O ser humano já foi considerado homo sapiens e também homo faber. Mas não deixa de ser um homo ludens. O jogo como elemento da cultura foi objeto de um livro de Johan Huizinga, cujo título é exatamente “Homo Ludens” (Ed.Perspectiva). O autor sustenta que a noção de jogo é um fator distinto e fundamental, presente em tudo o que ocorre no mundo.
Ele se convenceu de que é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve. Para demonstrá-lo, aborda tópicos quais a natureza e significado do jogo como fenômeno cultural, sua expressão na linguagem, o jogo e a competição como funções culturais e o papel do jogo na guerra, no conhecimento, na poesia, na filosofia, na arte, para culminar com o elemento lúdico na cultura contemporânea.
Aborda, também, o aspecto lúdico no direito, no qual vou me deter brevemente.
Para a visão clássica, nada menos semelhante do que os territórios reservados ao jogo e à ciência jurídica. A concepção clássica exibe o direito, a justiça e a jurisprudência como esfera em que prepondera uma implacável seriedade, característica ausente do espaço lúdico. Apesar dessa primeira impressão, observa Huizinga, “o caráter sagrado e sério de uma ação de maneira alguma impede que nela se encontrem qualidades lúdicas”.
Alguém provido de singular perspicácia logo concluirá: é claro que existe jogo no direito. Não são sorteados os sete jurados, os cidadãos que julgarão seu par acusado de atentar contra a vida e submetido ao Tribunal do Júri?
Esta obviedade seria insuficiente para exaurir a presença do jogo no aparato do Judiciário. É mais significativa a influência lúdica na operacionalidade do equipamento estatal encarregado de solucionar controvérsias. A expressão mais trivial do funcionamento do sistema Justiça é o processo. Esta modalidade de resolução de conflitos considerada o ápice da escalada civilizatória e que sucedeu à vingança privada e à lei de talião, guarda todas as características de uma competição. “Quem diz competição, diz jogo”, diz Huizinga. O lúdico e o competitivo estão no DNA do processo judicial. Este instrumento se converteu na primeira opção de qualquer pessoa que se sinta lesada ou meramente ameaçada em seus direitos.
Aquilo que a teoria propõe seja uma estrutura cooperatória, em que todos os envolvidos procuram a mais adequada concretização do justo, não é senão uma pugna apenas formalmente civilizada. O processo se transfigura numa arena de astúcias, onde a esperteza, a sagacidade, a diligência em encontrar desvios ou atalhos valem muito mais do que a qualidade do direito envolvido.
O fenômeno é universal. No livro, menciona-se o testemunho de um antigo juiz: “O estilo e o conteúdo das intervenções nos tribunais revelam o ardor esportivo com que nossos advogados se atacam uns aos outros por meio de argumentos e contra-argumentos (alguns dos quais são razoavelmente sofisticados)”. A perda de polidez registrada na sociedade chega também ao foro. O protocolo delicado de um Piero Calamandrei, no seu clássico “Elogio aos Juízes” foi relegado à arqueologia. Os Códigos de Ética propõem cordialidade e lhaneza. Nem sempre são observados.
Para acrescentar condimento à situação brasileira, aqui uma Constituição analítica e fluida permite leituras as mais diversas de um único e mesmo dispositivo. A linguagem vaga e imprecisa, fruto do compromisso possível entre os integrantes do neo-feudalismo que é o Parlamento contemporâneo, autoriza – ou melhor, obriga – o juiz a um permanente exercício de hermenêutica.
Há tribunais em que a jurisprudência é tão vasta, tão multifária, tão diversa, que o trabalho dos advogados é selecionar aquelas invocáveis, pois há respostas para múltiplas definições do que venha a ser o direito. É a jurisprudência à la carte, que torna aleatória a solução.
Tudo ainda mais complicado quando a República Federativa do Brasil adotou a estrutura ramificada do Judiciário, com duas Justiças igualmente chamadas comuns, e que fazem proliferar os conflitos de competência e que elegeu o quádruplo grau de jurisdição como substituto do apregoado duplo grau. Uma decisão definitiva, para percorrer esse calvário, pode levar vinte anos até o trânsito em julgado.
A teoria dos jogos é bem conhecida dos clientes do sistema Justiça, quando torcem para que a distribuição eletrônica – solução evidentemente lúdica – destine seu processo, ou seu recurso, para um órgão julgador que perfilhe determinada orientação. Caso contrário, a mesma tese poderá merecer julgamento completamente inverso ao do paradigma utilizado.
O legislador ofereceu algumas respostas para a decantada imprevisibilidade do Judiciário. Súmulas, cultura do precedente, uniformização de jurisprudência. Mas tudo isso também depende de uma apreciação lúdica de tais ferramentas. Existem, estão formalmente consagradas. Já a sua utilização efetiva é aleatória. Depende das diretrizes adotadas pelos transitórios ocupantes dos cargos de mando, a cada biênio substituídos nos quase cem tribunais brasileiros.
Até que o instituto da reeleição, que tão excelentes frutos tem ofertado à República, venha a ser também adotado para as Cortes Judiciárias. Não é vaticínio, nem profecia. Mero exercício lúdico de um observador do panorama tupiniquim.