Os acontecimentos do dia 8 de janeiro que culminaram com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes da República merecem uma análise serena.
Não se trata de ação de terroristas quer em seu sentido vulgar, quer em seu sentido técnico, como vem apregoando a mídia leiga.
Terrorismo em sentido vulgar envolve sequestros, assassinatos, explosão de bombas e emprego de armas químicas, como o que está ocorrendo no Afeganistão .
Em sentido técnico, o terrorismo significa prática, por um ou mais indivíduos, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, de atos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo a pessoa, o patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública (art. 2º da Lei nº 13.260/2016 que tipifica o crime de terrorismo).
Houve, certamente, crime de dano ao patrimônio público e crime tipificado como societas sceleris, devendo seus autores punidos com o rigor da lei. Não se faz democracia com emprego de violência!
Quanto aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, tipificados na Lei 14.197/21 (nova lei de Segurança Nacional) capitulados nos arts. 359-L e 359-M do CP, como sustentado por alguns juristas, temos sérias dúvidas. Em princípio, não é crível que um punhado de civis desarmados, sem ajuda militar, tentem com emprego de violência ameaçar ou abolir o Estado Democrático de Direito, nem de tentar depor, por meio de violência, o governo legitimamente constituído. Apenas ad argumentandum suponha-se que o poder seja tomado. Quem, dentre os desordeiros, assumirá o comando? Como um punhado de civis desarmados enfrentará a natural reação do Estado? Se alguns desses invasores pensaram em dar um golpe de Estado, certamente, não estavam em seu juízo normal. A nossa democracia é suficientemente forte para ser destruída por um punhado arruaceiros.
Mas, esse é um assunto que caberá ao Poder Judiciário dar a última palavra, com a habitual isenção de ânimos, sem se deixar levar por discursos explosivos veiculados pela mídia.
A invasão de prédios públicos que poderiam ter sido evitados decorreu, de um lado, da falta de competência do governo de prever os acontecimentos e da falta de um plano de emergência do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, e de outro lado, da omissão deliberada do governo do Distrito Federal que redundou na deprimente cena de policiais, praticamente escoltando os manifestantes para o interior do prédio do Congresso Nacional.
Não é crível que o corpo de segurança pública do DF, que assegurou a posse tranquila do Presidente Lula em cerimônia que reuniu mais de 100 mil pessoas, tenha, sete dias depois, perdido a capacidade de conter a manifestação de 2 mil pessoas. É muito estranha essa invasão!
A depredação das sedes dos Três Poderes estava a exigir intervenção militar que o Presidente Lula habilmente descartou, preferindo a via da intervenção federal nos órgãos de segurança pública do DF, sob o fundamento de que o episódio não era de tamanha magnitude que merecesse a convocação das Forças Armadas.
Essa pífia iniciativa presidencial foi completada pelo Ministro Alexandre de Moraes que determinou a suspensão do governador do DF por 90 dias, além de ordenar a desocupação dos manifestantes em frente ao quartel-general do Exército.
Contudo, essa desocupação com emprego da força policial encontrou resistência do comando da corporação militar, que cercou o prédio militar com tanques de guerra na defesa do território sob sua jurisdição. A desocupação ocorreu de forma pacífica, sem emprego da força policial, na linha dopensamento moderado do Ministro de Defesa.
Agora, cabe lembrar que esse episódio lamentável, que macula a imagem dos Três Poderes, não aconteceu por acaso.
A causa remota reside no idos de 2003 quando o Presidente Lula procedeu a divisão da sociedade brasileira em “nós trabalhadores do PT” e “os outros”.
No discurso de posse do Presidente Lula ficou clara a continuidade dessa divisão que norteou toda a campanha eleitoral de 2022. No dia da posse não faltaram ataques ao governo anterior, bem, como alusão à reconstrução do país como se tudo tivesse sido destruído pelo governante anterior.
O único discurso pacifista, sensato e responsável foi o do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, que acentuou a necessidade de pacificação da sociedade brasileira e enfatizou a urgência na incrementação das despesas de investimento, a par do desenvolvimento das políticas públicas de inclusão social.
Corretíssimo esse discurso. A fome, a pobreza, em última análise, resultam da carência de investimentos na infraestrutura do país com vistas à multiplicação da riqueza nacional, a longo prazo, fazendo o PIB crescer.
É preciso transformar o Brasil em verdadeiro canteiro de obras de norte a sul, de leste a oeste, modernizando e expandindo a malha viária, as instalações aeroportuárias, as redes de comunicações, as fontes de energia, as redes de ensino fundamental, e construção de refinarias de petróleo para nos livrar da dependência estrangeira.
A execução dessas obras, com certeza, absorveria os milhares de desempregados que vivem de bolsa família. O segredo não é dar de comer, mas, ensiná-los a produzir e dar condições para que isso aconteça. Se não se atacar a causa da fome e da miséria, por mais que se gaste nas despesas de ajuda financeira, o contingente de miseráveis tende a crescer de um ano para outro.
Após a posse, o Presidente Lula continuou chamando seu antecessor de genocida, uma expressão deselegante que não é dado a um Chefe de Estado dela fazer uso.
Outrossim, falou-se seguidamente em reconstrução do país, como se estivesse em campanha eleitoral, acabando por acirrar os ânimos dos que foram vencidos nas urnas.
Reconstrução é aquilo que ocorreu no pós 45, quando os países do eixo ficaram devastados pela Grande Guerra, ensejando o surgimento do BIRD para socorrer esses países. Nada disso aconteceu no Brasil.
O governo do Presidente Bolsonaro, tirante a sua personalidade pitoresca, não afeito à convivência harmoniosa, declarando guerra à impressa e a países amigos, não procedeu a desmontagem do país. Muito ao contrário, apesar da pandemia, que afetou durante a economia mundial, promoveu obras de infraestrutura não visíveis aos olhos da população, porque esses tipos de despesas de capital só surtem efeitos no longo prazo.
O que é importante nas despesas públicas não é apenas a sua quantidade, mas acima de tudo a qualidade dessas despesas que aumentam o potencial produtivo do país.
Por fim, enquanto o atual governante e seus seguidores não passarem a respeitar os mais de 49 milhões de pessoas que votaram em Jair Bolsonaro, a divisão da sociedade continuará com potencial para acontecimentos que em nada contribuem para a pacificação da sociedade e retomada da normalidade democrática.
É preciso, pois que o episódio do dia 8 de janeiro seja examinado em sentido mais amplo, detectando as possíveis causas da insatisfação da parcela ponderável da população e manifestação violenta de alguns poucos inconformados com o sistema eleitoral, que culminou com a eleição do Presidente Lula com pequena margem de votos a seu favor.
É preciso que deixem para as instâncias próprias a apuração e punição dos envolvidos na invasão e destruição do patrimônio público com todo o rigor da lei, abstendo-se o governo sobre ele manifestar de forma contínua e incessante atraindo a atenção da mídia. A melhor resposta que o governo pode dar aos desordeiros, assegurando a continuidade da ordem democrática e o estado de Direito, é promovendo o desenvolvimento socioeconômico da nação.
Por derradeiro, houve incompreensão de parte a parte, cada qual olhando apenas para o seu umbigo, numa atitude egoística e individualista, distante dos interesses gerais da nação.
O ex Presidente Bolsonaro poderia muito bem ter dirigido poucas palavras, desde o início, para conter os bloqueios de estradas que tantos transtornos trouxeram à sociedade em geral, bem como, fazer um apelo para desfazer as concentrações em torno dos quartéis. Mas, o ex Presidente manteve silêncio sepulcral como que tacitamente referendando a ação dos radicais.
O Presidente Lula, por sua vez, poderia deixar de atacar o seu antecessor, deixar de lado discursos populistas de “reconstrução nacional”. Se os dois estenderem as mãos, creio eu, a paz social voltará a reinar.
SP, 12-1-2023.
* Jurista e Professor. Presidente do Instituo Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT.