O homenageado desfilará na avenida de tornozeleira eletrônica, naturalizando a corrupção em ato de indescritível escárnio

Percebo muitas pessoas desencantadas em relação ao combate à corrupção, mas, mesmo parecendo cada vez mais difícil a prevalência do interesse público, é imprescindívelRoberto Livianu inspirar-se todos os dias em Martin Luther King e não silenciar diante do previsível grito dos desonestos, dos corruptos.

O Índice de Confiança Social 2023, recentemente divulgado pelo Ipec, traz suposta melhoria nos níveis de confiança dos brasileiros em relação a partidos políticos e ao Congresso Nacional, comparando com o início da pesquisa, em 2009. Será, mesmo, que aumentou a confiança? A pesquisa é recorte de momento e, certamente, não investigou por que teria havido o afirmado aumento destes níveis de confiança. A memória curta do eleitor, com o que os políticos contam, somada aos nossos números pífios da educação, talvez explique a só aparente melhora.

Depois da profunda desilusão com a soltura, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do ex-governador Sérgio Cabral, símbolo máximo da corrupção brasileira, com seus 400 anos de condenação em 23 processos, em que era réu confesso, aprofundou-se muito o descrédito em relação ao sistema de justiça brasileiro como um todo. O ex-governador do Rio corporifica a corrupção de todo um país, tinha seu código particular para a propina (“taxa de oxigênio”), comprou milhões em joias para a esposa clandestinamente – na verdade, com dinheiro público –, com a certeza da impunidade, e gargalhou em Paris celebrando conquistas corruptas na famosa festa dos guardanapos.

Para ter uma ideia da nossa escala de valores morais atual, a escola de samba União Cruzmaltina, ligada ao Vasco, do famoso Eurico Miranda, acaba de decidir adotar como tema do samba-enredo do desfile de carnaval de 2024 justamente a trajetória do indivíduo cujos atos inviabilizaram por longos anos a educação pública, a saúde pública, a moradia popular e o saneamento básico no Estado do Rio: Sérgio Cabral. E o homenageado desfilará na avenida de tornozeleira eletrônica, naturalizando a corrupção em ato de indescritível escárnio, que certamente inspiraria Salvador Dalí a pintar O cinismo de um corrupto impune, em meio à ignorância geral, no desfile de carnaval, que seria a mais retumbante obra que jamais imaginou pintar em vida – arrastaria multidões onde estivesse exposta.

No Rio de Janeiro o carnaval sempre foi dominado pelos gângsteres do jogo do bicho, como Castor de Andrade, Turcão, Miro, Anísio, enquadrados pela juíza Denise Frossard. Hoje, seus herdeiros lhes sucederam e continuam a comandar o carnaval, universo no qual não se sabe o que significam transparência, integridade ou compliance. Lá, no mesmo Rio, elegeu-se deputada federal Dani Cunha: em primeiro mandato, obteve a aprovação de projeto (hoje no Senado) que criminaliza a discriminação a políticos, com penas superiores às da discriminação de pessoas com deficiência. O projeto nos equipara à Coreia do Norte de Kim Jong-un, a Cuba de Fidel Castro, à Venezuela de Nicolás Maduro, à Rússia de Vladimir Putin e a Uganda de Idi Amin Dada, entre outros países não democráticos, o que pode contribuir para nossa deterioração rumo à autocracia, como apontado pelo Instituto V-Dem, de Gotemburgo.

A vital mudança de rumo não passa pela proposição populista do presidente da República, de aumento de pena para 40 anos de prisão para quem atacar autoridades. Ninguém deixará de cometer crimes porque a pena máxima aumentaria dos atuais 30 para 40 anos, o que evidencia o caráter demagógico e ineficaz da medida, para agradar holofotes, em razão da repercussão do caso absurdo envolvendo o ministro Alexandre de Moraes em Roma.

Se pretende intervir de maneira eficaz, Lula deveria começar levando em conta as manifestações de seus ministros das Mulheres, dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Igualdade Racial e determinar o reposicionamento de seu partido e de sua base parlamentar aliada, que votaram a favor da anistia aos partidos na PEC 9/23 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que retroalimentaria a corrupção, violaria regras do financiamento da política e da transparência, além de desrespeitar ações afirmativas garantidoras de espaços de poder a negros e mulheres, pois a PEC os desrespeita.

Deveria apoiar os necessários ajustes no projeto que regula o lobby, hoje no Senado, estabelecendo limites às hospitalidades, já que na versão aprovada se permite que particulares convidem agentes públicos a participarem de eventos voando em classe executiva, hospedando-se em hotéis sete-estrelas, com massagens, lagosta e champanhe, tudo bancado sem limites por particulares. Temos aí hipótese de corrupção ultralegalizada.

Quando se fala em combater a corrupção, parece inexistir esquerda ou direita e governismo ou oposicionismo, entra em cena o bloco Unidos Pela Impunidade Garantida Por Lei, usando descaradamente o poder visando ao autobenefício. Vários parlamentares processados votaram pela aprovação do projeto de lei que se transformou na Lei 14.230/21, que esmagou a Lei de Improbidade, para se blindar.

Se pretende mesmo inaugurar um novo tempo, Lula poderia dar ótimo exemplo defendendo a transparência, as quarentenas instituídas pela Lei das Estatais, além de fixar de forma republicana limites ao próprio poder (será que ele quer?), inclusive em relação ao uso do seu cartão corporativo. E liderar a implantação de uma inédita política pública anticorrupção e mandatos no STF.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’