Fonte: Jornal SP Norte - 4/10/2023

Vários são os comentários comparando o decreto n° 8.243 de 23 de maio de 2014 aos soviets e ao soviet supremo da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Evidentemente estamos fazendo referência à Constituição de 7 de outubro de 1977, antes da reforma de 1990 que instaurou um verdadeiro sistema presidencialista com Gorbachev. Todo poder pertence aos “soviets” dos deputados do povo, eleitos pela população. Os outros órgãos do Estado são submetidos ao controle das Assembleias (soviets) dos deputados do povo e responsáveis ante elas. Não poderá haver participação de outro Poder, o que faz deduzir a ilegitimidade do direito de controle jurisdicional. Isto ocorreria com os demais países socialistas quanto à constitucionalidade das leis, decretos leis, decretos e outras disposições de caráter geral, conforme, a exemplo, o artigo 70, alínea “1”, da Constituição Cubana de 24.02.1976. Mais precisamente, na URSS, o controle de constitucionalidade era exercido pelo “Presidium”, composto de 33 membros, eleitos pelo próprio soviet, nos intervalos das sessões brevíssimas do “Soviet” Supremo. O mesmo ocorria nas repúblicas federadas através dos “Soviets” Supremos e seus órgãos permanentes, os “Presidiums”. Se a Corte Suprema constatasse que uma lei ou ato normativo não era conforme a Constituição dirigir-se-ia ao “Presidium ou ao próprio Soviet”. O artigo 113 dava direito de iniciativa das leis à Corte Suprema e ao Procurador Geral. Às procuradorias competia a vigilância suprema da execução estrita e uniforme das leis por todos os ministérios e outros órgãos executivos do Estado, pelas organizações sociais e pelos cidadãos. É a negação da separação de poderes, que devem ser reunidos em um único órgão supremo de direta emanação popular.

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Ocorre que o povo votava em lista pré-estabelecida e quem indicava os candidatos aos Soviets, conforme o artigo 100º da Constituição, era o rol composto das organizações do partido Comunista da União Soviética, os sindicatos, a União das Juventudes Comunistas Leninistas da URSS, as cooperativas e outras organizações sociais, os coletivos de trabalhadores, bem como as assembleias dos militares nas respectivas unidades. Portanto selecionavam, dirigiam, controlavam, policiavam. Basta dizer que o vice apresentado por Gorbachev, na sabatina, definiu-se como “comunista do fundo do coração”. Não havia o voto de escolha livre e fora da lista. Destes candidatos sairiam os eleitos formadores dos “Soviets”, do “Soviet” Supremo e do “Presidium”. O “Soviet” Supremo de acordo com o artigo 137º era o órgão Supremo do Poder e da Administração e o Conselho de Ministros da URSS, designado pelo “Soviet” Supremo da URSS era o órgão superior da Administração e Execução, conforme o artigo 128º.

Merece destaque, pelo sistema, a possibilidade de um decreto mudar a ordem econômico-social adaptada à Constituição. Só em momento posterior a revisão constitucional viria ratificar a transformação já acontecida. Podendo a Constituição ser modificada por Decreto ela é flexível e não cabe controle. Por outro lado, o órgão de controle é o mesmo que edita as normas. É um autocontrole que não é controle. Toumanov considerava o controle jurisdicional um obstáculo ao desenvolvimento da legislação. Mas é isso que se procura para limitar o poder e evitar o abuso. Oportuno lembrar Montesquieu:
“Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tiranas para executá-las tiranicamente” e “não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor”. Conforme o artigo 6º da Constituição da URSS, a força dirigente, e orientadora, o núcleo do sistema político é o Partido Comunista. Pelo artigo 7º as organizações sociais participam na gestão dos assuntos do Estado e da sociedade, na resolução dos problemas políticos, econômicos, sociais e culturais. O artigo 9º amplia a participação, reforça o controle popular, amplia a publicidade e consideração permanente da opinião pública.

O artigo 92 afirma que os “Soviets” de deputados do povo criam órgãos de controle popular que conjugam o controle estadual com o controle social exercido pelos trabalhadores. Conforme o artigo 104° os deputados continuam em suas profissões ou cargos e são dispensados para as sessões. Art. 105º “os deputados têm o direito de interpelar os correspondentes órgãos do Estado e funcionários públicos que são obrigados a responder à interpelação na sessão do “Soviet”.

Os deputados têm o direito de dirigirem-se a todos os órgãos estaduais e sociais, empresas, instituições e organizações…e participarem na sua apreciação. Os dirigentes…têm o dever de receber sem demora os deputados e de examinar as suas propostas dentro dos prazos estabelecidos pela lei”.

Depreende-se do exposto, que, de formas semelhantes, iguais ou não, existem afinidades de propostas, objetivos e meios entre o decreto e o sistema soviético.

É democrático ou arbitrário? Exorbita? Invade funções de outros poderes? Censura? É constitucional ou inconstitucional?

O Decreto nº 8.243 de 23 de maio de 2014, rejeitado, tem estrutura e funções semelhantes à constituição da URSS de 1977 e sua emenda. O decreto que foi afastado como um todo está retornando no varejo. Um sistema de partido ou domínio único, sem alternativas. A lista de candidatos é preparada pelo partido. Não há liberdade para candidatar-se. Há eleições e poderá haver todos os dias, mas só podem votar nos que constam da lista adredemente preparada. Os órgãos do executivo, judiciário seguem os mesmos critérios. Há um controle pelos órgãos administrativos, políticos e sóciais. Em todos são garantidas maiorias do governo: No Comite governamental de Participação Social, nos conselhos populares, nas mesas de diálogos e de monitoramento, nas comissões, nas secretarias, nas agências reguladoras. Não se pode falar em Democracia relativa e quando mencionada por clássicos, expressam democracia autoritária, democracia totalitária, revelam participação popular controlada, restrições às liberdades. Isso é outra coisa, mas nunca democracia que tem seus elementos, suas características, seus objetos como um ideal a ser perseguido.

Deve haver um elevado nível ético da classe política, afastando as patranhas componentes de narrativas iníquas, na busca da verdade, como dizia Alzaga no processo constituinte espanhol, lembrando o poeta Antonio Machado:
“Tu verdad no, la verdad.
Vamos juntos buscarla.
La tuya guardatela”.