui significado particular ao controle do poder, Loeweinstein vê um dos controles verticais entremeados entre os detentores e destinatários do poder na multidão de grupos pluralistas que representam coletivamente a infinita variedade de interesses dos membros. da comunidade estadual. E considera que, se há um traço essencial que dá um cunho característico à sociedade de massas da era tecnológica, é sem dúvida a sua fundamentação pluralista e o seu dinamismo. É verdade que a liderança do processo de poder é constitucionalmente atribuída aos detentores do poder: Governo, parlamento, eleitorado. Espera-se que os detentores oficiais do poder harmonizem os interesses conflitantes dos grupos pluralistas por meio de suas decisões políticas em benefício comum da sociedade. Mas assim como os grupos pluralistas influenciam as decisões políticas, eles também influenciam o próprio processo de poder. Dependendo da extensão de sua interação no ambiente político ou específico, os grupos pluralistas funcionam como detentores não oficiais ou invisíveis do poder.”

     O autor tem a inteira concordância.

     Busca-se, aqui, fazer a leitura de uma “separação de poderes” que seja compatível com a realidade social do tempo em que se vive, cujos traços antes se sumariou. Ao fazê-lo, é forçosa a conclusão de uma necessária revisita e ressignificação.

     No sistema presidencialista é incumbência constitucional do Poder Executivo a iniciativa de identificação das demandas, problematização inicial delas e formulação de respostas concretas na forma de Políticas Públicas, voltadas à fazer-lhes face. Noutras palavras, a ele cabe a iniciativa de proposição – propor as soluções.

     É de se ver porém, que diante do quadro que se tem e se referiu antes, não há espaço para o voluntarismo individualista – é incompatível como o tempo e inviável - , com isto é imperioso que o Poder Executivo recorra necessariamente ao espectro político que o sustenta, ouça a sociedade em sua pluralidade, busque precisão na identificação, e, não basta, este processo também se projeta na formulação das resposta; e, com esse procedimento encaminhe a proposição de forma a que espelhe com a maior fidelidade possível o consenso político necessário ao curso regular do processo governativo.

     Não para aí, é preciso admitir que esta proposição, por mais bem elaborada que seja, vai ao crivo político do Parlamento, sujeita a alterações e ajustes de acomodação mais fina de interesses, para, ao fim e ao cabo, estar construída como consensual, com o apoio político necessário e indispensável até para a sua execução com a eficiência e eficácia suficientes para satisfação da expectativa.

     É importante destacar que é deste atender expectativa que se nutre a manutenção da legitimação política do governo e dos governantes, o que exerce papel fundamental para a governabilidade, porquanto é com esta legitimação que se nutre a capacidade real de propor, dirigir e implementar as políticas públicas com o necessário apoio institucional e social. O contrário é a progressiva paralisia do processo governativo.

    À propósito J.H. Meirelles Teixeira3 observa que a “função executiva (governo) é de todos os dias e de todos os instantes, funcionando sem intermitências, operando no concerto, em face de situações reais, concretas e específicas da vida, supondo, assim, espírito de decisão, sangue frio, senso de oportunidade e de medida.”

     Exatamente aí está a causa de que tem a feição de impulsionamento do processo, a ele cabe dar o start, porém, sua atuação depende, também, da colaboração direta dos demais poderes, seja como se viu antes na formulação da decisão política final, onde o parlamento desempenha papel fundamental, seja no controle e fiscalização sistêmica na sua integralidade, especialmente no que concerne à conformidade de tudo com os objetivos e finalidades constitucionalmente estabelecidas, papel que cabe ao poder jurisdicional.

     Tal merece destaque, como acentua Manoel Gonçalves Ferreira Filho4: “Para a doutrina do século XIX, portanto o Executivo era a gestão das relações exteriores, a burocracia, Forças Armadas, a política e o funcionamento dos grandes serviços públicos. Sub lege, e lei houvesse.”

     Os tempos e a evolução trouxeram a modificação substancial do papel e das finalidades do Estado e, em consequência, vê-se surgir um “novo perfil” de poder executivo, com atribuições e responsabilidades mais largas e abrangentes, no qual se dá a necessária alteração, inclusive estrutural, para tornar possível atender às necessidades (gigantescas) que foram surgindo e ganhando corpo gradativamente, destacando-se que em velocidade claramente superior à capacidade de adaptação fundada na tradição e nos costumes anteriores, porque os fatos não “esperam”, impõem-se, exigem resposta pronta e imediata, ainda que imperfeita, como observa Ferreira Filho5:

A mais flagrante das consequências dessa mudança de filosofia do Estado foi a extensão das tarefas de que este foi investido, ao mesmo tempo em que se alargava o campo de outras, que já eram suas. Ora, essa extensão foi principalmente uma ampliação das tarefas assumidas pelo Executivo. A este é que coube criar e gerir serviços assistenciais, tomar o leme da vida econômica e financeira, impulsionar e mesmo dirigir os serviços públicos essenciais espaldeando ou substituindo a iniciativa privada, fraca ou inexistente. Tudo isso recaiu sobre seus ombros porque sua estrutura concentrada lhe permitia as decisões prontas que nesses campos são necessárias. Paralelamente, a aceleração do intercâmbio internacional, dos meios de comunicação, o surgimento de um sistema universal de relações internacionais, estendeu sobremaneira o terreno que já era seu da política estrangeira. Além disso, acentuou a importância desta para a sobrevivência e o desenvolvimento nacionais.

      A esta altura já é possível que se busque perceber uma distinção necessária entre as chamadas atividades de Estado, de caráter permanente e natureza estrutural, que dizem respeito e estão vinculadas à natureza mesmo do ente estatal, e aquelas de governo, cujo fulcro está mais direcionado à dimensão conjuntural, e, por isso mesmo, mais mutável em adequação às circunstancias e necessidades emergentes.

     É esclarecedora a consideração de Celso Ribeiro Bastos quando assinala6:

Não devem ser, ademais, as funções confundidas com as finalidades do Estado, variáveis no tempo e no espaço. Estas últimas definem os objetivos encampados pelo Poder Público e em cuja implementação ele vai se empenhar. A todo o instante o Estado pode redefinir seus fins em vista do atingimento de outros objetivos tidos por prioritários, segundo critério eminentemente político. Já as funções são como moldes jurídicos dentro dos quais deverá ser cumpridas as finalidades estatais. Elas são relativamente fixas e destinadas a vigorar em todo e qualquer Estado, independentemente dos objetivos que persigam.

     Com efeito, o que se infere é que a partir dos objetivos e fundamentos constitucionalmente estabelecidos, examinados os fatos e circunstâncias, apura-se as demandas da sociedade em toda a variedade da sua amplitude, cabendo o Poder Executivo como liderança política eleitoralmente investida, dirigir, conduzir, capitanear o processo de formação dos pontos consensuais que acomodem de maneira razoavelmente estável os interesses em concorrência (disputa real mesmo), arbitrando tal concorrência e formulando alternativas, suficientemente capazes de acomodá-las com razoável grau de satisfação, aquinhoando ao máximo possível os diversos segmentos do tecido social.

     Exatamente, tendo como ponto de partida aquilo que seja consensuado, propor a formulação de formas e maneiras de atender as demandas que se cristalizem deste processo, na forma de ações governamentais (sempre dirigidas aos objetivos estatais constitucionalmente estabelecidos), materializadas em políticas públicas concretas, este vem a ser o papel (função essencial) do Poder Executivo, independentemente do modelo governativo adotado.

      Integra também esta tarefa, a de buscar o apoio político necessário, bem como as ações complementares atinentes ao Poder Legislativo, para pôr o sistema em marcha.

     A maneira como se enfoca, a atividade de governo, na verdade engloba as três funções básicas do Estado, espelhadas na teoria da tripartição, independentemente da leitura que dela se faça ou da organização que esteja no texto constitucional, funcionando de maneira orgânica e colaborativa, com a atuação em conformidade de cada órgão, instituição e agente, sempre nos limites constitucionais, fazendo a proposição, aprovação e acompanhamento (controle político) e fiscalização de congruência com a ordem jurídica (controle jurídico). Como se demonstra, temos como irreal e incompatível com o sistema, a associação da função de governo com a de direção que toca ao Executivo, com exclusividade, remetendo os demais Poderes à papel secundário e acessório. Bem ao contrário, o que se entende como responsabilidade política integral toca aos três, cada qual no seu campo e âmbito.

     Cabe aqui a remissão à observação de José Afonso da Silva7:

Governo é, então, o conjunto de órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada, ou o conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício das funções de poder político, uno, indivisível e indelegável, se desdobra e se compõe de várias funções, fato que permite falar em distinção de funções, que fundamente são três: legislativa, executiva e jurisdicional.

     E mais adiante dilucida8:

A harmonia entre poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro, especialmente dos governados.

     Com efeito, a tensão entre a harmonia constitucionalmente imposta e o sistema de freios e contrapesos é um fato, cujas consequências, embora com moldura jurídica, têm repercussão mais forte, de natureza política até mesmo, como já se fez referência pelas contingências da condição humana, vez que se vive em sociedade de seres humanos, com suas características (qualidades e defeitos), dentre elas a ambição natural pelo poder. E daí decorrem desencontros e disputas, nem sempre bem inseridas na forma jurídica, o que se deve ao considerável campo de atrito próprio de qualquer organização, por mais bem concebida e feita que seja.

     É pertinente a observação de André Ramos Tavares9:

Falar que o Presidencialismo brasileiro atua com base em amplas coalizões significa realizar uma aproximação entre Presidencialismo e Parlamentarismo, já que estreita as relações e dependências entre Executivo e Parlamento.” E comentando a formulação de Fernando Limongi (A Democracia no Brasil: Presidencialismo, Coalizão Partidária e Processo Decisório. In Novos Estudos – CEBRAP, n. 76, SP, nov. 2006, p. 17-41), Ramos Tavares refere citando Limongi, que “as coalizões realizadas pelo Presidente no âmbito partidário-parlamentar não seriam formadas apenas com base em acordos partidários. Mesmo com maioria partidária em sua base, o Governo não garantia a sua sustentação política, devido a outras forças que entravam decisivamente no cálculo político: a heterogeneidade da sociedade, o poder dos governadores e o federalismo.” E comenta: “O problema, portanto, deixava de ser apenas o número excessivo de partidos políticos. E a ideia de Presidencialismo de coalizão não se apresentava como uma solução para esse problema, mas como problema em si, que denunciava a debilidade partidária brasileira e a dificuldade política para governar.

     O que se perquire neste estudo discrepa da afirmação, na medida em que o que Limongi considera dificuldade para governar, considera como coisa positiva que fortalece o consenso político no estabelecimento dos atos, tanto de governo, quanto de administração, portanto como emanação do princípio democrático que está inserido expressamente no texto constitucional, indo exatamente ao encontro dele, o que se entende como desejável, e até mesmo imperativo, conforme a ordem jurídica estabelecida.

     Tal enfoque centraliza a atividade governativa com quase-exclusividade no Poder Executivo, quase pretendendo vê-lo como poder supremo do qual os outros dois são personagens secundários e assessórios, que devem participar ao mínimo possível de tal atividade. É exatamente o oposto do que se entende – a globalidade governativa envolvendo aos três poderes como antes se sumariou.

     Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (FERREIRA MENDES, Gilmar, et GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva/IDP, SP, 2020, p.858) observam bem à molde sobre o tema, no que respeita à harmonia entre os Poderes e a autolimitação ao perfil constitucional de cada qual, pontuando: “A expressão Poder Executivo tem significado variado, Nela se confundem o Poder e o Governo.”

     Cabe perquirir o nível de participação dos dois outros poderes na atividade governativa, bem como a forma de o fazer. E neste particular os autores acima citados (op.cit.loc.cit.) pontuam:

     A referência ao Poder Executivo contempla atividades diversas e variadas que envolvem atos típicos de Chefia de Estado (relação com Estados estrangeiros), celebração de tratados e atos concernentes à Chefia do governo e da administração em geral, como a fixação das diretrizes políticas da administração e a disciplinadas atividades administrativas (direção superior da Administração Federal), a iniciativa de projetos de lei e edição de medidas provisórias, a expedição de regulamentos para a execução de leis etc. (CF, art. 84), a iniciativa quanto ao planejamento e controle orçamentário, bem como sobre o controle das despesas (CF, arts. 163-169) e a direção das Forças Armadas.

     Como se pode depreender, a designação Poder Executivo acaba por descrever, de forma acanhada, as funções desempenhadas, que, por óbvio, transcendem a mera execução da lei. Daí, anota Konrad Hessem, que a expressão Poder Executivo acabou por se transformar numa referência geral daquilo que não está compreendido nas atividades do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. A ideia abrange funções de governo e administração.

      O exercício das atribuições do Poder Executivo há de se fazer em harmonia com os demais Poderes.” (op.cit.loc.cit.)

     Como se vê e entende, a participação é necessária e decorre da natureza mesmo do Estado de Direito Democrático instituído pela Constituição vigente.

     A questão que se põe com frequência é quanto a interferência dos poderes, especialmente do Judiciário, nos atos do Executivo, que em algumas oportunidades excedem ao contido no texto constitucional, fundamentado na interpretação e fixação do conteúdo de princípios constitucionais com algum traço mais forte. Algumas vezes, suspendendo efeitos de atos, outras, desconstituindo-os ou limitando, o que tem contribuído acentuadamente para exacerbar pontos de atrito e conflitividade, o que não se revela útil para as instituições.

      Louis Favoreau et ali (Droit Constitutionnel, ed. Dalloz, Paris, 1999, p. 364) vislumbrando a realidade do final do século XX, e antevendo o século XXI observa com perfeição: “L’évolution contemporaine invite au dépassement des modèles et à une présentation plus pragmatique de système de séparation des pouvoirs”, sutilmente sugerindo revisita, ressignificação e consequente redesenho dos modelos conhecidos e praticados, percebendo insuficiências importantes neles, quando refere:”De même, les notions de régime parlamentaires ou présidentiel dégagé à partir des systèmes de séparation dite “souple” ou “rigide” des povoirs, ne correspondant plus aux modèles “purs” initieux, recouvrent aujourd’hui une grande diversité de situations.” (Favoreau, Louis, Gaïa, Patrick. Ghevontian, Richard; Mestre, Jean-Louis; Pfersmann, Otto; Roux, André et Scoffoni, Guy.)

     É possível que as dificuldades que surgem e ocasionam atrito entre os Poderes, algumas vezes com o perfil de quase conflito, especialmente quando aparenta dar uma ”invasão de competência”, ainda que ditada por circunstância excepcionais (mesmo que alongadas no tempo), estejam mais do que sugerir, demonstrar a necessidade de que a formulação de modelos seja revisitada, ao menos nos aspectos operacionais e do processo de atuação.

     Pode-se perceber o alargamento de participantes do diálogo político, institucionalizado ou difuso, distribuído na sociedade e não incorporado à estrutura estatal, que mesmo assim é capaz de atuar, vocalizando e explicitando demandas sociais concretas, postulando respostas objetivas, exercendo pressão sobre instituições e buscando exercer influência substancial no processo decisório e de execução de políticas públicas, o que de certa forma expande o conteúdo do conceito da democracia representativa, modelo predominante nas sociedades ocidentais porque faz desbordar todo o processo mais além do perfil formal tradicional. Deixe-se claro desde logo que não se vê estes fenômenos como enfraquecimento ou ameaça às instituições, mas apenas um curso histórico e social que impõe revisita de conteúdo conceitual e de perfil estrutural, cujo requisito mais fortemente identificado é a necessidade de permeabilização da participação no diálogo político com e na sociedade como uma todo, incorporando seus diversos e variados segmentos.

     Sendo a democracia representativa o modelo jurídico-político que se adota, como modelagem tradicional, acerca da qual Bernard Manin observa: “desde que se invento esta forma de Gobierno, se han observado invariablemente cuatro princípios em los regímenes representativos:

- Quienes gobiernan son nobrados por elección com intervalos regulares.

- La toma de decisiones por los que gobiernan conserva um grado de independência respecto de los deseos del electorado.

- Los que osn gobiernados pueden expressar sus opiniones y deseos políticos sin estar sujectos al control de los que gobiernan.

- Las decisiones públicas se someten a um processo de debate. (MANIN, Bernard. Los Pincípios del Gobierno Representativo, trad. Fernando Vallespin, ed. Alianza Editorial, Madrid, 2010,p. 17)

     Exatamente com os princípios identificados pelo citado Manin, o que se constata é que, mais do que o redesenho adaptativo da “separação de poderes”, considerada cada vez mais frequente intersecção e transversalidade nas atividades e ações, precisa-se prestigiar, dar espaço e incorporar, com a força necessária, os dois últimos princípios: a livre expressão e manifestação de opiniões e desejos políticos, e a submissão das decisões ao processo do debate, exatamente para seja consolidada a consensuação que se vem referindo ao longo de este estudo.

     Neste quadro, a atuação harmônica, sistêmica e integrada dos três Poderes (cada qual no seu universo competencial), há de ser prestigiada, praticada e realizada no mundo da realidade social e política, o que sem dúvida é fundamental para a estabilização do sistema e regularidade do curso natural do processo, tanto decisório, quanto de execução no mundo factual.

 

Conclusão

     Em nenhum momento se cogitou de apresentar “solução ideal” para problema tão grave e complexo, qual seja, a relação nem sempre harmônica entre o Poderes do Estado, mas, fazer uma incursão preliminar sobre as causas.

     Duas observações podem ser feitas.

     A primeira delas: o modelo precisa ser revisitado, visando conteúdo renovado para sua dimensão conceitual, de sorte a procurar algum grau de coincidência com a realidade posta da sociedade fragmentada.

     A segunda, o balizamento e a formulação competencial constitucional precisa ser cuidadosamente respeitada, o quanto possível, pela autocontenção derivada da consciência dos princípios constitucionais fundamentais, para que se vá formando e consolidando a necessária cultura e convicção de limitação de poder como fator essencial para a liberdade e para a democracia, esta última, cada vez mais consolidada e forte, para garantir o que efetivamente se pretende como Estado de Direito Democrático, como o determina a Constituição em vigor.

1 “El pluralismo, inevitable em el sistema constitucional, opera como uma suerte de proyección del principio de la división y sepración de poderes, ya que el poder que ejercen los innumerables y heterogéneos factores que integeam la sociedade democrática resulta distribuído entre éstos, los cuales, a la vez, se controlan y equilibran. Actuan, de esta manera, como fuerza de contrapeso, al decir de otros.” (LINARES QUINTANA, op. cit. p.249 e segs.)

2 “Dentro de uma Concepción del sistema constitucional que atribuye particular significado al control del poder, Loeweinstein ve uno de los controles verticales intercalados entre los detentadores y los destinatarios del poder em la multitud de grupos pluralistas que representan colectivamente la variedade infinita de interesses de los membros de la comunidade estatal. Y considera que si existe um rasgo essencial que dé um cuño característico de la sociedade de masas de la época tecnológica es, sin duda, el de su fundamento y dinamismo pluralistas. Es certo que el liderazgodel processo de poder está atribuído constitucionalmente a los detentadores del poder: Gobierno, parlmanento, electorado. De los detentadores oficiales del poder se espera que por médio de sus deciciones políticas armonicen los interesses contrapuestos de los grupos pluralistas em beneficion comum de la sociedade. Pero como los grupos pluralistas influyen em las decisiones políticas, influyem también em el processo del poder mismo. Según sea la medida de sua interacción em el ambiente político o específico, los grupos pluralistas funcionan como detentadores oficiosos o invisibles del poder.”(op.cit.)

3 MEIRELLES TEIXEIRA, J.H, Curso de Direito Constitucional, Org. Maria Garcia. Ed. Conceito, SP., 2011, p.529

4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, SP, 2012, p.247 e segs.

5 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit. loc.cit.

6 RIBEIRO BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, SP. 2000, p. 342

7 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Ed. Malheiros, SP., 2012, p.110

8 DA SILVA, José Afonso, op. cit. p.112

9 RAMOS TAVARES, André. Curso de Direito Constitucional. Ed. Saraiva, SP, 2022., p. 1.051 e segs.

1 BIELSA, Rafael. Derecho Constitucional, p.99, ed. Da Palma, Buenos Aires, 1954

2 “Em definitiva, consideramos que la expresión sistema político es la más adequada para designar al conjunto de la vida política de um país; que es decir, el modo o la forma de vivir politicamente de um Pueblo, el estado de actividad de governantes y governados, la lucha política que se desarrolla em el seno de dicha comunidade, dentro y fuera del marco jurídico-constitucional fijado por la Constitución, com todas las implicaciones económico-sociales, dado que resulta imposible aislar el fenómeno político de la compleja e intrincada trama econômico-social em que se halla inserto. El sistema político es, por conseguiente, el conjunto coerente y coordenado de las ideas, normas, princípios, comportamentos, fuerzas, processos, interaciones y em general todos los demás factores y circunstancias que constituyen, caracterizan, integram y definen el quehacer y la vida políticos de um país. Do que lo resulta claro que las formas jurídicas de Gobierno y de Estado no son sino elementos os aspectos que integram el conjunto total del sistema político.” (LINARES QUINTANA, Segundo V. Tratado de La Ciência del Derecho Constitucional Argentino y Comparado, ed. Plus Ultra, Buenos Aires, 1985, Tomo VII, p. 50).