Fonte: Estadão - 14/10/2023
O Supremo Tribunal Federal (STF), no próximo dia 18 de outubro, iniciará o julgamento sobre a constitucionalidade do regime de separação nos casamentos e nas uniões estáveis da pessoa idosa.
O Tema 1.236 em debate no STF, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, parte do ARE 1.309.642-SP, com o reconhecimento de repercussão geral baseado no precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em que foi reconhecida a validade constitucional da norma que estabelece o regime da separação aos maiores de 70 anos, com a atribuição da herança aos filhos do falecido e não à viúva (AI 2094514-81.2018.8.26.0000):
Agravo de instrumento. Inventário. Decisão que determinou a apresentação de plano de partilha pela inventariante, com observância da sistemática introduzida pelo RE nº 646.721/RS, e declarou a inconstitucionalidade do art. 1.641, II do CC. Irresignação. Regime da separação obrigatória de bens que, ao restringir a autonomia de vontade dos nubentes, busca proteger a pessoa idosa de casamentos realizados com exclusiva finalidade patrimonial. Inconstitucionalidade não configurada. Restrição legal que se aplica igualmente ao casamento e à união estável. Precedentes do STJ e desta Corte […] - TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, AI 2094514-81.2018.8.26.0000, Rel. Des. Alexandre Marcondes, j. 25.06.2019.
O Tribunal Estadual de São Paulo destacou que a norma tem por objetivo proteger a pessoa idosa. O caso tratava de um inventário, em que houve união estável, iniciada quando o falecido tinha mais do que 70 anos, tendo deixado filhos, que são herdeiros necessários. A viúva pleiteava a inconstitucionalidade do regime de separação imposto por lei, para receber herança do falecido. Note-se que nas uniões estáveis, iniciadas por pessoas que não sejam idosas, existe direito à herança do companheiro sobrevivente, conforme a ordem de vocação hereditária constante do art. 1.829 do Código Civil (STF, RE 878.694 - Tema 809).
A Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) foi admitida como amicus curiae no processo em tramitação no STF, defendendo a constitucionalidade do art. 1.641, II do Código Civil, tendo em vista que essa norma é protetiva e não discriminatória, ampliando a autonomia da vontade da pessoa idosa na administração de seu patrimônio.
Numa primeira e rasa vista, há quem diga que a pessoa idosa estaria discriminada pela norma, como se estivesse interditada; embora tenha discernimento, teria perdido a autonomia da vontade. O equívoco deste pensamento é de evidência solar.
Vejamos.
Muito embora todos sejam iguais perante a lei, há grupos de pessoas que merecem e têm proteção diferenciada. É o princípio da igualdade material, aplicado, por exemplo, às mulheres por meio da Lei Maria da Penha, que oferece tutelas jurídicas especiais às pessoas do gênero feminino, que não têm os homens. Os menores de 18 anos também são protegidos de forma diferenciada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, também o Estatuto da Pessoa Idosa confere medidas especiais aos que têm “maior idade”. Portanto não se trata de discriminação, mas, sim, de proteção diferenciada a todos que têm a chamada vulnerabilidade.
A autonomia da vontade da pessoa idosa está muito mais preservada pelo regime de separação de bens, em comparação com outros regimes. Tendo já construído seu patrimônio durante anos a fio, com o regime de separação, pode vender bens e fazer doações sem depender da autorização do cônjuge ou do companheiro, porque tem a total liberdade de administrar seu patrimônio como bem entender, o que não ocorre em outros regimes de bens.
Se no casamento ou na união estável da pessoa idosa se aplicasse o regime da comunhão, ela estaria sujeita ao arbítrio do “consorte” para, por exemplo, vender um imóvel a terceiro ou doá-lo a um filho; aqui um jogo de palavras: “o cônjuge ou o companheiro do maior de 70 anos teria mais sorte”, podendo impedir a realização da vontade da pessoa idosa.
A vontade da pessoa idosa também é respeitada na sua faculdade de realizar doações e celebrar testamento em favor do próprio cônjuge ou companheiro, respeitada a cota disponível, ou seja, até 50% de seu patrimônio se tiver filhos ou outros herdeiros necessários, mas isto tudo com maior reflexão, após a vida em comum.
Afinal espera-se que todos se casam ou passam a viver em união estável, estejam apaixonados e este sentimento obnubila a razão, sendo nesse momento que a pessoa idosa, por meio do regime de separação, não ficará sujeita ao encantamento da paixão.
Se pudesse escolher o regime da comunhão, sendo total e divorciando-se a seguir, inclusive por iniciativa do “consorte”, a “sorte” deste último seria de receber metade de todo o patrimônio de seu cônjuge idoso. Se o regime fosse da comunhão parcial, o “consorte” teria direito a metade de todos os rendimentos dos bens, inclusive daqueles exclusivos do cônjuge, adquiridos durante o casamento. O mesmo se aplicando à união estável.
Ainda mais com a crescente longevidade, espera-se que as pessoas idosas possam ter vida saudável e digna, para tanto precisam ter exclusividade em seu patrimônio e seus rendimentos, não podendo ser forçadas a dividi-los com ninguém por causa de uma impensada escolha do regime de bens no momento da paixão.
As normas sempre utilizam o critério da abstração, sem que tenham em vista um determinado caso concreto, com razoabilidade e critérios justificados, sendo que toda a exceção confirma a regra.
O art. 1.641, II do Código Civil é constitucional, em perfeita harmonia com a proteção da dignidade (CF, art. 1º, III), do bem-estar (CF, art. 3º, IV), da propriedade (CF, art. 5º, XXII) e dos mais elevados interesses da pessoa idosa (CF, art. 230).
- Regina Beatriz Tavares da Silva, doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Fundadora e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Advogada, fundadora e sócia de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA)