FRANCISCO PEDRO JUCÁ. Juiz do Trabalho Titular da 14ªVT/SP. Mestre em Direito Constitucional pela UFPª. Doutor em Direito Privado pela PUC/SP e Direito do Estado pela USP. Livre-Docente em Direito Financeiro pela USP. Pós Doutorado na Universidade de Salamanca – Espanha. Pós Doutorado na Universidade Nacional de Córdoba – Argentina. Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP, do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Senso (Mestrado e Doutorado). Pertence à Academia Paulista de Letras Jurídicas – APLJ, Cadeira 7, Patrono Sampaio Dória. Da Academia Paulista de Magistrados. Sociedade Paulista de Direito Financeiro e da Asociación Hispanobrasileña de Derecho Comparado. Associação Brasileira dos Constitucionalistas Brasileiros – Instituto Pimenta Bueno. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Associação Internacional dos Constitucionalistas, Sociedade Brasileiro de Direito Financeiro (Presidente).

Juca 64919

Resumo: sintetiza-se que o Direito Fundamental ao Bom Governo é o direito fundamental a um governo capaz de produzir efeitos e resultados úteis e compatíveis com o desejado. A ação governamental inepta, incorreta e desviada colide com as finalidades estatais e viola indiretamente os direitos fundamentais na medida em que os impede de ser concretizados ou atendidos, porquanto gera instabilidade, insegurança e degradação do meio social e econômico, vindo a se constituir mesmo em impossibilidade material e real de exercitar direitos.

Palavras chave: Bom Governo. Atuação correta e eficiente. Concretização dos Direitos Fundamentais. Violação indireta de direitos fundamentais. Degradação da ambiência econômica e social.

Abstract: The Fundamental Right to a Good Government is encapsulated as the fundamental right to a government capable of producing effects and results useful and compatible to what is desirable. The inept, incorrect and divergent governmental action collides itself with the public purposes, and indirectly violates the fundamental rights insofar as it hinders them of being fulfilled or accomplished, since it generates instability, insecurity and degradation of the social and economic environment, even forming a material impossibility to exercise rights.

Keywords: Good Government. Efficient and Rightful Acting. Fundamental Rights Acomplishment. Indirect Violation of Fundamental Rights. Degradation of the social and economic Enviroment.

  1. INTRODUÇÃO E PRESSUPOSTO

O que se pretende neste brevíssimo estudo é demonstrar que a existência e atuação de um “Bom Governo”, legítimo, eficiente, cuidadoso e consequente, vem se inserindo no quadro dos direitos fundamentais (constituindo-se em categoria), tanto do indivíduo considerado em si, quanto da sociedade em seu conjunto. Isto porque, tem-se claro que estas características antes mencionadas objetivam a organização política no sentido de atribuir e delinear finalidades e objetivos mais marcados pela concretude. No nosso tempo, é possível observar, especialmente muito recentemente, que a sociedade da informação, remarcada pela atuação nas redes sociais e conexões permanentes entre indivíduos e grupos, com a identificação mais consistente de objetivos, demandas e aspirações, amolda as relações sociais de forma diversa daquela que tradicionalmente se tem, refletindo este fenômeno duramente no que respeita à representação política institucional.

Noutras palavras, a estrutura institucional da democracia representativa tradicional, com o quadro de partidos e representantes nos moldes que deitam as suas raízes no séc.XIX, dá claros sinais de exaustão e superação, revelando-se incapaz de cumprir o papel de intermediação política até então lhe atribuído.

Ousamos perceber que alguns elementos já se apresentam à respeito. O primeiro deles é a quebra da separação entre representantes e representados, a diminuição entre o distanciamento deles, tendo como consequência a mesma quebra no binômio governante e governado. O segundo é que a relação entre tais atores não mais é de quase subordinação, ou de reverência social, entendida esta como “unção” pela escolha, com o traço do formal e o de exclusão do representado no processo decisório das ações.

Cresce, assim, a percepção da relação essencial entre governo e sociedade pela compreensão dos efeitos e consequências das ações e das atitudes do primeiro em relação à segunda. Os temas antes chamados de “de Estado”, distanciados da sociedade e das pessoas, algo quase etéreo, reconhecidamente fora do alcance e compreensão das pessoas comuns e, portanto, coisas de “homens públicos” (seres superiores), ganham nova feição. Gradativamente, a sociedade vem tomando consciência de que estes “temas complexos” lhe dizem respeito diretamente, afetam suas vidas de maneira concreta.

Neste quadro, ganha força a demanda participativa da sociedade (quando menos pela demonstração pública de opinião e interesse), buscando influir concretamente nas escolhas de objetivos e formas de ações governamentais, posicionando demandas concretas (razoavelmente) e exigindo tratamento compatível ou aceitável pelos governantes destes interesses.

O que se pode constatar é que se começa a construir a idéia de exigibilidade de ação eficiente e consequente, eis que a sociedade demanda e busca resultados e efeitos concretos das ações governamentais que vão ao encontro de suas aspirações. No contexto destas idéias em formação, consolida-se a exigência de transparência, de veracidade e fidelidade de discursos, interpretações, dados e todos os elementos relativos à função governativa. É perceptível cada vez mais a prestação de contas de governos e governantes com maior grau de concreção e objetividade na procura pela legitimação e sustentação política.

Há consciência crescente da importância da governabilidade como sendo a capacidade de exercer concretamente o poder político e direcioná-lo no mesmo sentido da demanda social, o que implica na explicação razoavelmente concreta, com elementos consistentes, das variáveis determinantes das escolhas e opções, tanto de objetivos quanto de meios. A problematização das grandes questões da sociedade ganha substância, e, desde aí, vem-se construindo debates, discussões e disputas políticas para enfrentá-las, tornando-se cada vez mais significativo o que podemos chamar de “horizonte de resultados”, em outros termos, o que podemos fazer para resolver e quais as consequências das escolhas e dos atos.

No quadro debuxado, é possível identificar que o governar não mais é aceito como fazer as coisas seguirem como sempre foram feitas, fazer o mesmo da mesma forma, suportando os problemas com resignação fatalista de que tudo é inelutável e, como tal, tem que ser suportado. Bem ao contrário, o que se vê é a irresignação e a busca pela mudança; é fato que ainda sem forma definida, mas, sem dúvidas, em evolução.

Assim temos que a concepção de Estado, onde vemos a raiz do processo, igualmente sofre alterações substanciais na procura pela mutação evolutiva, que é inexorável e em cuja relação, gradativamente, vai-se permeabilizando a subordinação e absorvendo a participação e o diálogo permanente, que a um só tempo retroalimenta o sistema e dá a legitimidade necessária à sua operacionalização, superando, assim, a moldagem tradicional.

Tem-se a consolidação do Estado-social, porém, é necessário entender que em etapa sucessiva e algo diversa da já estabelecida, seria o estágio seguinte daquele Estado constitucionalizado pelo Direito Alemão pós-2º Guerra, acerca do qual Manuel Garcia-Pelayo, no estudo sobre “As Transformações do Estado Contemporâneo”1 observa a partir das crises pré-guerra, antevendo de certa forma o que viria depois, reconhecendo, com Heller 2, que :

A solução (dos problemas) não está em renunciar ao Estado de Direito, mas, dar a ele um conteúdo econômico e social, realizando na sua moldura uma nova ordem de distribuição de riquezas e uma nova ordem de trabalho, entendendo que só o Estado social de Direito pode ser a alternativa valida para enfrentar a anarquia econômica e as ditaduras (fascistas), somente ele sendo capaz de salvar os valores da civilização”.

É claro perceber-se que o caminho para a redefinição de objetivos e finalidades estatais e da organização social se apresenta, e, principalmente, ganha relevo especial, merecendo, assim, ser o centro das reflexões necessárias.

Partindo destas premissas, radicadas na finalidade do Estado como estrutura e instrumento para servir à organização política da sociedade, com a finalidade e papel de, arbitrando os conflitos e articulando as afinidades e interesses comuns, buscar o bem comum, entendido este como a realização dos interesses gerais da sociedade. Identifica-se que o aparato empregado em seu funcionamento, que é o governo incorporado e direcionado a estes objetivos, traz a idéia central de Ataliba Nogueira, em sua tese de cátedra na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, de que o “estado não é um fim em si mesmo”, mas meio de alcançar os fins colimados pela sociedade.

A organização política e o funcionamento dos aparatos de governo são conformados constitucionalmente, no contexto de um pacto político fundado em consenso, construído na sociedade e, em nossos dias, marcado pela democracia, tanto no processo de formação como na elaboração em si dos consensos, com a concepção e busca da relação interativa estado-sociedade dialógica, cooperativa, marcada pela responsividade recíproca, exatamente no contexto que vislumbramos da remodelação do Estado social, nascido na Alemanha pós 2ª Guerra, e que no dizer de Garcia-Pelayo3 (com muitíssima atualidade) significa a ação estatal:

A política estatal (via governo) leva a cabo direta ou indiretamente ação estruturadora da sociedade nos países industrializados ou pós-industrializados, manifestada em múltiplos aspectos como por exemplo na contribuição para as modificações da estratificação e mobilidade social (promoção social e redistribuição de renda), criando senão novas classes, ao menos novas categorias sociais, promovendo o desenvolvimento científico e tecnológico, incremento dos serviços sociais e distribuição de bem estar, cuidando de educação e saúde, incrementando geração de empregos e trabalho, reduzindo a luta de classes de âmbito e intensidade. E este resultado é possível de alcançar tanto pelo coerção do Estado sobre a sociedade, quanto da sociedade sobre o Estado.”

Assistimos, desde o último quartel do século XX, a progressiva centralidade dos direitos humanos fundamentais com caráter quase universal (porque a nosso ver há que se considerar as peculiaridades culturais e as diversidades dos povos, sociedades e contextos), que vem sendo desenvolvido através de reconhecimento na sociedade internacional e nas sociedades nacionais, sendo fortemente incorporados aos textos constitucionais. Destaque-se que, neste mesmo período, as constituições vêm desempenhando também o papel de ir além da legitimação formal sistêmica da ordem jurídica para incorporar o de centralizar a ordem jurídica, fornecendo os contornos e regendo tanto a produção normativa infraconstitucional, imprimindo-lhe sentido de conformidade e regendo a hermenêutica do sistema, quanto lhe dando parâmetros de governo.

Neste quadro, identificamos como coisa típica de nossos dias o que denominamos de funcionalidade do binômio Estado/Governo, sendo esta a capacidade real de funcionamento eficaz e de realização objetiva das finalidades consensuadas.

Ora, a funcionalidade, como a vemos, é cláusula essencial da pactuação social organizativa da sociedade politicamente organizada, daí decorrendo que pela boa fé, inerente a todo e qualquer consenso, cria-se a justa e razoável expectativa, na qual se confia legitimamente que tudo funcionará como pactuado, indo ao encontro destas expectativas.

Assim, o aparato governamental deve funcionar em busca dos objetivos e finalidades estatais explicitados nas demandas da sociedade através dos consensos políticos, tendo dever de fidelidade. Até porque, como o mesmo Garcia-Pelayo4 observa, a inter-relação sistêmica é realidade concreta e posta:

Estado e Sociedade não são sistema autônomos, autorregulados, unidos por um numero limitado de relações e que enviam e recebem insumos e produtos definidos, mas dois sistemas fortemente interrelacionados entre si e através de relações complexas, com fatores reguladores de fora de seu respectivo sistema e com um conjunto de subsistemas interseccionados, o que é demonstrado pela realização de funções estatais importantes através de empresas privadas, através de contratos (concessões, permissões e autorizações entre nós) e a presença de representantes do setor privado em órgãos e comissões estatais com poder decisório.” E, mais adiante arremata: “o problema clássico das relações entre o Estado e a sociedade, em termos de abstração sistêmica, apresenta-se como: sistema estatal e sistema social, sem prejuízo de suas autonomias vem a ser parte de um meta sistema, assim devendo ser considerados sob a perspectiva de um sistema mais amplo no qual cada um deles serve à finalidades complementares, possuindo qualidades e princípios estruturais igualmente complementares.”

Tal formulação nos leva, como se verá adiante, à concepção de bom governo, o qual se incorpora como direito fundamental da cidadania e, como tal, daí emana força vinculante para a sociedade como um todo, conglobando governantes e governados. A partir disso, tem-se que um governo inepto, desatento, incorreto, aético, mais do que um fato político, é violação de direito fundamental, eis que o Estado existe para o homem, o ser humano, nele devendo centrar as suas atenções e esforços, sob pena de desmontar todo o sistema através da deslegitimação do poder e do seu exercício.

É possível daí inferir que o capítulo ou tópico referente à Governo ganha igualmente outro destaque, eis que, em nosso ver, dá-se a transição da estrutura para a efetiva função e, mais do que isto, funcionamento concreto com produção de resultados objetivos sensíveis, como também já o notam Nikolas Rose e Peter Miller5 ao examinar o assistencialismo no contexto do Estado de bem estar social, em curso desde o séc. XIX/XX, no qual:

(...) o Estado tentou garantir elevado nível de emprego, progresso econômico, social, saúde, e habitação, utilizando-se de sistema fiscal e investimentos, através de planejamento e intervenção estatal na econômica, e do desenvolvimento de um aparelho estendido e burocraticamente composto, por administração social. De nossa perspectiva, no entanto, isso é menos do nascimento de uma nova forma de Estado que de um novo modo de governo da vida econômica, social e pessoal dos cidadãos. Este modo de governo, que chamamos de “assistencialismo” é constituído por uma forma de racionalidade política incorporando certos princípios e ideais e com base em uma concepção particular de natureza da sociedade e de seus habitantes.”

É de se ver que os tempos são de inter-relação e inter-ligação de relação dialogal e cooperativa entre Estado e Sociedade, donde o Governo serve de instrumento deste diálogo, nutrindo-se dos elementos nele colhidos para problematizar as questões (demandas) postas e formular soluções através de processos e ações consensuadas, legitimadas no diálogo e no compromisso, gerando, assim, a capacidade de dar as respostas necessárias à sociedade, esclarecer os limites de possibilidades, a evolução temporal das ações e resultados, explicitar as demandas de recursos necessários e suas fontes e balizar o grau de solidariedade social necessário e possível. É possível resumir tudo isto na marca da funcionalidade, devendo esta ser entendida como capacidade real de produzir respostas úteis e eficazes para os problemas, sendo também a capacidade real de alterar, ajustar e compatibilizar meios e instrumentos materiais e teóricos como ferramental à atividade.

Noutras palavras, a tradicionalmente chamada classe dirigente há de nutrir sua liderança na capacidade operacional efetiva de produzir resultados positivos, concretos e duradouros. Este é o núcleo embrionário da idéia de bom governo.

2. GOVERNO E BOM-GOVERNO

Governar é dirigir, conduzir politicamente o processo social no seu todo, envolvendo a sociedade e o Estado, e implica na capacidade política de identificar os interesses, aspirações e demandas da sociedade em toda a sua pluralidade, conduzindo, também, a formulação de consensos democráticos com a participação da cidadania e, a partir daí, elaborar os projetos de governo direcionando a ação de todo o sistema no sentido de atender às tais demandas.

Tomando estes elementos como ponto de partida, podemos entender que o governar é o liderar, conduzir o processo político, identificando demandas e interesses, intermediando a construção de consensos à respeito, formulando soluções para atender a estas demandas e interesses, estimando recursos necessários e sua obtenção, desenvolvendo com enfoque gerencial ações e políticas direcionadas ao objetivo, prestando contas do processo na sua integralidade, obtendo, assim, a legitimação para as suas ações.

O Bom Governo é aquele que tem esta competência e, mais do que isto, atua com eficiência, empregando técnicas e meios de governança para gerir as suas atividades e estruturas com a desejável eficiência para produzir resultados esperados ou, pelo menos próximo disto, respeitando os limites de possibilidade reais. Este último aspecto ganha importância crucial porque, como ao norte se referiu, a base da organização social (e inclusive política, naturalmente) é a solidariedade entre os indivíduos que decorre da necessidade de sobrevivência. Entretanto, nem sempre tal é percebido com a clareza necessária e suficiente.

A solidariedade de que se cogita desempenha o papel de solda na união entre os indivíduos e grupos e opera-se na repartição equitativa de encargos e benefícios, porquanto todos contribuem e colaboram para os interesses gerais que vêm a ser exatamente os pontos consensuais fixados no processo político governamental.

Neste particular, é importante ressaltar que a solidariedade é limitada (pelo egoísmo individual) e condicionada à capacidade real de colaboração dos indivíduos, que suportam os encargos, sendo indispensável o equilíbrio na equação, sob pena de comprometer-se a própria organização com o indesejável esgarçamento do tecido social.

O governar, assim, implica em não apenas buscar, mas, principalmente, manter o equilíbrio no processo de realizar o máximo possível dentro das reais disponibilidades e possibilidades, fazendo, especialmente, a projeção temporal das ações de forma a tornar possível a realização dentro das capacidades da própria sociedade, devendo estes elementos estar claramente demonstrados, de sorte a possibilitar alguma forma de controle político-social, aferindo resultados obtidos e estágios alcançados.

Significa, também, a preservação de padrões éticos elevados nas condutas dos que governam e a fidelidade aos elementos colhidos no diálogo político e explicitados nos discursos desenvolvidos nos diálogos com os atores sociais.

Implica, também, na capacidade de manter o diálogo permanente com responsividade, em demonstrar as realidades, os recursos, as disponibilidades, os custos sociais e políticos necessários ao desenvolvimento das suas atividades. Agir com prudência e equilíbrio, tendo sensibilidade para alterar rumos e fazer correções sempre que necessário.

A expectativa natural nas relações políticas entre governantes e governados é de que tudo se desenrole conforme o pactuado, de que os objetivos determinados sejam perseguidos com eficiência.

A chave do processo está na pactuação firmada ao longo do processo político. Noutras palavras, governar é realizar o pactuado conforme o pactuado, deixando isto absolutamente claro, inclusive quanto às necessidades eventuais de correções, ajustes e compatibilizações ditadas pelas circunstâncias.

Na outra ponta do sistema está entender que a cidadania, que é o direito/dever de participação integral na vida da sociedade, consiste em receber os benefícios e serviços e contribuir com seus esforços e recursos, implicando, também, em exigibilidade de tudo isto. Sendo forçoso constatar que a contrapartida da solidariedade (contribuir) é a fiscalização e obtenção de resultados (obrigatórios) porque dentro da expectativa razoável inerente à boa-fé intrínseca às pactuações de todas as naturezas, eis que o pactuado deve ordinariamente ser observado e cumprido, nada, além disso.

Neste contexto, considerando que o ser humano tem direito de desenvolvimento integral de suas potencialidades, ao bem estar possível, ao amparo e aos serviços públicos, ao atendimento de necessidades básicas, à promoção social, ao emprego digno, às condições gerais de vida digna, à educação, à saúde, ao amparo nas fragilidades de doença, velhice, desemprego, de garantia de liberdade, de liberdade de iniciativa, em suma, de desenvolver sua vida da maneira mais adequada dentro das possibilidades, tanto dele, quanto as da sociedade em que vive, tem-se como consequência que todos os consensos formados no processo político tendem a fixar quais as necessidades e o nível de atendimento delas, com preservação de liberdade e segurança, convertendo-se em objeto das ações governamentais.

A idéia de bom governo, assim, é identificada com a capacidade de idoneamente desenvolver este papel na dimensão funcional, produzindo resultados na dimensão humana, com observância de padrões éticos mínimos aceitáveis e preservando a natureza dos pactos elaborados nos consensos políticos, democraticamente estabelecidos, porque derivados de discussão, debate, convencimento e adesão, traduzindo tudo em resultados concretos.

3. DIREITOS FUNDAMENTAIS

Não se vai, nos estreitos limites deste estudo, dissertar sobre os Diretos Fundamentais na sua integralidade, seja porque escapa ao objeto, seja porque desnecessário. O que se busca é, entendendo a atualidade dimensional dos direitos fundamentais, incorporar aos seus domínios o “direito ao bom governo” como direito tanto do indivíduo, quanto das coletividades formadoras da sociedade, defendendo que o bem governar ultrapassa o limite da virtude e alcança o status de dever, e, como tal, exigível. Em nosso ver isto é correspondente à etapa histórica que se vive, afinal, como bem observam Pieroth e Schlink6:

o direito é direito conformado pela história e não se pode compreender sem sua história. As regulações jurídicas podem ter um fôlego mais prolongado que as ordens políticas em que surgem, quando assentam em circunstâncias sociais e econômicas constantes ou quando dão resposta a questões fundamentais humanas invariáveis. Mas estas regulações também podem extinguir-se com as ordens políticas. Os direitos fundamentais são enquanto, parte do direito púbico e do direito constitucional, direito político e estão sujeitos à mudança das ordens políticas.”

Na atual etapa histórica, vem-se ultrapassando os limites dos que podemos chamar de básico individual (liberdades, garantias), que em nosso ver se restringem à ação direta do Estado/Governo, e se vislumbra outro patamar, talvez decorrente da etapa das ações promocionais. Portanto, se antes os mandamentos e postulados eram negativos e vedatórios (não fazer), hoje começam a ganhar fortemente o sentido de fazer, promover, cabendo destacar a marca histórica forte no processo, não sendo excesso colacionar a interessante observação da Carlos Weiss7, fundada em Tobeñas, que converge para o que se busca demonstrar:

Ressalta, porém, que tais gerações não são nada além de uma tentativa de tornar mais palatável a noção de historicidade dos direitos humanos, isto é, de explicar de forma sintética que o surgimento daqueles obedeceram às injunções histórico-políticas, cujas características marcavam direitos nascidos naquele momento. Como afirmava José Castán Tobeñas no final da década de 60 do século anterior, a dimensão geracional dos direitos humanos se da como corolário do seu caráter histórico, aparecendo como categorias que se conformam e contexto e situações sociopolíticas e econômicas determinadas, que produzem as sucessivas gerações de direitos. Desta maneira, os direitos de primeira geração seriam aqueles decorrentes do Jusnaturalismo racional, cujo pensamento influenciou as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, fazendo com que seu conteúdo privilegiasse as liberdades individuais, concebidas em função do ser humano abstrato, descontextualizado. De outro lado, à segunda geração corresponde outro momento histórico, o do florescimento dos movimentos de cunho social, preconizando a necessidade de intervenção do Estado como agente de transformação da realidade de grandes grupos da sociedade – do que decorre ênfase nos direitos coletivos, próprios de seres humanos concretos e situados.”

No enfoque que se vem dando de historicidade, acolhendo que o direito formula respostas às questões e às necessidades postas pela e na etapa histórica, é possível perceber que em nosso dias, reposiciona-se a relação entre o Estado e o Homem, destacando-se as dimensões instrumental e funcional do aparelho estatal, como antes se mencionou, oferecendo como o fio condutor do processo a promocionalidade da ação estatal, que em linguagem simples é o de “fazer coisas para o bem dos indivíduos e da sociedade com eficiência”, pondo-se à serviço. Como Gustavo Bemboim8, estudando o tema interesse público, bem observa:

É fácil constatar que a idéia de uma prioridade absoluta do coletivo sobre o individual (ou do público sobre o privado) é incompatível com o Estado democrático de direito. Tributária do segundo imperativo categórico kantiano, que considera cada pessoa como um fim em si mesmo, a noção de dignidade humana não se compadece com a instrumentalização das individualidades em proveito de um suposto “organismo superior”. Como instrumento da emancipação moral e material dos indivíduos, condição de sua autonomia nas esferas pública e privada. Dito de outra forma, o Estado, como entidade jurídico-política existe para viabilizar, de forma ordenada e racional, a persecução de projetos e objetivos próprios de cada indivíduo, independentemente das “razões de estado” que a comunidade política possa invocar. A dimensão transindividual, de inegável importância, não é dissociada nem necessariamente oposta aos interesses particulares, mas condição necessária de sua fruição em vida social, segundo critérios razoáveis e proporcionais.”

É importante, a esta altura, chamar a atenção para o fato de que o Bom Governo, é aquele capaz de identificar demandas e também capaz de encaminhar respostas e soluções concretas e objetivas. Ora, ao encaminhar as respostas efetiva a capacidade real e responsável de produzir resultados e atender às demandas e necessidades, pois, como observa André Ramos Tavares9:

Os direitos sociais, como direitos de segunda dimensão, convém relembrar, são aqueles que exigem do poder público uma atuação positiva, uma forma atuante na implementação da igualdade social dos hipossuficientes.”

Ora, se cabe ao Estado, através do Governo, ir ao encontro das necessidades e demandas politicamente qualificadas como objetivo, toda a sua ação no marco jurídico e com conteúdo democrático, considerando os elementos fundantes da sua organização e justificação existencial na direção de atender a tais demandas, naturalmente, que a legitima expectativa de eficiência e produtividade hão de estar presentes como inerentes ao processo.

Já é possível sintetizar que o Direito Fundamental ao Bom Governo é o direito fundamental a um governo capaz de produzir efeitos e resultados úteis e compatíveis com o desejado. Cumpre destacar, inclusive, que a ação governamental inepta, incorreta e desviada colide com as finalidades estatais e, exatamente em razão disso, viola indiretamente os direitos fundamentais na medida em que os impede de ser concretizados ou atendidos, porquanto gera instabilidade, insegurança e degradação do meio social e econômico, vindo a se constituir mesmo em impossibilidade material e real de exercitar direitos.

Não comporta dúvida que o bem comum, o bem do ser humano, o desenvolvimento de suas potencialidades, o estabelecimento e manutenção de nível minimamente razoável de vida é o que vem a constituir o cerne, o fundamento do Estado, com o que cabe ao Governo caminhar seriamente neste sentido, não como qualidade ou mérito, mas, como pressuposto e obrigação essencial, e, nesse contexto, razão assiste à André Ramos Tavares10 quando observa a existência de dupla natureza dos direitos fundamentais, neles reconhecendo “tanto a função de direitos subjetivos como também de princípios objetivos da ordem constitucional.”; daí porque, no enfoque que se dá, identifica-se força vinculante dos preceitos explícitos e implícitos marcados por promocionalidade (direta ou indireta), que alcançam em seus efeitos ao ato de governar e aos governantes.

O Bom Governo desempenha o papel fundamental que cria e mantém ambiente social e econômico razoável, que torna possível a prestação dos serviços públicos regulares com qualidade e favoreça as atividades dos indivíduos e grupos na busca da realização de seus interesses, atendendo, assim, à finalidades que se inserem no pacto político que organiza a sociedade, materializado na Constituição, com o papel de instrumento jurídico da organização política e social.

É exatamente por isso que se vislumbra a existência de um direito fundamental ao bom governo.

4. O DIREITO FUNDAMENTAL AO BOM GOVERNO

Se, ao longo de substancial lamina temporal, o centro das discussões e reflexões sobre os direitos fundamentais centrou-se no Estado e nas suas ações “in concreto”, quanto à liberdades e direitos individuais objetivamente considerados, como observa André Ramos Tavares11:

A preocupação central, na proteção e realização dos direitos fundamentais, por muito tempo, foi o Estado-opressor, o Estado-Leviatã. Dotado que era de grande poder, na sua relação com o indivíduo singularmente considerado, ficava nítida a verticalidade (relação de subordinação-superioridade, berdade-autoridade, particular-Estado). Embora não se possa ignorar, no atual estágio, essa figura de um Estado dominador que necessita ser domado, passou-se (no Brasil mais recentemente) a falar de eficácia (extensão) horizontal (privada) dos direitos fundamentais, ou seja, de que não apenas o Estado estaria vinculado às declarações de direitos, mas igualmente os particulares.”

O que se assiste hoje é que, em razão da marcha da história, é de fato necessário seguir a “domar” o estado-leviatan, como refere Ramos Tavares, porém não basta. Outras necessidades sociais emergem (e forte), levando-nos a pretender-se da ação estatal ações e condutas direcionadas a não apenas a não esmagar ou oprimir o indivíduo, mas, principalmente, a construir meios e condições favoráveis ao desenvolvimento das potencialidades humanas e que pertinem ao campo da dignidade humana, entendido como homem integral em todas as suas dimensões. E, ao campo constitucional, no qual se crê, pode ir-se albergando tais direitos que se vislumbra estarem entre os direitos fundamentais implícitos, como o denomina a doutrina e o direito constitucional positivo, ultrapassando, assim, a exaustividade das enumerações contidas nos textos, como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho12: “A atual Constituição brasileira, no que segue as anteriores, não pretende ser exaustiva na enumeração dos direitos fundamentais. Admite haver outros direitos fundamentais além dos enumerados, direitos estes implícitos.”. Entendem-se estes direitos implícitos como sendo aqueles decorrentes do sistema jurídico e que vêm ao encontro do que já se apontou antes como expectativa razoável e legítima da pactuação política, servindo de conteúdo, como diz Sampaio Dória13: “Direito Fundamental é o direito inerente à personalidade humana, é a ausência de constrangimento para toda a atividade sem a qual não se conserve, nem se aperfeiçoe o homem.”

Exatamente, a ação estatal com governo responsável, cuidadoso, funcional e produtivo deve estar direcionada a proteger e viabilizar a atividade de aperfeiçoamento do homem ao desenvolvimento integral de suas potencialidades. Aí está o eixo de sustentação do vínculo que configura o Bom Governo como Direito Fundamental.

Johan Galtung14 estudando os direitos humanos e os processos sociais com precisão destaca: “A sociedade moderna tem três componentes principais: o Estado, o capital e as pessoas, e estas últimas podem ser vistas como organizadas em todos os tipos de associações que constituem a sociedade civil. Todos os três estão em evolução, nunca estáveis, apesar os esforços de controle..” Nesta evolução, com dinâmica e vida própria, assiste-se o surgimento de novos atores no processo social, categorias novas por assim dizer, que atuam (fortes) na realidade, forçando a elaboração de uma nova compreensão do sistema.

Em linha semelhante à de Galtung, também Touraine, em estudo que se reputa clássico sobre a modernidade, identifica não apenas a empresa e o consumidor como elementos de nova roupagem, mas trazendo linguagem, discurso e ações próprias (antes inexistentes ou desconsideradas), exercendo influência decisiva no processo social, contribuindo decisivamente no que se pode considerar como construção de uma cultura. Em tal contexto, Touraine15 descreve:

As nações se definem mais por uma cultura do que por uma ação econômica; as empresas visam tanto o lucro e o poder quanto à organização racional da produção; os consumidores introduzem nas suas escolhas aspectos cada vez mais diversos de sua personalidade à medida que seu nível de vida lhes permite satisfazer necessidades menos elementares e, portanto, menos enquadradas nas regras e estatutos tradicionais.”

O que se infere deste quadro é que é imposto à ação estatal/governamental outro tipo de ação, outro nível de atividade, outra conformação de atitude, exatamente decorrente do progressivo surgimento de “novas necessidades” e “novas demandas” da sociedade, e estamos entre os que se conectam no campo do consumo e da categoria consumidor (ao menos parcialmente) a estas novas postulações, que exigem modificação da ação estatal. Assim, o governar deixa de ser apenas manter a ordem, garantir direitos individuais e sociais mínimos, regrar a ordem social e econômica em princípios e grandes linhas, mas ganha uma parcela do que se chama de funcionalidade de gestão, porque não basta gerir nos padrões tradicionais, há de se ir além, gerir com competência e capacidade real de produzir resultados concretos, adotar padrões de boa governança, incorporar técnicas gerenciais aos seus processos.

Integra este desafio, a reformulação da relação Estado/Sociedade, Governo/Governado, na qual sofre mitigação forte a verticalidade e subordinação tradicional, que em raiz última tinha a pressuposição da coincidência das idéias de interesse público com interesse estatal, ganhando corpo em maior horizontalização, em mais diálogo e colaboração entre estes atores e categorias, mais interatividade, em síntese, caminha-se, claramente, para co-responsabilidade, com a ampliação do conteúdo do conceito de cidadania pela incorporação de novas dimensões dela. Por exemplo, a cidadania fiscal, com o reconhecimento da relação mais direta e substanciosa entre a vida financeira do estado e a dos indivíduos. O ponto central neste particular é a inclusão do indivíduo no processo social, político e econômico, equalizando a sua real capacidade contributiva com o retorno concreto de benefícios e resultados.

Embora possa parecer contradição, a gestão, como se propõe e na condição de vinculada a direito fundamental, implica em sopesamento e ponderação (sobre a prevalência em concreto) de interesses, demandas e expectativas em balanceamento com a ação estatal-governamental, donde é imperioso o reconhecimento de limites.

A primeira limitação é a de possibilidades materiais, que é imposta pela natural escassez de recursos e meios disponíveis. Não se dispõe de tudo ao mesmo tempo, daí a necessidade do estabelecimento de prioridades e cronograma (idôneos) que implicam na formulação de escolhas e opções (quase nunca fáceis e indolores) e que obrigatoriamente precisam passar pela formação de consensos sociais e pactuação política por imperativo da cláusula democrática que fundamenta a organização constitucional.

Este processo significa inapelavelmente em restrições de direitos, portanto na relativização deles, relativização esta que se legitima principalmente pela pactuação política e que contém as concessões recíprocas que os materializam, além de encontrarem respaldo na lógica jurídica, como de forma clara aponta Ramos Tavares16:

Não existe nenhum direito humano consagrado pela Constituição que se possa considerar absoluto, no sentido de valer como máxima a ser aplicada aos casos concretos, independentemente de consideração de outras circunstâncias e valores constitucionais. Nesse sentido, é correto afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos. Existe uma ampla gama de hipóteses que acabam por restringir o alcance absoluto dos direitos fundamentais. Assim tem-se de considerar que os direitos humanos consagrados e assegurados; 1º) Não podem servir de escudo protetivo para a pratica de atividades ilícitas; 2ª) Não podem respaldar irresponsabilidade civil; 3º) Não podem anular os demais direitos igualmente consagrados pela Constituição; 4º) Não podem anular igual direito das demais pessoas, devendo ser aplicados harmonicamente no âmbito material. Aplica-se, aqui, a máxima da cedencia recíproca ou da relatividade, também chamada de “princípio da convivência das liberdades”, quando aplicada a máxima ao campo dos direitos fundamentais. Escalrece Sampio Dori: “Os fundamentais, não se concebe, em boa razão, que sofram limites senão na medida da reciprocidade, isto é, cada um pode exercê-los até onde todos os puderem, sem desagregação social. O único limite ao direito fundamental de um indivíduo é o respeito a igual direito de seus semelhantes, e a certa condições fundamentais das sociedades organizadas.”

A habilidade e competência em politicamente arbitrar as disputas e concorrência de interesses e demandas, o fazendo de forma equilibrada e harmonizando os atritos próprios do processo social. Esta é a tarefa fundamental e essencial de governo, que deve fazer a formação das respostas e propostas tomando por base estes pontos de equilíbrio e, em seguida, atuar correta e adequadamente no sentido deles. Isto é capítulo importante da concepção de bom governo.

Temos que decorre deste pretendido e desejado equilíbrio, o elemento fundamental para o ambiente social e econômico que melhora as condições gerais da vida na sociedade e, mais adiante, o bem estar dos indivíduos, proporcionando-lhes melhores condições para o desenvolvimento de suas potencialidades e interesses, como vimos demonstrando, fim último da organização política, coroamento da sua existência, resgatando-se, assim, o binômio ao norte referido da instrumentalidade e funcionalidade.

É importante destacar que a exploração que se faz do tema proposto tem vinculação mais direta com a efetivação de direitos fundamentais, sua concretização, seus efeitos na vida prática das pessoas, indo, portanto, além do reconhecimento, declaração e tutela formal. Tem-se a constatação de que fundamental é “que as coisas aconteçam” e que os postulados da dignidade humana dêem-se na vida prática.

Com efeito, para ilustrar, vale mencionar a percepção de Marcos Leite Garcia17, que refletindo sobre a teorização de Gregório Peces-Barba18, observa:

Um dos atuais problemas dos direitos fundamentais é exatamente a questão de sua efetividade. Para analisar o tema faz-se necessário ver algumas questões relacionadas com a sua validade (legitimidade), vigência (legalidade) e realidade social do meio em que se pretende aplicar e fazer valer efetivamente os direitos fundamentais (efetividade de fato)”

Releva notar que a maior parte da reflexão acerca dos direitos fundamentais centra a sua atenção mesmo no que respeita à efetivação das garantias, dos remédios processuais, enunciados e reparações nos aspectos das violações ou ameaças concretas e diretas, tendo no cerne a negação ou confrontação com a categoria de direito subjetivo posto. O que se vem tentando levantar neste breve estudo diz respeito às circunstâncias, ações e relações sociais, econômicas e políticas nas quais o binômio Estado/Governo é partícipe direto ou indireto (agindo ou garantindo a ordem jurídica), e que acabam por diminuir, esvaziar e, até mesmo, negar, seja o direito enunciado (reconhecido e proclamado em si), ou, mais sutil (e gravemente), negando o exercício e efetivação, agravando-se o quadro, muito especialmente nos países mais periféricos, como é o caso brasileiro.

Da mesma forma Leite Garcia19 percebe a questão, quando alude:

O fato é que a validade e vigência dos direitos não tem sido suficientes para tornar verdadeiramente efetivos os direitos fundamentais. Ainda que existam algumas teorias contrárias aos direitos fundamentais, na prática poucos tem tido a coragem de ir abertamente contra o consenso em torno dos direitos fundamentais, o resultado prático é que muita demagogia se tem feito em nome dos direitos e assim a realidade da efetividade dos mesmos é uma lástima para grande parte dos seres humanos que habitam o planeta.”

A efetivação, a concretização enfim, tem quase sempre um pressuposto material incontornável que é a realidade e, nesta realidade, a ação do Estado/Governo é de fundamental importância, eis que dela decorre parte importante das condições econômicas e sociais, das políticas públicas desenvolvidas, dos serviços públicos, das ações de direção política, que acabam por se constituir em determinantes na vida social, campo onde se desenvolvem os processos da vida em sociedade.

É pertinente colacionar o já citado Garcia20, no mesmo sentido:

Em terceiro lugar, os direitos fundamentais são uma realidade social, é dizer, atuante na vida social, e por tanto condicionados na sua exigência por fatores extrajurídicos de caráter social, econômico ou cultural que favorecem, dificultem ou impedem sua efetividade. Certamente impossível separar direitos fundamentais da realidade social. A realidade social, o meio no qual será aplicado será fundamental para sua eficácia ou não.”

Este universo extrajurídico que identificamos como o meio social em geral, o que antes referimos como ambiente social, sobre o qual se operam as ações de governo, as políticas e serviços públicos, portanto, situa-se o espaço e a necessidade do bom governo com o fito de preservar e manter o equilíbrio e a favorabilidade deste meio (social), que vem a ser, no nosso entender, requisito essencial para a efetivação/concretização dos direitos fundamentais, destacando-se que a percepção disto implica na mesma percepção dos efeitos e resultados indiretos, da alteração ou degradação de condições que desfavorecem a vida destes direitos, impedindo que estes se concretizem e que se efetivem. Também no mesmo sentido aponta o multicitado Garcia21: “Em contrapartida se os direitos fundamentais se desenvolvem de acordo com uma realidade social favorável, que os faz efetivos e desenvolvidos; estaríamos então diante de direitos fundamentais substancialmente efetivos.”

O enfoque que se vem dando é de que assistimos a uma certa viragem na compreensão dos direitos fundamentais, até mesmo como decorrência do processo histórico, eis que, durante longo tempo, a percepção esteve restrita ao que podemos denominar de violações diretas, frontais, a afronta ou violação concreta de direito fundamental por ato explícito, objetivo, que o nega, esteriliza ou suprime. O que se cogita agora é o que podemos denominar de violação indireta, via transversa. Noutras palavras, ainda que (aparentemente) se mantenha a proclamação (declaração), reconhecimento e mesmo tutela formal do direito, acontece o boicote ou degradação da ambiência e condições (reais e materiais) para que seja exercido.

Não se trata, pois, de violação direta pura e simples, ao contrário, com a aparência (distorcida) de reconhecimento e tutela, artificia-se a impossibilidade de exercício, ou mesmo doutra forma, por incúria, inabilidade ou desvio; degradam-se as condições de exercício, o mais das vezes atribuindo (cômoda e falsamente) aos limites de possibilidade, remetendo ao conceito aberto de reserva do possível, cuja interpretação e preenchimento se curva muito mais à conveniência circunstancial ou política do que à realidade propriamente dita.

Pode-se ilustrar a argumentação com a hipótese de um governo inepto (populista inconseqüente) que, na gestão das funções e papeis estatais nas relações com a economia, enseja crise econômica, a qual poderia ser evitada ou ao menos minorada pela gestão competente e cuidadosa, ao ponto de que, esvaídos recursos (por desvio, descuido ou incompetência), deixam a ambiência econômica tão degradada que se torna inviável o exercício de direitos fundamentais, porquanto desperdiçados os recursos. Dá-se a carência, até mesmo para o essencial.

Na visão que se tem, está-se diante de violação indireta de direitos fundamentais por ação incompetente ou descuidado de governo, materializando a formulação, que é objeto deste estudo. O mau governo viola ou impede o exercício real (efetivo) de direitos fundamentais e, assim, portanto, pode-se concluir que o bom governo é direito fundamental na medida em que torna possível o exercício de direitos no mundo da realidade.

Antonio Perez Luño identifica a expansividade dos direitos fundamentais, que podemos entender como desdobramentos evolutivos dos atributos qualificativos da dignidade humana como condição essencial, (razão de ser da organização política, posta a serviço do homem) e, assim, é impositivo o amoldamento e adequação às circunstâncias e condições da etapa histórica vivida, das condições objetivas da sociedade, o que nos leva a compreender tais direitos como um conjunto formado por diversas dimensões e nuanças que se harmonizam e complementam e que se vem ajustando, ao longo do tempo, às necessidades postas na sociedade.

O autor referido observa22:

Enquanto as liberdades públicas se referem aos direitos tradicionais de marca individual e tem como finalidade prioritária a garantia das esferas de autonomia subjetiva, os direitos fundamentais, como antes referido, têm um significado mas amplo e compreendem, junto das liberdades tradicionais, novos direitos de natureza, econômica, social e cultural.”

Na leitura que se faz, o Estado, em suas instâncias, positiva direitos, explicitando-os e estabelecendo tutela jurídica, e, com isso, também vincula-se, obrigando-se à observância não apenas formal, mas real e concreta, como vimos observando acima, pelo que se articulam os deveres de abstenção e de pro atividade, de contenção e ação concreta, direcionada a preservação do que entendemos ser condições mínimas de humanidade, o que ganha relevo especial em nossos dias, nas sociedades complexas e fragmentadas em que se vive, inçada, assim, de dificuldades e obstáculos e nem por isso excludentes de responsabilidade política de governantes, cabendo a observação de Guy Haascher23:

Os indivíduos dispoem, nos Estados modernos, de direitos, isto é, de interesses protegidos (em particular pela lei). Mas estes direitos são chamados “positivos”: são impostos pelo legislador, pela autoridade política, derivam desta última. Sem esta expressão de vontade do poder, estes direitos não existiriam. Mas existe, na tradição filosófica – contratualista, precisamente – uma outra espécie de direitos: os direitos “naturais”. É suposto que estes perteçam ao indivíduo em virtude de sua própria essência ou, por outras palavras, são considerados como de tal modo fundamentais que nenhuma vida em sociedade digna desse nome parece possível sem que eles sejam respeitados; o mesmo é dizer que, se seguirmos tal linha de raciocínio, uma norma positiva ditada pelo poder, e que violasse os direitos naturais, pareceria do ponto de vista filosófico que de momento expomos, ilegítima.”

É de ser acrescentado que, em nosso ver, a legitimação não é apenas filosófica, mas também política, já que o exercício do poder, como antes se referiu, tem a finalidade de atender a sociedade e o indivíduo, buscando a concretização das demandas arbitradas nos consensos democráticos, não sendo, em nenhuma hipótese, finalidade em si, sob pena de tirania explícita. Ora bem, a busca pela efetiva concretização e efetivação dos direitos fundamentais como inerentes à condição humana é a finalidade e o objetivo maior do Estado, enquanto organização político-social, e do Governo, que o faz funcionar (obviamente no sentido de seus objetivos e finalidades essenciais).

CONCLUSÃO

A título de conclusão observamos que, partindo da premissa de que o Estado é uma Organização Política construída pela sociedade, em princípio organiza o poder político, estabelecendo as formas, maneiras e limites para o exercício dele, e vai gradativamente, como conseqüência da evolução da sociedade, ganhando tanto amplitude quanto complexidade, na proporção direta em que a sociedade segue este mesmo caminho, e, no curso deste processo, ganha a atribuição de atender maior volume de necessidades (demandas) da sociedade, principalmente gerindo recursos (sempre escassos e insuficientes), necessitando desempenhar o papel de arbitrar as disputas internas entre as demandas de segmentos e parcelas da sociedade, seus interesses e aspirações, cabendo-lhe conduzir neste mister a formação de consensos, fixando as demandas prioritárias capazes de acomodar as situações em disputa e de desenvolver esforços e atividades voltadas a atendê-las razoavelmente.

No cumprimento deste papel, que identificamos antes como marcado pelo binômio instrumentalidade/funcionalidade, o Governo recebe o encargo e a responsabilidade de manter o diálogo permanente com a sociedade e de agir prestando contas (responsividade/responsabilidade política substancial) de suas ações. Está inserida neste quadro a necessidade/dever de agir com competência e cuidado, tendo que agir bem, com eficiência e capacidade de obtenção de resultados reais.

No desempenho deste papel cabe preservar, manter e elevar a qualidade da ambiência social, inclusive econômica, para que se tenha a capacidade real de efetivar os direitos fundamentais, considerando o pleno desenvolvimento das capacidades e potenciais dos indivíduos, o desfrute dos benefícios disponíveis possíveis, o equilíbrio nas relações privadas.

A manutenção adequada desta ambiência é dever de Estado e de Governo, exigível como tal pela sociedade, e, ao mesmo tempo, legitimador por excelência do exercício do poder.

Temos aí o núcleo do Bem Governar, do Bom Governo, entendendo que é com este qualificativo que os governantes conseguem exercer o papel que lhes é atribuído pela sociedade no pacto de organização e, assim, o descuido, incúria ou inépcia no exercício do poder implica em violação grave de cláusula fundamental deste pacto.

Doutra parte, em não havendo Bom Governo tem-se a degradação da ambiência e o impedimento material real da efetivação de direitos fundamentais, o que se constitui no que chamamos de violação indireta porque acaba por negar ou obstar os efeitos reais dele, numa quase violação comissiva, ou, mais grave do que isto, impedindo a concretização de direitos, o que significa violação em si, apenas da sutil forma indireta, o que, a nosso ver, é a mais violenta e cruel forma de violação porque, embora mantenha aparências, na essência nega tais direitos na exata medida em que obsta essencialmente a sua concretização e efetivação, principalmente pelo desaparecimento dos meios e condições para tal, abrindo o espaço para a construção de limites de possibilidade artificiais, que torna possível a justificação absolutória do conceito aberto da “reserva do possível”, quando é possível a identificação clara que o descuido, inépcia ou má-fé suprimiram o possível, construindo a impossibilidade, lesiva a tudo e a todos, deixando os direitos fundamentais como meras declarações formais, distantes da realidade, consolidando, assim, as distorções e defeitos da organização social que poderiam ser amenizados ou suprimidos, se o papel atribuído tivesse sido adequada e corretamente exercido, em conformidade com o Pacto Social e Político, materializado na constituição.

  • Nota: os textos em língua estrangeira utilizados, foram livremente traduzidos pelo autor.

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1 ed. Alianza Universidad Editorial, 2005, Madrid, p.17

2 in.Hermann Heller, Gesammelt Schriften, Leiden, 1971, t.II, PP.443 e segs.

3 op.cit.p.23

4 op.cit.p.25

5 in O Poder Político para além do Estado: Problemática de Governo”, Tratado de Direito Constitucional: constituição, política e sociedade, Coord, Felipe Dutra Asensi et Daniel Giotti de Paula, vol.1, ed. Campus, Elsevier, Rio de Janeiro, 2014, PP.358-384

6 in Direitos Fundamentais, Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, ed. Saraiva, SP., 2011, p.37

7 in Direitos Humanos Contemporâneos, ed. Malheiros, SP, 2014, p.51

8 in Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. ed. Renovar, RJ, 2006, p.83

9 in Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, SP., 2010, p.827

10 op.cit.p502

11 op.cit.p.524

12 in Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, SP., 2015, p.326

13 in. Os Direitos do Homem, A. Sampaio Dória, Ed. Nacional, SP, 1942, p.574

14 in Direitos Humanos, Uma Nova Perspectiva”, ed. Instituto Piaget, Lisboa, 1998, p.221

15 in Crítica da Modernidade, Alain Touraine, ed. Vozes, Petrópolis, 2012, p.143

16 op.cit.p.528

17 in. Efetividade dos Direitos Fundamentais: notas a partir da visão integral do conceito segundo Gregório Peces-Barba, in Reflexões da Pós-Modernidade: Estado, Direito e Constituição, Org. Juliano Keller do Vale e Julio Cesar Marcellino Jr., ed. Conceito, SC, 2008, pp.189-209

18 Nota: jurista espanhol do final do século XX cuja ação como teórico e homem público foi extremamente relevante na redemocratização espanhola, e que em suas reflexões inclui as duas dimensões que se reputa fundamentais: o teórico/acadêmico e pragmático/político, possibilitando a síntese rica, porque como entendemos, mais próxima da realidade e da concretitude, que se exemplifica pela fundação e implantação do Centro de Estudos Constitucionais e Políticos, cuja contribuição ao Direito Público tem sido relevantíssima.

19 op.cit.loc.cit.

20 op.cit.p.loc.cit

21 op.cit.loc.cit.

22 in Los Derechos Fundamentales, colec. Temas Claves de La Constitución Española, ed. Tecnos, Madrid, 1995, p.51

23 in A Filosofia dos Direitos do Homem, ed. Piaget, Lisboa, 1993, pp.18-19