O governo populista que aumenta as despesas sem correspondentes fontes de custeio, incorrendo em erro primário das finanças públicas, tenta, a qualquer custo, aumentar a arrecadação dos tributos por via de mecanismos administrativos ilegítimos, como sucedâneo da elevação da carga tributária obstada pelo princípio da anterioridade.
Mas, para o exercício de 2024 em diante há razões para acreditar na escalada de tributos sem precedentes na história, por conta de políticas públicas voltadas para a projeção na mídia, o que significa despesas vultuosas, inclusive, daquelas representadas pela ajuda financeira a países latino-americanos, como aconteceu no passado.
Assim é que nos primeiros dias de seu governo, o Presidente Lula assinou a Medida Provisória de nº 1.160/23 para restabelecer o execrável voto de qualidade no CARF, atropelando a recente decisão plenária do STF que havia julgado constitucional o art. 28 da Lei nº 13.988/20 que, em caso de empate nas votações, dava ganho de causa à tese favorável ao contribuinte, fundamentado na ordem jurídico-tributária prevista no Código Tributário Nacional (ADIs nº 6.399, 6.403 e 6.415).
O voto de qualidade, por si só, não representa um mal, desde que o representante da Fazenda (auditor da Receita Federal ou Procurador da Fazenda Nacional) tenha em mente a sua função de julgador, despido de sua vinculação ao órgão fazendário a que pertence, como acontecia à época do antigo Conselho de Contribuintes em que Presidentes do órgão ou das Câmaras proferiam votos de desempate a favor dos contribuintes ou da Fazenda, conforme as circunstâncias de cada caso concreto, à luz dos textos normativos em discussão e à luz da melhor doutrina e da jurisprudência de nossos tribunais. A neutralidade fiscal era rigorosamente observada pelos agentes investidos na função judicante.
Com a passagem do Conselho de Contribuintes para o novo órgão, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF – tudo mudou.
O Presidente do órgão, que é originário dos quadros da Receita Federal ou da Procuradoria da Fazenda Nacional, passou a proferir votos de desempate invariavelmente a favor da Fazenda em qualquer situação.
O Ministro Marco Aurélio na ADI nº 5.731 impetrada pela OAB contra o voto de qualidade previsto no § 9º, do art. 25 do Decreto-lei nº 70.235/72, associando o voto de minerva a um superórgão lançou a seguinte indagação: “é possível que, em um colegiado, o cidadão, falível – como outro qualquer, e assim também nós o somos –, profira um voto e, neutralizando-se os votos ante o empate verificado, venha decidir, fazendo-o no campo republicano e democrático, isoladamente?” E concluiu o erudito Ministro: “Não consigo, diante das balizas da Constituição, dita cidadã por Ulisses Guimarães concluir que alguém possa ter o poder tão grande de provocar um empate e, posteriormente, reafirmando óptica anterior, dirimir esse mesmo conflito”.
A citada ADI perdeu objeto com a superveniência da Lei que aboliu o voto de qualidade.
Efetivamente, a Lei nº 13.988/20 extinguiu, corretamente, o voto de desempate mediante inserção do art. 19-E na Lei nº 10.522/2002. Em havendo empate na votação, o lançamento tributário não mais poderá ser considerado válido.
É preciso a maioria de votos para a sua confirmação, tese que se aproxima do princípio de direito penal: in úbio pro reo.
Outrossim, essa tese tem amparo na jurisprudência dos tribunais superiores (STF e STJ) segundo a qual a constituição definitiva do crédito tributário só se dá com a final manifestação no processo administrativo tributário, quando ocorre a chamada coisa julgada administrativa.
Logo, se não houver maioria na última instância administrativa – no CARF – o crédito tributário não estará constituído pelo lançamento impugnado. É o que se deduz da Súmula vinculante nº 24 do STF. E é, também, o que afirmou o Ministro Marco Aurélio, Relator das ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415 que considerou constitucional a proclamação da tese favorável ao contribuinte em caso de empate, exatamente porque não se formou a maioria para a confirmação do crédito tributário.
De fato, em um órgão paritário como o CARF, onde a possibilidade de empate é visível, algum mecanismo de solução há de ser previsto na legislação.
Posto que a relação tributária é essencialmente neutra, isto é, nem pró fisco, nem pró contribuinte, mas somente pró lege, a tese mais justa e razoável seria a do rodízio periódico do Presidente e do Vice presidente do CARF, da Câmara ou da Turma no exercício do voto de qualidade. A presidência do órgão é ocupada pelo representante da Fazenda, ao passo que, a sua vice-presidência é ocupada pelo representante dos contribuintes.
Não conseguimos, por hora, vislumbrar outros mecanismos para resolver a situação de empate.
Temos razões para crer que essa Medida Provisória editada pelo legislador palaciano será objeto de impugnação judicial com boa chance de vitória, pois, o STF já considerou constitucional a adoção de tese favorável ao contribuinte, bem como, o julgamento da ADI nº 6.731 contra o voto de qualidade estava caminhando pelo pronunciamento de sua inconstitucionalidade ante os argumentos irrespondíveis do Ministro Marco Aurélio.
Dessa forma, o legislador do Palácio do Planalto agiu de maneira açodada, inoportuna e equivocada.
SP 31-1-2023
* Texto publicado no Portal Migalhas nº 5.533 de 1-2-2023.