crédito: Conjur (30/05/2018) -
Diante da grande divulgação que foi realizada em relação a um acórdão que atribuiu pensão previdenciária para uma amante, neste artigo resolvi esclarecer de uma vez por todas que esse tipo de decisão é passível de recurso e que a Corte Superior que o julgará tem pensamento uniforme em não atribuir direitos à mancebia.
Trata-se da decisão, que sequer foi uniforme e atribuiu à amante do falecido pensão previdenciária, determinando sua divisão com a viúva do morto, proferida em 17/05/2018, pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5 - Apelação nº 0802803-23.2016.4.05.8200), que compreende os estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.
Segundo esse acórdão, o neoconstitucionalismo impediria interpretação literal das normas legais brasileiras sobre união estável, citando o art. 1.723, § 1º, do Código Civil. E, assim, interpretou esse dispositivo legal com largueza que não tem.
O art. 1.723, § 1º do Código Civil é de clareza solar e não comporta outra interpretação: para que exista união estável, tendo um dos companheiros o estado civil de casado, é requisito essencial que seu casamento esteja desfeito no plano dos fatos, ou seja, que haja separação de fato entre a pessoa casada e seu cônjuge.
O art. 1727 do Código Civil também é muito claro ao denominar a mancebia como concubinato, relação que não se classifica como união estável e que não gera direitos de família, sucessórios e previdenciários, que são fincados nas relações familiares.
A distinção entre união estável e mancebia não foi criada por acaso pela legislação infraconstitucional. Essa diferença encontra fundamento em todo o sistema jurídico e na Constituição Federal, cujo art. 226, § 3º estabelece o número de pessoas que constituem família em união estável: duas. Depreende-se daí a natureza monogâmica das relações reconhecidas como família no direito brasileiro e o descabimento do reconhecimento de um casamento e uma união estável concomitante ou de duas uniões estáveis concomitantes.
Assim, independentemente de aceitação ou não do que pretende o neoconstitucionalismo, que seria um novo modelo de direito constitucional, colocando a Constituição Federal em posição de destaque, citado no referido acórdão doTRF5, não se sustenta a decisão de atribuição de direitos oriundos da união estável e do casamento, como a pensão por morte, às relações de mancebia.
Repita-se que a Constituição Federal atribuiu somente a duas pessoas, em relação assemelhada ao casamento, a natureza de entidade familiar.
Aliás, a mesma monogamia está imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no acórdão proferido na ADPF 132 e na ADI 4277 sobre união estável entre pessoas do mesmo sexo, que foi citado na decisão do TRF5 como equivocado apoio à atribuição de direitos previdenciários a uma amante. O requisito da monogamia consta dos votos proferidos no acórdão do STF, como se vê a seguir, com os destaques realizados por esta articulista em letras maiúsculas:
Min. Rel. Carlos Ayres Britto: “a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos (PARES SÃO FORMADOS POR DUAS PESSOAS) somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família... Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras (MONOGAMIA) e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva.”.
Min. Cármen Lúcia: “Pede-se seja obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da legitimidade da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher (DUAS PESSOAS) e que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.”.
Min. Ricardo Lewandowski: “...reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados (DUAS PESSOAS) ...”.
Min. Gilmar Mendes: “... limito-me a reconhecer a existência da união entre pessoas do mesmo sexo... e, com suporte na teoria do pensamento do possível, determinar a aplicação de um modelo de proteção semelhante – no caso, o que trata da união estável –, naquilo que for cabível (DUAS PESSOAS), nos termos da fundamentação aqui apresentada...”.
Min. Cezar Peluso: “... E se deve preenchê-la, segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da similitude - não da igualdade -, da similitude factual entre ambas as entidades de que cogitamos (DUAS PESSOAS): a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo...”.
Não cabe qualquer dúvida sobre a monogamia como pilar da união estável na Constituição Federal, no Código Civil e no entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Assim, seja heterossexual, seja homossexual, a união estável somente pode existir entre duas pessoas, que são aquelas que vivenciam a relação como entidade familiar.
E, por conseguinte, união paralela, união simultânea - ou saiba-se lá qual será o eufemismo que será criado para tentar diminuir indevidamente o impacto negativo da mancebia - não gera efeitos de união estável. Digo indevidamente porque amantes são e serão sempre amantes, não são esposas ou companheiras, não são maridos ou companheiros.
Se um amante não se equipara a um cônjuge ou a um companheiro na lei civil, por óbvio que também não pode ser equiparado na lei previdenciária.
Direitos previdenciários só podem ser atribuídos a quem é casado ou vive em união estável e não a quem vive em mancebia, tanto no regime geral da previdência social, como no regime especial dos servidores públicos, enquadrando-se neste último o falecido cuja pensão por morte foi objeto do acórdão do TRF5.
Como estabelece o art. 16 da Lei nº 8.213/1991 - Lei Geral da Previdência Social, o companheiro e a companheira são beneficiários do regime geral da previdência social, desde que mantenham união estável de acordo com o disposto no art. 226, § 3º da Constituição Federal, que limita expressamente a duas pessoas a composição de uma entidade familiar em forma de união estável. Leiamos a Lei da Previdência Social, com os destaques:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro...
3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.
A Lei nº. 8.112/90 que disciplina o Regime Jurídico dos Servidores Públicos enumera os beneficiários da pensão por morte, em seu art. 217, merecendo os seguintes destaques:
Art. 217. São beneficiários das pensões:
I - o cônjuge;
III - o companheiro ou companheira que comprove união estável como entidade familiar;
Não há sombra de dúvida que somente as pessoas que compõem a família por meio do casamento ou da união estável são beneficiários da pensão por morte na Lei da Previdência Social e no Regime Jurídico dos Servidores Públicos.
E amantes não são membros da família!
É preciso acentuar que decisões de instâncias inferiores estão sujeitas a recurso e são as decisões das Cortes Superiores que prevalecem sempre.
As Cortes Superiores têm entendimento uniforme em não atribuir direitos previdenciários para amantes. Assim, o entendimento em contrário, formulado pela instância inferior, que está sendo analisado neste artigo, não se sustentará, se houver recurso, diante da interpretação consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Todos os acórdãos do STJ e do STF que julgaram recursos sobre direitos previdenciários e pensão por morte descartam o reconhecimento de uniões estáveis paralelas a um casamento ou a uma união estável e, consequentemente, não concedem direitos na mancebia. É citada a seguir a jurisprudência pacífica das Cortes Superiores, com grifos:
“... o reconhecimento da ausência de base legal para o rateio da pensão entre as viúvas e as alegadas companheiras está fundado na impossibilidade jurídica de concomitância dessas duas situações... assentada a distinção entre os institutos da união estável e do concubinato, sendo este inadmitido no sistema previdenciário brasileiro” (STF, MS 33.555-DF, 2ª T., Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 06/10/2015)
“Previdenciário... Pensão por morte. O impedimento para o casamento impede a constituição de união estável e, por consequência, afasta o direito ao rateio do benefício entre a companheira e a viúva, salvo quando comprovada a separação de fato dos casados...” (STJ, 1ª Turma, AgRg no Recurso Especial nº 1.418.167-CE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho 24/03/2015).
“... não se verifica a existência de relação estável, mas, sim, de concubinato, pois o instituidor da pensão manteve os dois relacionamentos por um longo período concomitantemente, consoante consta do acórdão recorrido, o que impossibilita o recebimento de pensão pela recorrida, na esteira do entendimento jurisprudencial deste Tribunal.” (STJ, 2ª Turma, AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 329.879-PE, Rel. Min. Humberto Martins, 15/08/2013).
“Previdenciário. Concubinato adulterino. Relação concorrente com o casamento...1. A jurisprudência desta Corte prestigia o entendimento de que a existência de impedimento para o matrimônio, por parte de um dos componentes do casal, embaraça a constituição da união estável.” (STJ, 5ª Turma, AgRg no Recurso Especial nº 1.267.832-RS, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 13/12/2011).
“Previdenciário... Simultaneidade de relação matrimonial e concubinato. União estável. Impossibilidade. 1. A existência de impedimento legal para o matrimônio, por parte de um dos pretensos companheiros, obsta a constituição da união estável, inclusive para fins previdenciários.” (STJ, 5ª Turma, AgRg nos EDcl no Recurso Especial nº 1.059.029-RS, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu, 15/02/2011)
“... Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural... Dessa forma, uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, ... o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente...” (STJ, REsp 1.157.273/RN, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18/05/2010).
“... o acórdão destoou do entendimento deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a proteção conferida pelo Estado à união estável não alcança as situações ilegítimas, a exemplo do concubinato... Ademais, confirmando esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal tem se pronunciado no sentido de que o concubinato não está inserido no contexto de entidade familiar, por não se assemelhar à acepção de união estável prevista no texto constitucional. Frente a esse quadro, não há como atribuir ao relacionamento extraconjugal de que se cuida na espécie, mesmo em se tratando de uma relação de longa data, a proteção conferida ao casamento e estendida ao instituto da união estável, a fim de se permitir a concessão do benefício previdenciário” (STJ, REsp 1.142.584/SC, 6ª Turma, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, j. 01/12/2009).
“Direito Previdenciário. Pensão por Morte. União estável. Concubina. Concomitância. Impedimento. Reconhecimento. Impossibilidade. 1. A jurisprudência do STJ prestigia o entendimento de que a existência de impedimento para o matrimônio, por parte de um dos pretensos companheiros, embaraça a constituição da união estável, inclusive para fins previdenciários. 2. Afigura-se inviável, desse modo, reconhecer à recorrida o direito à percepção da pensão por morte em concurso com a viúva, haja vista que o de cujus, à época do óbito, permanecia casado com a recorrente.” (STJ, REsp 1.114.490-RS, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 19/11/2009).
“Companheira e concubina – distinção. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. União estável – Proteção do Estado. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato... A manutenção da relação com a autora se fez à margem e diria mesmo mediante discrepância do casamento existente e da ordem jurídico-constitucional... na previsão está excepcionada a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que, se um deles é casado, esse estado civil apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato. A regra é fruto do texto constitucional... Percebe-se que houve um envolvimento forte, projetado no tempo – 37 anos –, dele surgindo prole numerosa – nove filhos -, mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de haver sido mantido o casamento com quem Valdemar contraíra núpcias e tivera onze filhos... No caso, vislumbrou-se união estável, quando, na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no artigo 1.727 do Código Civil... O concubinato não se iguala à união estável referida no texto constitucional... Tenho como infringido pela Corte de origem o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, razão pela qual conheço e provejo o recurso...” (STF, RE 397.762/BA, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 03/06/2008).
E os dois outros Recursos que tramitam no STF em repercussão geral - RE 1045273/SE e RE 883168/SC - não foram julgados até esta data, de modo que a jurisprudência acima citada é a que prevalece e deve ser considerada.
Desse modo, a jurisprudência do STF e do STJ durante mais de uma década rechaça a atribuição de direitos a concubinos, ou amantes, ou partícipes de mancebia. E na sociedade durante todos esses 10 anos nada mudou, ou seja, relação paralela não é união estável, seja lá qual for a sua duração ou denominação e haja ou não aparente aceitação do cônjuge traído, por mais que queiram os que desejam destruir e contrariar o conceito consolidado de família.
Por fim, é preciso lembrar que, se for conferido direito à pensão ao amante de uma pessoa que faleceu enquanto estava casada ou vivia em união estável, primeiramente dividirá esse benefício com o viúvo ou a viúva e, caso este venha a morrer, passará a receber a pensão na totalidade (Lei Geral da Previdência, art. 77, § 1º).
É óbvio que amantes não são membros da família do falecido, o que seria razão suficiente para a não atribuição de direitos previdenciários nas relações extraconjugais ou concorrentes com uma união estável. Mas, além disto, a atribuição de direitos previdenciários para um amante seria mais um motivo de agravamento da crise da Previdência Social, já que, se o amante tiver menos idade, o benefício previdenciário deverá ser pago por mais anos. Diante da natureza da previdência social, toda a sociedade contribuiria para pagar um benefício destinado a quem foi cúmplice de adultério, resultando numa algazarra, ou numa babel, na expressão do Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal.
Não é isto que o Brasil merece!
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Doutora pela Faculdade de Direito da USP, Pós-Doutora em Biodireito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente Nacional da Associação de Direito de Família e das Sucessões - ADFAS. Sócia fundadora de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.