Advogado diz que ex-presidente pode até escapar de ser preso, mas não conseguirá registro para concorrer à eleição
Por Agostinho Turbian e Paulo Hebmüller, de São Paulo
Para o jurista Ives Gandra da Silva Martins, a condenação em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4) retira do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a possibilidade de se candidatar para novo mandato à Presidência. “Não há como desenquadrar da Lei da Ficha Limpa uma decisão por três a zero”, diz. O advogado, professor universitário e autor de 85 livros individuais e organizador ou coautor de outros 325 avalia que por conta de algum recurso Lula ainda pode escapar da prisão, mesmo que o Supremo Tribunal Federal STF) já tenha decidido que esta é possível após sentença em segunda instância - entendimento que, de acordo com Ives Gandra, contraria a Constituição de 1988. Essa seria, em sua visão, uma das manifestações do ativismo judicial que o Brasil vive hoje, presente em posturas de ministros dos tribunais superiores, juízes e procuradores. Nesta entrevista, concedida poucos dias depois do julgamento do ex-presidente, o jurista aponta os méritos da Operação Lava Jato, sem deixar de criticar seus excessos, e analisa o governo Temer e o cenário eleitoral sem a presença de Lula.
AméricaEconomia - Como o senhor avalia a situação do ex-presidente Lula após o julgamento no TRF4?
Ives Gandra Martins - O Lula já não tem mais chance nenhuma de ser candidato. Está dizendo que vai ser candidato, mas não é. Não há como desenquadrar da Lei da Ficha Limpa uma decisão por três a zero. O STF não muda essa jurisprudência. Ele pode se livrar da prisão por conta de alguma liminar, pois na ocasião o Supremo decidiu pela prisão após segunda instância numa votação de 6 contra 5 - e agora, como se trata da figura do Lula, é possível que o STF volte a entender que só quando alguém for considerado culpado é que pode ser preso. Essa é a leitura correta da Constituição em seu artigo 5°, inciso LVII: ninguém pode ser considerado culpado senão depois do trânsito em julgado.
AE - Ele não conseguiría registro da candidatura no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ?
IGM - Não conseguiría de forma nenhuma. O dado é que a candidatura dele, esvaziada de um lado, esvazia de outro a candidatura de Bolsonaro. Seriam dois polos radicais, e a radicalização dificultaria o crescimento de candidatos do centro. O discurso do Lula seria o do pobre contra o rico, contra a imprensa, a elite, o mercado, e de ao mesmo tempo criar impostos sobre grandes fortunas etc. Agora vamos ver se os candidatos regionais terão condições de se transformar em candidatos nacionais. O Geraldo Alckmin é um excelente governador, mas ainda é um candidato regional, visto o percentual que tem. O Álvaro Dias foi um bom governador do Paraná, mas também é um candidato regional. A Marina Silva é uma candidata setorial, da área de meio ambiente.
AE - O senhor vê o governador Alckmin como o mais adequado?
IGM - Do ponto de vista de competência, dos candidatos que estão aí, considero-o o mais capacitado. É o que tem mais experiência, habilidade e conhecimento. O que ele precisa é viabilizar sua candidatura em nível nacional. E nós ainda não sabemos se vai aparecer algum nome novo no cenário.
AE - No processo do Lula havia mesmo todos os elementos consistentes para embasar a condenação atribuída pelo TRF4?
IGM - Havia sim. Tenho impressão de que houve um erro político do Lula - que poderia ter sido alertado a respeito pelos seus advogados, que são bons. Quem atua na área do direito conhece os três desembargadores responsáveis pelo caso. Num momento em que há um ativismo judicial monumental - ativismo do STF, de juízes de primeira instância etc. -, esses desembargadores sempre foram do mesmo nível dos magistrados de antes da era Lula, como Moreira Alves, Sydney Sanches, Francisco Rezek etc. Ora, quem conhece a sua personalidade poderia dizer que eles seriam eminentemente técnicos. O Lula fez toda uma campanha de que o julgamento seria político. No momento em que fez essa campanha, obrigou os magistrados a examinar vírgula por vírgula todos os recursos apresentados, todos os argumentos de contestação, todas as 230 páginas da sentença, para não deixar dúvida de que não havia nada de político e de que decidiriam tecnicamente. Normalmente os tribunais examinam a sentença e veem os elementos essenciais. Se houver elementos mais do que suficientes e se os recursos não conseguem atingir o núcleo da sentença, a decisão do colegiado é sobre o essencial e confirma-se a sentença. Mas como se disse que a decisão seria política e houve toda aquela pressão, os magistrados examinaram profundamente toda a questão de forma a ver se alguma vírgula havia sido deixada de lado. Isso fez com que uma sessão que poderia ter durado duas horas levasse o dia inteiro, com votos longos e substanciais, e unanimidade.
AE - E ainda há os outros processos...
IGM - Exato. No mês de março deve haver um segundo processo decidido pelo Sérgio Moro. Do ponto de vista de caracterização de uso, o caso do sítio de Atibaia é muito mais forte do que o do triplex. Teoricamente, pelo conjunto de provas levadas para o processo, é possível que haja uma pena ainda maior. E Lula tem mais outros sete processos. Uma campanha em que todos os candidatos podem bater nisso ou naquilo fica inviável. E evidente que, para quem quer não ser preso, o argumento da candidatura é uma defesa para efeitos externos, mas no íntimo ele sabe que isso é inviável. Entendo que o PT foi um partido importante para o país, porque representou num determinado momento uma postura de oposição ao sistema, e o Lula teve a sua importância carismática. Mas chegou o momento de o PT se reestruturar. O PT tem que recuperar as suas idéias passadas, e não ir para um radicalismo que não tem levado a nada no mundo inteiro. Há tempo para pensar na candidatura de alguém que não esteja contaminado por investigações ou condenações. Houve no TRF4 uma sinalização a favor do partido,
apesar da condenação, porque há esse tempo para pensar numa candidatura.
AE - Como o senhor avalia o cenário eleitoral a partir de agora?
IGM - Se os candidatos a presidente percebessem a importância da implantação da reforma previdenciária, veriam que não ficariam com o ônus da reforma e poderiam pegar um país mais ajeitado do ponto de vista das contas públicas. Todos têm medo de se indispor, mas iriam se indispor com quem? Com os servidores públicos e os detentores do poder. O grande déficit não é o do regime geral da Previdência: o grande déficit é o dos servidores públicos. São 29 milhões de aposentados de um lado e 3 milhões de outro: o déficit é dois terços maior entre os 3 do que nos 29. O grande problema da Previdência não está no regime geral, mas nos benefícios que quem está no poder se auto-outorga. Na prática, se os candidatos defendessem e assegurassem as reformas por meio de suas bases, seria ótimo. Caso contrário, sem esse ajuste das contas públicas, terão que enfrentar no primeiro ano um quadro muito mais difícil. Quando se fala no déficit do governo central, que foi de R$ 124 bilhões em 2017, estamos falando apenas do primário. Se analisarmos o nominal, passa dos R$ 5OO bilhões. Nenhum país resiste a isso. Todo país, para ter um mínimo de segurança, precisa de no mínimo 20% de poupança. Nós temos menos de 10%. Quando a Grécia chegou a 4%, há alguns anos, vimos o que aconteceu.
AE - Qual a sua opinião sobre o governo Temer?
IGM - O grande problema do Temer é estar num partido altamente pressionado pela Justiça. Além disso, há uma antipatia por parte do Ministério Público (MP) contra ele por não ter indicado como procurador-geral quem o Rodrigo Janot queria para sucedê-lo. O Janot, que é uma pessoa extremamente competente, também atuou politicamente contra o Temer. Tentou derrubá-lo e fracassou nas duas tentativas - as duas denúncias foram muito falhas. Ao separá-las, ele pretendeu que, se a primeira não passasse, criaria constrangimento com a segunda. Mas isso paralisou o país. Estávamos para entrar naquela semana com a reforma previdenciária. O Brasil teve um prejuízo enorme com a paralisação das reformas, e o Janot foi um dos grandes responsáveis pelo rebaixamento do Brasil nas agências internacionais. Num partido fragilizado, com grande parte dos políticos que o apoiam acuados pela Justiça, e ao mesmo tempo com a oposição revoltadíssima por ele ter ficado no lugar da Dilma, o Temer incorre em impopularidade máxima. Mas ele tem conseguido administrar razoavelmente bem. Estamos em contato há mais de 40 anos, até por sermos da mesma área, o direito constitucional. Numa das vezes em que conversamos depois que assumiu a Presidência, e antes das denúncias do Janot, ele me dizia: "Ives, eu não me importo de ser impopular. A história é que vai julgar se eu consegui fazer as reformas”. Está fazendo. A reforma trabalhista ele conseguiu, e essa se deve também ao meu filho [Ives Gandra Martins Filho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho], que sentia, em 19 anos como ministro do TST, a necessidade de adequar a nossa legislação. A rigor foi a única reforma grande que o governo conseguiu. Há outras coisas positivas, como o controle das contas públicas, a definição de um teto de gastos, a redução dos juros, elevar um pouco o PIB, reduzir o desemprego... Mas ele tem plena noção de que é a história que vai julgar o seu governo e não o povo, até porque não é candidato a nada. Se conseguir a reforma previdenciária, vai sinalizar que o futuro presidente deve continuar a fazer o que precisa ser feito. Diria que o Michel Temer ingressa na história como um presidente honesto que tentou repor o país no caminho para podermos efetivamente estancar a queda livre e começar a retomada do desenvolvimento.
AE - Seria de alguma forma o papel de um estadista?
IGM - Um estadista precisa de um apoio generalizado de todas as correntes políticas. O Temer tem apoio em função de concessões que faz.
AE - O senhor diria que Fernando Henrique Cardoso foi um estadista?
IGM - Foi quase um estadista. Gosto muito dele - na Academia Internacional de Direito e Economia, quem deu posse a ele fui eu. Ele teve uma visão de recuperação notável, brecou a inflação com o Plano Real, o país se estabilizou. Mas estadistas foram muito poucos no mundo, como Nehru, Gandhi, Charles de Gaulle ou Churchill.
AE - Qual a sua leitura sobre a corrupção?
IGM - A Lava Jato foi extremamente importante, com um inconveniente: deu ao MP muita visibilidade, e o MP pensou que era poder. Pela Constituição, não é. Sua função essencial é a administração da Justiça - ou seja, está no mesmo nível da advocacia, conforme os artigos 127 a 135. Os procuradores assumiram inclusive funções de delegados de polícia. O artigo 144, parágrafo 4°, declara o quê? Que as funções de polícia judiciária são de competência exclusiva dos delegados de polícia - mas o MP resolveu ele mesmo fazer os inquéritos e passou à cinematografia, com os procuradores sempre na televisão, dando palestras mundo afora... Isso evidentemente começou a prejudicar o próprio direito de defesa. Tivemos prisões precipitadas, conduções coercitivas desnecessárias - como a do Lula -, prisões provisórias que se prolongaram para poder haver as delações premiadas, muitas delas contestadas posteriormente etc. A Lava Jato, portanto, teve o mérito extraordinário de desventrar toda essa corrupção, mas teve também abusos. Com o tempo as coisas devem voltar ao leito natural.
AE - A sua crítica ao ativismo judicial vai na mesma linha?
IGM - Sim. Há hoje um ativismo judicial como nunca vi em 61 anos de exercício da advocacia. Por exemplo: como uma cláusula pétrea pode ser alterada por uma decisão por 6 a 5 do STF, reduzindo a culpa do trânsito em julgado para decisão de segunda instância? Essa decisão está contra a Constituição. Tenho livros escritos com nove dos onze ministros do Supremo, gosto muito deles e acho que são excelentes. Agora, o ativismo judicial prejudica. Onde está a norma de que candidato derrotado é que tem que substituir presidente, governador ou vice-governador afastado? Teria que haver nova eleição - direta nos primeiros dois anos e indireta nos dois últimos anos, conforme o artigo 81 da Constituição. Como a Cármen Lúcia, uma pessoa de primeiro nível de honestidade e integridade, diz que, pelo princípio da moralidade, não se pode admitir que uma pessoa que perdeu uma ação trabalhista seja ministra do trabalho? Ora, a indicada não foi condenada penalmente. Onde está essa norma na Constituição? É uma decisão que se baseia num critério que não está em lugar nenhum. A Constituição diz, no artigo 84, que é competência privativa do presidente a escolha dos ministros. A justificativa é o princípio da moralidade, mas nisso eu coloco o que quiser. Na prática, quando se começa a decidir não com base na lei, mas num princípio geral, podem-se inclusive defender posições opostas. Esse ativismo é perigoso porque cria uma insegurança - e mais do que isso: os ministros passam a entender que podem atuar nos vácuos legislativos. Quero dar um exemplo mais paradigmático. O artigo 103, parágrafo 2°, determina que nas ações de inconstitucionalidade por omissão cabe ao STF declará-la e comunicar ao Congresso que faça a lei. Debati esse assunto na época da Constituinte com o relator, Bernardo Cabral, Sydney Sanches [então ministro do STF] e Odir Porto, então presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros. Sugeri que o artigo deveria determinar um prazo, caso contrário o Congresso talvez nunca tomasse providências. O Sydney Sanches, que foi meu colega de turma e mais tarde presidiu o Supremo, disse: não dá. “Vamos admitir que o Congresso não faça em seis meses. Você acha que eu tenho condição de mandar prender 503 deputados e 81 senadores por desacato a uma ordem judicial?” ele perguntou. O artigo ficou sem prazo, mas o texto diz: nos vácuos legislativos, o Congresso é obrigado por determinação constitucional a fazer a lei. Mas hoje o STF está fazendo isso no lugar do Congresso. Isso traz uma insegurança jurídica muito grande.
AE - E causa desarmonia entre os poderes?
IGM - A Constituição pensou em freios e contrafreios aos poderes. O Judiciário não pode legislar. Mas por que o Legislativo tem obedecido sempre ao STF e não tem usado o artigo 49, inciso XI [cabe ao Congresso Nacional "zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes"] Porque está todo mundo acuado, com medo. Um terço do Congresso está sob investigação, uma parte denunciada. Os parlamentares estão receosos de exercer uma competência constitucional, e o STF, que é o guardião da Constituição, não o é quando invade a competência do Legislativo ou do Executivo, como aconteceu quando se impediu a nomeação da ministra do Trabalho. O artigo 2° determina que os poderes são independentes e harmônicos entre si. Hoje não são nem independentes nem harmônicos.
AE - Entrando no campo econômico, como o senhor avalia a questão da desigualdade, que foi um dos temas centrais dos debates do Fórum de Davos neste ano?
IGM - Evidentemente temos uma concentração de riqueza. O Thomas Piketty [autor de O capital no século XXI] mostra em seu livro que não há diferença nos percentuais de riqueza e pobreza de 1700 até agora - ou seja, sempre tivemos esse topo de 1% dos mais ricos. Apesar de toda a evolução econômica do mundo, não houve uma diminuição dessa diferença: os pobres continuam pobres e os ricos continuam ricos. Agora, pegue o pobre de 1700 e os que consideramos os pobres de hoje: o padrão de vida geral aumentou. O Piketty falha ao não considerar isso. Houve uma melhoria geral, principalmente na condição de vida dos mais pobres, embora a diferença persista. E qual é a redistribuição que ele propõe? E por meio do Estado. Ora, não há redistribuição de riqueza por meio do Estado. A melhor forma de gerar riqueza é gerar desenvolvimento com emprego. Nesse processo, a educação é fundamental. Por que a Coréia do Sul vai bem? Por conta do investimento pesado e contínuo em educação.
AE - Como o senhor enxerga o futuro do Brasil?
IGM - Minha experiência de um homem que completa 83 anos neste mês de fevereiro é a seguinte: vai depender do futuro presidente. No momento em que o Temer assumiu, tentou em primeiro lugar colocar a casa em ordem para que o futuro governo tenha o avião na cabeceira da pista. Se não fosse o Janot, já teríamos deslanchado. Como resultado, não conseguimos retomar as reformas. Se elegermos um presidente que tenha condições de fazer bons projetos, com o mercado que nós temos, de 200 milhões de pessoas, alguns setores altamente desenvolvidos, a retomada dos investimentos, uma agricultura que é das melhores do mundo etc., temos grandes possibilidades. Não podemos é ter um governo que venha com a história de rico contra pobre.