Fonte: O PODER 360 - 14/12/2022
O STF (Supremo Tribunal Federal) retomará na 4ª feira (14.dez.2022) o julgamento da inconstitucionalidade do chamado “orçamento secreto”, as emendas de relator do Orçamento, uma das práticas de corrupção institucionalizada mais horrendas e lamentáveis de que se tem notícia em nossa história.
Há alguns especiais momentos ao longo da vida em que as circunstâncias são extremamente complexas e desfavoráveis. São situações agudas e extremas que medirão nosso amadurecimento republicano e democrático, já que recentemente completamos 2 séculos de independência e 133 anos de vida republicana. Este julgamento é um destes momentos.
Digo que as circunstâncias são dificílimas porque temos notoriamente a Câmara dos Deputados, por seu presidente, Arthur Lira (PP-AL), articulando em favor da manutenção da medida, assim como o Senado. Temos o Poder Executivo, representado no julgamento pela AGU (Advocacia-Geral da União), lamentavelmente posicionando-se favoravelmente a tal prática nefasta.
O mais estarrecedor, a meu ver, na quarta passada, foi a sua Excelência, a senhora vice-procuradora Geral da República, Lindôra Araújo, representando a PGR (Procuradoria-Geral da República), abonando este posicionamento, como se assim pensasse o MP (Ministério Público) brasileiro, integrado por mais de 16.000 integrantes, com a missão constitucional de defender a ordem jurídica e o regime democrático.
Tenho a mais absoluta convicção que se fosse realizada enquete junto aos integrantes do MP, o resultado apontado seria avassalador. Deixariam de referendar o posicionamento de sua Excelência, a vice-procuradora, e unanimemente velariam pelos princípios constitucionais da publicidade e da separação dos Poderes, que têm sido ultrajados por esta prática asquerosa e que agudiza ainda mais nossa desigualdade social.
O Brasil, signatário do Pacto dos Governos Abertos em 2011, ao lado dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Noruega, África do Sul, México, Filipinas e Indonésia, comprometeu-se perante o mundo em ser modelo internacional, paradigma de transparência pública, mas não temos feito a lição de casa. A ministra e presidente do STF, Rosa Weber, determinou que fossem divulgados os nomes dos congressistas beneficiados pela prática espúria e não houve a publicização da maneira determinada.
Depois dos escândalos da década de 1990, com os “anões do Orçamento”, tivemos aprimoramentos no ordenamento jurídico em matéria de Orçamento público, mas a matéria que diz respeito ao tema emendas de relator evidencia-se como integrante de universo que permite práticas inadmissíveis.
Para 2023, há dotações precisas para a saúde pública, para a educação pública, para a segurança pública, para a moradia, para o meio ambiente e mais R$ 19 bilhões, na forma de cheque em branco, na rubrica das emendas do relator.
Isto é impensável numa democracia em que há governo público “em público”, como cravou Norberto Bobbio e como pontuaram de forma assertiva neste julgamento todas as organizações que representam a sociedade civil, intervindo na condição de amicus curiae (ou amigos da Corte), que se admita tamanha desfaçatez perante a sociedade.
O trabalho investigativo do repórter Breno Pires, que revelou esquemas de corrupção com as emendas de relator, foi um dos vencedores da 3ª edição (2022) do prêmio Não Aceito Corrupção na categoria jornalismo investigativo e de outras relevantes premiações neste campo.
Por outro lado, já nos ensinou o juiz da Suprema Corte dos EUA Louis Brandeis que “o melhor desinfetante é a luz solar”, referindo-se à essencialidade da transparência, obstruída frontalmente pelas emendas de relator, vez que a verba é direcionada de acordo com conveniências de ocasião política, servindo para compra de apoio político em votações cruciais, aniquilando a lisura da competição política, hipertrofiando o Legislativo.
Ou seja, em vez de ter destinação claramente previsível e direcionada a uma política pública determinada, quebra-se esta lógica e a própria lógica das emendas, entregando-se fatia gigantesca nas mãos de um indivíduo –sua majestade, o relator do Orçamento. É sabido que a concentração de poder é desaconselhável e sempre produz altos riscos de corrupção.
A supremacia inaceitável do Legislativo, com um bolsão bilionário de recursos não destinados como deveriam, defendido com unhas e dentes pelo chamado “Centrão”, subjugando e chantageando o Executivo e até mesmo o Judiciário, aniquila o princípio da separação dos Poderes, pedra angular do nosso sistema constitucional e do próprio Estado Democrático de Direito.
Individualmente, congressistas fazem interpretação divergente, vá lá. Mas o cenário em que a Câmara e o Senado, por seus presidentes, e o Executivo, pela AGU e a PGR, defendem as emendas de relator, é um verdadeiro filme de terror. Felizmente, a sociedade civil se fez presente e sua voz gritou forte contrariamente, assim como a voz sempre atenta da imprensa. E repito: a posição da PGR não reflete a visão do MP brasileiro. Tenho convicção disto. Tenho convicção que o mundo acadêmico igualmente não abona esta verdadeira atrocidade.
Na 4ª feira, o STF tem um papel social crucial a cumprir, num dos julgamentos mais importantes de sua história. Precisará dizer que há um princípio que se sobrepõe aos demais, que é o da prevalência do interesse público. E a sociedade espera que seja dada esta resposta.
Não se trata do interesse de A, B, ou C. Trata-se de verificar se nossos valores republicanos democráticos serão protegidos ou se será permitido o uso do poder visando o autobenefício, como vem ocorrendo ao longo dos séculos. É hora de ser estabelecido divisor de águas e fortalecer-se a cidadania. Com a palavra o STF.