Ney Prado (1*)
“Debitar a Constituição todos os equívocos é esquecer do instante histórico em que ela foi elaborada, quando participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, revanchistas, etc., que, sem dúvida, contribuíram para o detalhismo condenável, como se vê nas relações de trabalho e no papel do Estado na economia. Sem contar, na época, com a chamada dicotomia entre os regimes, capitalista e comunista” (Bernado Cabral)
I. INTRODUÇÃO
Antes de adentrarmos propriamente na análise dos avanços e retrocessos da nossa atual Constituição, vale recordar que toda obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições e, portanto, de censura. Ainda porque, como lembrou Theodore Roosevelt: "O único homem que jamais comete erros é o homem que jamais fez alguma coisa". De fato, acertar e errar são uma contingência humana. Seria mera idealização, imaginar que os nossos Constituintes pudessem acertar e tornar a Constituição uma obra perfeita e acabada. Ulisses Guimarães no discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988 teve ocasião de assim se pronunciar: “A Constituição certamente não é perfeita, ela própria se confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. A atual Constituição brasileira completou vinte e cinco anos de vigência no dia 5 de outubro de 2013. Inquestionavelmente é a mais polêmica de tantas quantas regeram o País. Tem sido objeto de agudas controvérsias, antes, durante e depois de sua elaboração. A esta altura, o texto Constitucional já recebeu abundantes apreciações de vários segmentos da sociedade brasileira e avaliações críticas dos setores político, econômico e jurídico, dando-nos um panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos, tanto os positivos quanto os negativos. Um dado, entretanto, é recorrentemente enfocado. Emerge como uma tônica, constante em quase todas as apreciações: a Constituição de 88 é um documento provocativo, inegavelmente criativo, mas, por suas características, complicador da vida nacional. Não há exageros em afirmar-se que seu advento provocou enorme insegurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu negócios e investimentos, sem falar nos conflitos jurídicos e sociais que gerou, em níveis jamais experimentados entre nós. São, com efeito, muito grande as perplexidades suscitadas pelas inovações da Carta de 1988. Por vezes, sem precedentes na práxis de outros povos; por vezes, repetitivas de antigos preconceitos; por vezes, sepultadas na experiência dos países mais desenvolvidos; por vezes, imprecisas e duvidosas; por vezes, incompletas e indefinitórias, multiplicam-se elas no texto, positivadas em grande quantidade, de normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis.
Essas perplexidades têm se refletido no Parlamento, no Executivo e nos Tribunais, bem como nos inúmeros seminários e congressos em que as novas instituições vêm sendo analisadas e debatidas. Há quase um geral reconhecimento, que o nosso Magno Diploma Jurídico trouxe mais dúvidas do que certezas, quanto à interpretação de seu alongado texto. Nossa Constituição possui reconhecidamente virtudes e equívocos. Mas necessária ou não, progressista ou retrógrada, boa ou má, bem-vinda ou não, estamos diante de um dado de fato inarredável; qualquer que seja a avaliação de seu conteúdo e a inclinação política do intérprete. "Pode-se tudo criticar a respeito dos constituintes de 1988 e da qualidade de seu trabalho. Justa ou injustamente, correta ou erroneamente, pode-se-lhes apontar deficiência na legitimidade, timidez ante o ativismo agressivo das esquerdas, concessão demagógica ao revanchismo, indisfarçável apego ao estatismo ou desconhecimento sobre o que se passava no mundo. Essas e outras críticas não serão mais que o exercício normal das liberdades políticas recobradas pela Nação e que eles próprios afirmaram no frontispício da Constituição". (*2)
II. AS DIFICULDADES METODOLÓGICAS
Saliente-se, desde logo, que difícil seria, senão quase impossível, abordar um tema tão vasto, complexo e polêmico, sem cairmos, de alguma forma, no subjetivismo e no campo das preferências valorativas individuais. Para que o trabalho de classificação das virtudes e dos equívocos da atual Constituição não desnature sua qualidade, o intérprete deve assumir, tanto quanto possível, uma atitude reflexiva, crítica, desapaixonada, despreconceituosa e impessoal. Para dar maior objetividade a classificação que me proponho a apresentar, levarei em conta, não tanto as minhas preferências valorativas, mas os dados objetivos tirados da realidade, a luz das conseqüências, positivas ou negativas que o texto Constitucional vem provocando no mundo jurídico, político, econômico e social nestas ultimas duas décadas de vigência. Por outro lado, o seu caráter analítico e até casuístico, envolvendo assuntos centrais, não vinculados especificamente ao Direito, está a exigir, por parte do intérprete, uma visão mais ampla e sistêmica do assunto. Tratando-se de um Texto polifacético, quase sempre de difícil compreensão, os especialistas tendem a simplificá-lo para contê-lo em seus respectivos ramos do conhecimento. Políticos, juristas, filósofos, economistas e sociólogos observam, sob diferentes ângulos, a mesma realidade, sendo normal que não a compreendam em seu todo. Por isso, é necessário, como premissa inafastável da tarefa de enfrentar e levar a bom termo o estudo do tema, admiti-lo em sua irrecusável multidisciplinaridade. O perigo da abordagem setorial está na ênfase indevida de um aspecto em detrimento do outro, capaz de conduzir às conclusões parciais ou errôneas. A natureza essencialmente interdisciplinar do tema levou a que se fizesse confluir para o seu exame, elementos teóricos básicos provenientes não só do Direito Constitucional, mas da Ciência Política, da Sociologia Política, da Sociologia Jurídica e da Economia. Há que se realçar, ainda, que a diversidade de opiniões sobre a nossa Constituição não decorre apenas da distinta escala de valores ou da extensão, complexidade e profundidade do objeto analisado. Mesmo compartilhando, em tese, idênticos valores, atribuindo-lhes idênticas prioridades, nem todos se atém a uma metodologia comum. Para a mesma realidade pode ser apresentado distintos enfoques científicos. Assim, por exemplo, para os cultores do Direito a elaboração, redação e interpretação da Constituição são tarefas para os juristas, principalmente os constitucionalistas. Para os políticos, no entanto, os problemas constitucionais não são problemas de Direito, mas do Poder.
Ambos têm razão e ambos se enganam, porque a Constituição é bidimensional, por sua própria natureza: é um documento político porque trata do poder e é um documento jurídico porque positiva opções. É, assim, um documento juspolítico.
III. MOMENTO HISTÓRICO DA CONSTITUINTE
Qualquer trabalho de interpretação não pode desconsiderar as condições objetivas e subjetivas, internas e externas, existentes no momento histórico em que a Constituição de 1988 foi reivindicada e elaborada. No plano interno é bom lembrar que a idéia de uma nova Constituição surgiu num momento de transição, coincidentemente com o esgotamento do ciclo autoritário e os movimentos de redemocratização do País; "diretas já" e "constituinte já"! Nada obstante a inexistência de ruptura institucional, a justificar necessariamente a convocação de uma Constituinte, ganhou corpo um movimento que se apossou do País; rotulado por muitos de "Constitucionalite". Havia chegado o momento de se institucionalizar a democracia, passar o Brasil a limpo, revogar por inteiro a Constituição de 1969. “A ideia dominante era de que a nova Constituição” não deveria marcar somente à volta ao Estado de Direito, mas a desmontagem das estruturas políticas, econômicas e ideológicas que foram consolidadas durante a ditadura. "Ela não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais. Não poderia ser igual às outras. Nem na forma, nem no estilo, nem nas afirmações e nas formulações fundamentais. O de que se tratava era fazer uma Constituição realmente libertadora de nosso povo, que pudesse garantir ao mais humilde cidadão ter seus direitos totais assegurados, inclusive o direito de simplesmente não aceitar o fato de não ter nada quando alguns poucos têm tudo". (3*)
Em resumo, a expectativa era de que a nova Constituição criaria condições para a institucionalização da democracia, a correção das injustiças sociais e a retomada do desenvolvimento econômico. Tinha-se a impressão de que, pela primeira vez na história política do Brasil, não existia ninguém, a rigor, que pudesse ser rotulado de antidemocrático ou contrário à convocação de uma Assembléia Constituinte. Todavia, após o generalizado desejo de mudança do regime, e a necessidade de um novo ordenamento constitucional, percebeu-se que a unanimidade de pensamento era momentânea e aparente. O problema e o desafio que se colocavam não era mais desejar a Democracia, mas, sim institucionalizá-la. Em outras palavras: todos eram a favor da democracia. Mas, qual democracia? Na medida em que se tentava buscar o seu verdadeiro significado, os conceitos se multiplicaram, as idéias se contrapuseram, o antagonismo ideológico se manifestou as pessoas, grupos e partidos foram se tornando perfeitamente identificados e, como decorrência, a unanimidade desapareceu. No plano externo, na década de 80, a divisão bipolar do mundo começou a dar lugar à fase da multipolaridade. O dogmatismo ideológico passou a ser substituído pelo pluralismo das idéias. Renascia em toda parte o anseio de liberdade, principalmente por aqueles que ainda viviam subjugados pelos regimes autoritários de direita ou de esquerda. Como decorrência dessa nova realidade, muitos países deram início ao seu processo de abertura democrática. Na América Latina, o vendaval democrático varreu- nos de repente. Foi nesse contexto democratizante que a chama da liberdade política voltou a brilhar mais forte em todo o Continente e, por via reflexa, também no Brasil. Mas quando a Constituição foi promulgada em outubro de 1988 "ainda não havia clara percepção das dramáticas transformações mundiais, caracterizadas pelo colapso do dirigismo socialista. Se a gravidez constitucional se tivesse prolongado por um período adicional de nove meses, os Constituintes teriam percebido a enorme mudança na ecologia econômica mundial". (4*)
Uma quádrupla rebelião: a primeira contra o Estado regulador, que destrói a flexibilidade necessária às sociedades industriais modernas; a segunda contra o Estado exator, que aumenta tributos sem cortar gastos e sem melhorar serviços; a terceira contra o Estado empresário, que não pode ser julgado pelos testes de mercado, por operar com monopólios e privilégios; e finalmente contra o Estado previdenciário, que agrava desnecessariamente os custos de mão-de-obra quando seus serviços poderiam ser executados com menor custo e maior eficiência pelas próprias empresas, mediante acordos fiscalizados pelos trabalhadores. (5*)
IV. O PROCESSO PRÉ-CONSTITUINTE
No dia 28 de junho de 1985, Jose Sarney, que assumiu a presidência da Republica devido à trágica morte de Tancredo Neves, enviou ao Congresso proposta de Emenda Constitucional no sentido de ser convocada uma Assembléia Nacional Constituinte, nos seguintes termos “os membros da Câmara dos Deputados e do Senado federal, sem prejuízo de suas atribuições constitucionais reuniar-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 31 de janeiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Posteriormente, no dia 18 de julho, o Presidente assinou o decreto 91450 instituindo uma “Comissão Provisória de Estudos Constitucionais”, composta de 50 membros, com o objetivo de “desenvolver pesquisas e estudos fundamentas no interesse da Nação Brasileira, para futura colaboração aos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte”. Assim o processo de elaboração da Constituição de 1988 iniciou-se com a criação da Comissão de Estudos Constitucionais, à qual tive a honra de integrar como um de seus membros e simultaneamente na função de Secretário Geral.
Essa condição não me impediu de exercer contemporaneamente um dever de crítica quanto ao conteúdo do Anteprojeto dela resultante. Preocupado com as influências negativas que o Anteprojeto da então chamada "Comissão Afonso Arinos" poderia exercer sobre os trabalhos constituintes, dispus-me a sintetizar várias advertências num livro publicado em 1987, sob o título "Os Notáveis Erros dos Notáveis". (6*)
A crítica ao Anteprojeto, sem atingir os seus notáveis autores, pretendia ser, à época, um guia de elaboração constitucional contendo lições, não minhas, mas da História, que não poderiam ser, de nenhum modo, desconsideradas. Ao deixarem-se levar pelo preconceito, em vez de praticarem a isenção de espírito; ao se perderem em casuísmo, em vez de valorizarem os grandes princípios; ao sucumbirem à tentação de elitismo, em vez de se aterem à sua missão de estudos, com objetividade e humildade; ao se perderem na utopia das postulações irrealizáveis, em vez de distinguirem corretamente o possível; ao fraquejarem ante a sedução do distributivismo fácil, em vez de abrirem os olhos à dura realidade da limitação dos meios; ao descambarem para a tendência socializante, universalmente em declínio, em vez de valorizarem a livre iniciativa e a economia de mercado, em nosso Direito Constitucional; ao se renderem à falácia do paternalismo burocrático estatizante, em vez de fortalecer o pluralismo social; e, finalmente, ao se deixarem levar por um nacionalismo xenófobo e isolacionista, em vez de reconhecerem que o mundo marcha para a interdependência econômica, científica e tecnológica, os notáveis "progressistas" renegaram valores sociais fundamentais, como a tolerância, a isenção, a objetividade, a humildade, a autenticidade, o pragmatismo e sobretudo, a liberdade, todos, necessariamente, incluídos no conceito de progresso. Não obstante toda nossa expectativa e esperança de que os Constituintes de 1988 houvessem aprendido com nossos erros, lamentavelmente, a Carta Constitucional elaborada por eles acabou por repeti-los, quando não agravá-los. Com base em experiência análoga, aferida na condição de ex-membroda Comissão de Estudos Constitucionais, entendi prudente evidenciar alguns aspectos negativos que os constituintes deveriam a todo custo evitar na elaboração do texto da nossa próxima Carta Magna. (7*)
Alertei que o preconceito é um erro que deveria ser evitado, porque é a própria negação da racionalidade na apreciação ou julgamento de um fato. Por causa de sua origem emocional, ele se ergue como uma barreira instransponível nos diálogos e, por isso, tem sido, ao longo dos séculos, o germe de intolerâncias e o pretexto de desavenças. Elevar-se, a nível constitucional, um preconceito, equivale a entronizá-lo e a promovê-lo na sociedade dos homens. O casuísmo precisaria ser eliminado, porque uma Constituição democrática comporta não um elenco de soluções, mas sim uma moldura de soluções. A imposição de um modelo com minudências que desdém da matéria constitucional para esgotar temas reservados à legislação complementar e ordinária e, até, às opções administrativas regulamentares, não é apenas um defeito técnico muito grave da elaboração constitucional: é uma forma de totalitarismo normativo, espécie tão ou mais nociva que o totalitarismo tradicional. O utopismo é censurável, porque uma Constituição não pode estar divorciada totalmente da realidade, sem condições práticas de reger a vida política, econômica e social da Nação a que se refere. Longe de se apresentar como um ideal, como um princípio a ser perseguido, mesmo sem que seja possível alcançá-los, a utopia constitucional acaba por se transformar, na prática, numa fábrica de expectativas e portanto de frustrações, desservindo, assim, a sociedade. A demagogia precisaria ser evitada; porque um verdadeiro projeto constitucional democrático nasce, se apóia e se cultiva na sinceridade de propósitos e não em propostas que se sabe, de antemão, serem enganosas ou impraticáveis. Um texto demagógico apenas concede, sem nada exigir, e distribui, sem tratar de criar condições de produzir.
O socialismo é um equivoco que necessitaria ser contido, porque, embora a nível de aspiração seja possível compatibilizar-se com a democracia, há uma visceral contradição do socialismo, enquanto organização social, com o regime democrático. Aliás, este é o dilema que se nos propõe Norberto Bobbio ao afirmar que essa contradição existe porquanto, através da democracia o socialismo é inatingível, mas se for atingido através da ditadura, será a democracia a inatingível.
O estatismo é uma deformação a ser evitada, porque é um risco para o Estado de direito. Aos poucos a concentração do poder leva os governantes a perderem de as limitações da lei. A constituição passa a ser "interpretada" a luz das razões de Estado e "justificativas" são sempre encontradas para atender a novas finalidades definidas e perseguidas pelo super-Estado. A história tem demonstrado que o intervencionismo, levado a exageros, em vez de corrigir as distorções a que se propõe, acaba por inserir novas, gerando um espiral de intervenções e distorções que só terminará com a estatização absoluta, com o Estado administrando a escassez e o povo, suportando-a. Por último, o xenofobismo precisaria também ser evitado, porque o tipo de nacionalismo que nos interessa não é o ideologizado, nativista, obscurantista, tribalhista, exclusivista e antipluralista, mas o equilibrado, critico, pluralista, que produz menos retórica e mais resultados concretos para a Nação. Elevar a xenofobia a nível constitucional seria, realmente, inusitado e espantoso, para um país que se construiu, em grande parte, com a imigração e com ponderável aporte de capitais de fora.
Conclui minha advertência na esperança de que os constituintes, no melhor de suas potencialidades, sob a aspiração cívica de seus mandatos, fossem esclarecidamente sábios para aprenderem pelos erros da Comissão Afonso Arinos, sem necessidade de virem, eles próprios, a repeti-los.
V. O PROCESSO CONSTITUINTE
Esperava-se dos nossos Constituintes de 1988 uma atitude racional, impessoal e despreconceituosa. Entretanto, nos trabalhos da Assembléia Constituinte passou-se o contrário: houve uma nítida preocupação de demonstrar posição antagônica a certos valores, pessoas e instituições, que acabariam por deformar gravemente o texto Constitucional. No entender dos Constituintes, se o autoritarismo impedia a Nação de praticar a democracia, evitá-lo e combatê-lo erigiu-se em objetivo constante a orientar a feitura da Constituição. Para fugir ao arbítrio incontrastável das ditaduras do passado e garantir as conquistas da Nova República, tudo o que uma Constituição teria a fazer, seria imobilizar a vida política, reduzir os espaços de ação e as alternativas de escolha, daí o impressionante rol de restrições com que os constituintes inçaram a Constituição de 88. O revanchismo no processo constituinte, por receio excessivo ao autoritarismo, se manifestou indistintamente contra as instituições públicas e privadas. As primeiras tidas como instituições de dominação diretamente responsáveis pelo interregno autocrático, e as segundas tidas como instituições de exploração, porque coniventes com o regime autoritário. A pretexto de punir pessoas acabou por sacrificar instituições: confundiram o que é transitório com o que é permanente. No campo político, não perceberam o declínio das ideologias; que o debate não é mais entre esquerda e direita, mas entre o velho e o novo, o ineficiente e o eficiente; que a ética das intenções dos ideólogos racionalistas está sendo substituída celeremente pela ética dos resultados, tanto, no âmbito do Estado como no âmbito da sociedade. No campo social, não notaram que as políticas populistas e demagógicas do distributivismo sem riquezas vêm sendo substituídas, já há algum tempo, pelo produtivismo, ou seja, o distributivismo através da riqueza. Faltou sensibilidade para perceber que, como disciplinador da conduta, o Direito, é um instrumento formidável, mas a sua valia depende da adequabilidade de suas normas aos fatos da vida humana, sejam eles do passado, sejam aqueles projetados no futuro. Faltou ainda percepção para compreender que o dogmatismo jurídico está sendo superado pela sua flexibilização, especialmente para aqueles ramos que mais proximamente tocam a economia e a vida social. A flexibilização do Direito tem ocorrido indistintamente em qualquer país que se tenha aflorado uma percepção jurídica mais pragmática do Direito no processo de desenvolvimento: muito mais fruto da experiência que de concepções cerebrinas de teóricos de gabinete. Como instrumento da sociedade o Direito deixou de ser um fim em si mesmo para se transformar em meio; deixou de ser uma camisa de força para se transformar em ferramenta do progresso. Outro equivoco do processo constituinte está ligado à inautenticidade do modelo constitucional adotado. Não obstante os Constituintes terem se socorrido de mais uma fonte, sua inspiração básica concentrou-se no modelo português. Ana Lúcia de Lira Tavares, em magistral trabalho comparativo, mostra os campos específicos de influência do modelo português no nosso processo de elaboração constitucional. A cópia se deu no ordenamento da matéria; nos princípios fundamentais; nos direitos e garantias fundamentais; no Poder Executivo; no Poder Legislativo; no Poder Judiciário; na ordem econômica; na ordem social e no processo de revisão qüinqüenal. (8*)
Na verdade, a tentativa de aperfeiçoamento das Constituições brasileiras tem sido mais através de cópia, a partir de modelos abstratos, do que por evolução, com base em nossa experiência sócio-cultural concreta. No dizer de Miguel Reale "Um acúmulo de exotismo, de aberrações teóricas, de fantasias de biblioteca e de cópias servis de modelos estranhos. (9*)
Como nos recorda Roberto Campos "O problema é que enquanto os portugueses se tornaram "progressistas" nós ficamos "regressistas". A iniciativa de copiar dos portugueses, sem atentar para a sua própria evolução, levou-nos a um estranho paradoxo: pusemos na nossa Constituição tudo o que os portugueses acabaram por extirpar de sua própria Constituição”.(10*)
Os constituintes tampouco sentiram o declínio do nacionalismo, que embora não tenha desaparecido, perdeu o seu caráter xenófobo e paroquial. Esqueceram que a própria soberania e cidadania ganharam novos e mais amplos contornos, tanto assim, que já se fala em sua transnacionalização. Igualmente não se capacitaram da mudança radical havida no relacionamento entre países. Falhou percepção para ver que os vários sistemas econômicos operam em bases transnacionais e que o capital, a ciência e tecnologia se internacionalizaram, os esforços coletivos alteraram as dimensões dos mercados e a economia enfim se globalizou.
VI. O TEXTO CONSTITUCIONAL E SEUS AVANÇOS
A maior virtude da Constituição de 1988 é o seu sentido simbólico. Não obstante os defeitos que possa apresentar ela representa um marco importante na História do País: o fim de um ciclo autoritário e o início de uma nova experiência democrática, que se pretende duradoura. Retrata, assim, o anseio da sociedade brasileira de viver um regime de liberdade, protegido por um Estado de Direito; assume merecidamente, o papel simbólico do regime democrático; da desejada estabilidade institucional, sem a qual nenhum valor formal tem sentido. Segue-se outra virtude da Constituição cuja envergadura é uma conquista do moderno constitucionalismo: aludimos a principiologia, que teve papel destacado, desde o Título de abertura, às inúmeras especificações adotadas no Texto. Tome-se, como exemplo, todo o Título I, que trata dos Princípios Fundamentais e o Título II que cuida dos princípios atinentes à sociabilidade do indivíduo e suas manifestações coletivas. Nos demais Títulos, encontramos dispositivos específicos sobre vários princípios setoriais como, por exemplo, os atinentes à administração pública (art. 37); os relativos à legislação (art. 60 § 4º); os referentes à fiscalização contábil e financeira e orçamentária (art. 70); os que dizem respeito à magistratura: (art. 93); os tributários (art. 150); os orçamentários (art. 167); os princípios gerais da atividade econômica (art 170), etc. O importante papel dos princípios na construção do direito contemporâneo tem sido constantemente realçado pelos autores que escreveram depois da II Guerra Mundial. Varridos os derradeiros resquícios ideológicos das modernas constituições, a enumeração dos princípios foi a forma encontrada para orientar os criadores e aplicadores do direito. Outro avanço, agora de natureza formal, vem a ser a maneira sistemática com que foram dispostos, no texto, os temas constitucionalizados na seqüência de seus Títulos e Capítulos. De fato, a Constituição de 1969, na linha das anteriores, atribuía ao Estado um papel protagônico. Como decorrência, na ordem sistemática dos assuntos, o Título referente à Organização do Estado e do Poder vinha sempre em primeiro lugar. Com a Constituição de 1988 houve uma substancial alteração: os Títulos e Capítulos iniciais da Constituição não se referem mais ao Estado, mas à Nação, à pessoa em seus respectivos direitos e aos grupos sociais, também com seus direitos coletivos. Percebe-se claramente o intuito dos constituintes em subordinar o Estado ao indivíduo e à Nação, pelo menos do ponto de vista formal e topográfico. Outro aspecto positivo da Constituição de 1988 é a forma inovadora com que tratou os interesses de toda a ordem, classificando-os e protegendo-os em inúmeros dispositivos. Tradicionalmente, desde o Direito Romano, os interesses eram classificados em público e privado. A Constituição atual, sensível a evolução da teoria dos interesses, acolheu novas distinções classificatórias acrescendo à classificação tradicional as categorias dos interesses coletivos e difusos.
Como decorrência foi possível discriminar-se na Constituição vários instrumentos de defesa desses interesses. Assim, o texto Constitucional refere-se a interesses nada menos do que cinqüenta e três vezes, distribuídos em quatro categorias: a) interesses individuais: 6 espécies; b) interesses coletivos: 17 espécies; c) interesses difusos: 7 espécies; e d) interesses públicos: 23 espécies. A preocupação com a legitimidade do poder é outro grande avanço da atual Constituição. Para os constituintes não bastava institucionalizar o Estado de Direito. Impunha-se estabelecer as condições jurídicas para torná-lo legítimo, ou seja, um autêntico Estado Democrático de Direito (art 1º). Com esse propósito foram reconhecidos na Constituição, além dos institutos de participação, próprios da democracia representativa, outros inerentes a democracia direta e semi-direta. O campo de atuação participativa previsto na Carta Magna é vasto; conta com mais de cinqüenta dispositivos e abarca a esfera legislativa, administrativa e judicial. Dentre os Institutos de participação legislativa, estão o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular; dentre os Institutos de Participação Administrativa, a coleta de opinião, o debate público, a audiência pública; o colegiado público, assessoria externa, cooperação das associações representativas no planejamento municipal; direito de denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, etc. Dentre os Institutos de Participação Judicial, o mandato de segurança coletivo, ação popular, ação civil pública, ação de inconstitucionalidade, ação de impugnação de mandato eletivo, mandato de injunção, etc. É inegável que a Constituição atual representa um avanço, em termos de admissibilidade de formas de participação política. Com isso a cidadania foi substancialmente fortalecida. Hoje, qualquer indivíduo está intitulado a exercer, de algum modo, o poder político. Além dos instrumentos tradicionais dispõe ele de novos canais diretos e semi-diretos de participação.
Outro aspecto democrático da Constituição de 1988 foi a valorização dos sistemas de controle da legalidade, posto que se preocupou em instrumentar cada categoria de interesses com instituições capazes de protegê-la perante quaisquer poderes do Estado. O Capítulo IV do Título IV, que trata da Organização dos Poderes, acrescentou, além dos poderes tradicionais, as funções encarregadas de provocá-los, bem como de fiscalizá-los. Foram criados pela Constituição, com esse propósito, quatro blocos definidos de funções essenciais a Justiça. Advocacia em geral, para atender a todos os interesses privados (art. 133); advocacia de Estado para atender aos interesses cometidos por lei às pessoas jurídicas de direito público (art. 131), a advocacia da sociedade, para defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (Ministério Público art. 127); e, finalmente, a defensoria pública incumbida da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos interesses dos necessitados (art. 134). Como se vê essas instituições concorrem decisivamente para a própria existência e funcionalidade do Estado Democrático de Direito, na medida em que fortalece o exercício da cidadania e, assim, a própria prática da democracia. Podemos também identificar na Constituição a saudável preocupação dispensada no tratamento aos vários aspectos que envolvem a moralidade pública. Superando a preocupação meramente legalista, encontramos no texto, além da tradicional vinculação à legalidade, caracterizadora do Estado de Direito, e da vinculação à legitimidade, caracterizadora do Estado Democrático, desponta uma preocupação, inovadora e exuberantemente difundida, com a moralidade pública, caracterizadora do Estado Ético. São, ao todo, 58 normas constitucionais, entre princípios e preceitos, dirigidas ao Estado, à sociedade ou a ambos, que tratam da licitude; ora enunciando seu referencial de valor (substantivo), ora definindo os instrumentos que devam garanti-la.
Na verdade, a Constituição retratou uma aspiração profunda da sociedade brasileira de ver implementada na prática política, na administração pública e nas relações convivências certos deveres morais. Esses inúmeros dispositivos, associados à ampliação dos canais de participação política têm provado, e a conjuntura está a demonstrar, que a desejada efetividade dos princípios da ética política e da moralidade administrativa está se tornando realidade. A partir de 1988, tanto quanto o hábito de indagar pela legalidade e pela legitimidade passamos a ter o hábito de indagar pela licitude. A tentativa de aperfeiçoar o sistema federativo, no caminho do chamado federalismo cooperativo é outro avanço da Constituição. Ai está, como exemplo, o tratamento que a nossa Carta Magna dispensou a descentralização espacial do poder (Título III, capítulos I a VI). Diferentemente da Constituição de 1967, que fortaleceu em demasia o poder da União, a ênfase dada pela Constituição atual, foi no sentido de fortalecer os Estados Federados e os Municípios, na busca de um maior equilíbrio entre as diversas esferas do poder. Há que se ponderar, no entanto, que no novo tipo de federalismo, a descentralização ficou sob alguns aspectos mais na intenção do Constituinte. Na prática, a competência concorrente dos Estados (art. 24) não tem sido exercida efetivamente e, muito menos, a competência suplementar dos Municípios (art. 30 II) Outro avanço louvável foi à preocupação do legislador constitucional com a sanidade ambiental. Há duas décadas, já existia um anseio de elevar ao nível constitucional institutos de proteção do meio ambiente, mas, somente agora, com a Constituição de 1988 esse desejo se concretizou. De fato, além de diversos dispositivos esparsos do texto Constitucional referindo-se à matéria, há hoje um capítulo específico dedicado ao meio ambiente (Título VIII, capítulo VI). O grande mérito dessa inserção foi ter contribuído para a maior conscientização do cidadão nas responsabilidades suas, da coletividade e do poder público na defesa e preservação do meio ambiente, ecologicamente equilibrado e da sadia qualidade de vida (art. 225). Vale observar que apontamos a virtude do texto, apenas no que se refere a essa preocupação demonstrada pela Constituição em relação ao assunto. Pois, no entender dos especialistas, o tratamento normativo ainda deixa muito a desejar em termos de amplitude de sistematização e de nitidez, notadamente no tocante à partilha de competência entre as unidades federadas e à excessiva burocratização de sua implementação administrativa. Finalmente, para encerrar essa lista exemplificativa de virtudes, cabe uma menção positiva a qualidade do texto que regula a "Defesa do Estado e das Instituições Democráticas" (Título V). De fato, a Constituição atual conseguiu, de maneira primorosa, definir as medidas à disposição do Estado para sua defesa e de suas Instituições (artigos 136 a 141); que ações serão possíveis, por quanto tempo, e em que locais. Sobre o papel das Forças Armadas o texto Constitucional acolheu princípios salutares: subordinação ao Presidente da República; atuação limitada pelo Direito (meio e objetivos previstos na ordem jurídica); intervenção, na segurança interna, subordinada à exaustão dos meios repressivos das forças estaduais, nos casos previstos em lei e à aprovação prévia do Congresso Nacional; e, por último, possibilidade de convocação por iniciativa de qualquer dos três poderes da República.
VII. O TEXTO CONSTITUCIONAL E SEUS RETROCESSOS
O casuísmo é uma constante em todo o texto Constitucional. Nele tudo se prevê; tudo se regula. Antevêem-se todas as hipóteses e dispõe-se sobre todas as soluções. Aliás, esse inchaço constitucional, tem sido objeto de severas e contundentes críticas por parte dos vários segmentos que compõem a sociedade. De fato, uma Constituição, como de resto todo o ordenamento jurídico, mas ela, de maneira especial, deve buscar a conciliação entre "o sistema tendencialmente estático de suas normas originarias" e "a dinâmica das forças sociais". Para alcançar esse equilíbrio, duas técnicas têm sido empregadas. Numa primeira, o texto Constitucional se restringe ao essencial, aos grandes princípios e à organização superior do Estado, deixando à legislação e à construção jurisprudencial o trabalho de adaptá-lo "à dinâmica das forças sociais": é a técnica sintética. Noutra, o texto Constitucional procura estabelecer um equilíbrio pela imposição de maior número de princípios e de regras à própria evolução das forças sociais: é a técnica analítica. A Constituição sintética, portanto, não se impõe aos fatos sociais. Há uma adaptação permanente. A analítica, diferentemente, procura condicionar e regrar os fatos sociais; a adaptação deve ser da sociedade ao texto. A sintética é, por isso, mais duradoura, enquanto que a analítica é mais vulnerável às crises políticas. Entretanto, escolher entre uma e outra técnica é um problema de doutrina juspolítica. Em última análise, algo deve flexibilizar-se: ou a Constituição ou a Sociedade. À primeira vista, o casuísmo configuraria uma modalidade do tipo analítico. O problema, entretanto, é outro: não se trata de optar entre uma constituição, tout court, e um "programa de governo constitucional". Ao refugir da matéria constitucional e descer às explicitações reservadas à legislação ordinária, não estaremos mais diante da opção pela técnica analítica e sim, de um texto tecnicamente defeituoso. Nosso atual modelo constitucional, não é, no sentido rigorosamente técnico, como o denomina Burdeau, um "estatuto do poder", mas um "programa de governo", a ser imposto, soberanamente, sobre o povo e seus legisladores. O casuísmo surge, portanto, a nível constitucional como uma patologia de um texto analítico. A imposição de um modelo político, com minudências que descem da matéria constitucional, para esgotar temas reservados à legislação ordinária e, até, às opções administrativas regulamentares, não é, apenas, um defeito técnico muito grave da elaboração constitucional: é uma forma de totalitarismo - o totalitarismo normativo, espécie tão ou mais nociva que o totalitarismo tradicional. Nossos Constituintes ignoraram todas essas lições, tornando o casuísmo uma constante em todo o texto Constitucional. Esqueceram que com uma nova Carta Magna casuística, a Nação paga um alto preço em crises. Para fugir ao casuísmo, a Constituição deveria ser, concisa, e restrita aos temas constitucionais, isto é, aos fenômenos do universo do poder, que devem ser tratados com intuito de generalidade e de permanência numa Nação. "Um corpo forte, esbelto, sintético, essencial, compendiado, estrutural, nunca penosamente adiposo e extensivo". (11*)
Outro equívoco observável na Constituição é a sua contrariedade intrínseca. Pode-se identificá-la, tanto do ponto de vista dos valores adotados quanto das normas que ela contém. Com relação aos valores, sua expressão predominante se faz através dos princípios explícitos, absurdamente enunciados, por todo o seu texto. Não só a quantidade de princípios como a ausência de método para deles tratar produziu uma série de contradições valorativas que acabaram por desfigurar o conjunto da obra. Desde logo uma Constituição que se propôs a estabelecer o primado da sociedade, iniciando-se pelo homem, acaba sendo a mais estatizante da que tivemos, talvez com a exceção da de 1937. Por outro lado, a forte influência do modelo dirigente, adotado na Constituição portuguesa original, refletiu-se na prevalência do dogmatismo ideológico sobre o pragmatismo, ou seja, na "prioridade do utópico, sobre o possível". Com efeito, de nada adiantam seus princípios, do Título I e suas abundantes setenta e duas declarações de liberdades e garantias, esmiuçadas no quilométrico artigo 5º do Título II, se, contraditoriamente, elas acabam sendo anuladas pela complicada máquina do Estado intervencionista e fiscalista que vem minudentemente construída nos sete Títulos restantes.
"O indivíduo, exaltado por aquelas prolixas declarações de direitos e garantias, parece ter recebido tudo e mais alguma coisa. Mas, aos poucos, a Carta decepciona e se contradiz, ã medida em que o papel do Estado vai sendo detalhadamente definido na mais extensa Carta de nossa história. O indivíduo tem tudo enquanto pessoa idealizada: no momento em que dele se espera o trabalho, a iniciativa, o progresso, enfim, dele se desconfia, começa a ser penalizado, tributado e limitado". (12*)
Ninguém mais apropriadamente destaca as contradições principiológicas do que Roberto Campos: "Querem uma Constituição 'intervencionista', quando a 'nouvele vague' mundial é a rebelião do indivíduo contra o Estado obeso. Querem uma constituição 'nacionalista', num mundo cada vez mais interdependente, no qual capitais estrangeiros escassos são requisitados até mesmo por países socialistas. Querem uma constituição que garanta a liberdade política, mas que destrua a liberdade econômica, pois que as 'reservas de mercado' são meros eufemismos para a cassação da liberdade individual de produzir. Querem uma constituição 'assistencialista', como se a opção social pudesse ser divorciada da base econômica da sociedade." (13*)
Prossegue o ilustre pensador "Conseguimos produzir um texto saudavelmente libertário no político, timidamente capitalista na ordem econômica, francamente socialista e utópico na ordem social". Como decorrência, a Constituição de 1988 "tornou-se doutrinamente confusa e contraditória, um misto de capitalismo amordaçado e um socialismo encabulado".(14*)
As contradições encontradas no texto são inúmeras, mas, provavelmente, a maior delas diz respeito à organização funcional do Poder. Lembra, oportunamente, Roberto Campos que o modelo inglês é o da integração dos poderes, o nosso modelo atual não é um nem outro. Criou-se um terceiro tipo: o sistema da invasão dos Poderes. Essa anomalia tem provocado uma fricção entre os Poderes Executivo, Legislativo e judiciário, agravando o quadro da ingovernabilidade.
Nesse confronto, basta que a tensão política entre esses dois Poderes se exacerbe um pouco, para que o quadro de ingovernabilidade se torne agudo. Para que o Executivo paralise o Congresso, é suficiente lançar mão um pouco mais intensamente de Medidas Provisórias (art. 62), assim como, em represália, bastaria algumas negativas de conversão e a aprovação de uns poucos vetos legislativos (art. 49 V) para se tolher o Executivo. Outra grave contradição foi introduzida na divisão espacial do poder. Adotamos um Federalismo de três graus, mas não ficaram distribuídos proporcional e racionalmente as responsabilidades governamentais dos três níveis de Estado. Isso ainda mais se agrava no sistema tributário porque, no caso da União, ela viu anulados os seus encargos, mas foi duramente prejudicada na sua receita. Na ordem econômica, desde logo, se encontra uma espantosa contradição entre o disposto no art. 170, inciso IV, que estabelece as pilastras da economia de mercado (livre iniciativa e livre concorrência) e a grande quantidade de dispositivos de natureza interventista que se seguem. Realmente, como realizarse uma economia de mercado com mais de quarenta regras de intervenção econômica? Na ordem social, podemos identificar outras contradições no texto Constitucional; entre a "completa" liberdade sindical e o deferimento no imposto sindical; entre o amplo direito de greve e a competência normativa da Justiça do Trabalho. Ora, todas essas contradições não são apenas exemplos inocentes de descuido técnico ou de curiosos deslizes dos Constituintes. Infelizmente não: elas comprometem seriamente a implementação das normas constitucionais e, por conseqüência, de todas as normas legais ordinárias que aquelas se vinculam. Com efeito, como é sabido, há princípios de obediência obrigatória na interpretação constitucional. Se a "unidade da Constituição" é um desses princípios, como interpretá-la com segurança se esta unidade não existe? Tanto faz dirigir a interpretação para um sentido quanto para o outro porque, em ambos os casos, haverá um respaldo constitucional possível.
Esse defeito torna impossível uma legislação coerente, uma administração coerente e sobretudo, uma jurisprudência coerente. Outro equivoco que se pode imputar à Constituição de 1988 é o seu caráter nitidamente utópico. E o é, duplamente: porque pretende ser um instrumento de transformação social, e porque se divorcia totalmente da realidade. Convencidos de que viviam numa época de mudanças, os Constituintes tomaram a si a tarefa de provocar, da maneira mais radical possível, todas as alterações que desejavam para a sociedade brasileira. Os insatisfeitos com a realidade acreditaram ser possível rejeitá-la radicalmente, e modificá-la por ato de vontade. Aí residiu o seu grande engano: o de imaginar que a Constituição por si, pode tanto definir as condições das mudanças políticas, econômicas e sociais da sociedade, como criar ou impor tais condições. Os constituintes esqueceram que o problema da nossa organização política, econômica e social é muito mais complexo do que parece àqueles que pensam em poder resolvê-lo com simples reformas constitucionais. Ignoraram que a norma facilita ou dificulta o progresso, mais não o gera materialmente. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos". (15*)
"Na verdade, uma Constituição não resolve problemas, apenas aponta diretrizes." (16*)
"Hoje, nenhum constitucionalista, por mais ardente juspositivista que possa ser, afirmaria que uma Constituição por si própria, tem condições de conformar a realidade que a ela não se adapte. Uma Constituição, qualquer Constituição, leva a pior: o poder, antes de concentrar-se na lei, está nos fatos sociais; antes de estar no Estado, está na sociedade." (17*)
A Constituição de 1988 também é utópica porque seu conteúdo se divorcia da nossa realidade.
Dominados pelo desejo de inovar, acabaram por saltar além da realidade histórica, para cair num espaço e num tempo imaginários. Pretenderam produzir a mais perfeita e completa Constituição em seu gênero entre as existentes no Brasil e no mundo; algo pronto, acabado, um produto no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme, justo e racional. Os constituintes de mentalidade utópica, por considerarem a idéia a essência da realidade, subordinaram o seu pensamento e a forma de proceder a um ideal. Por isso, não conseguiram se liberar da noção de democracia senão como um ideal abstrato. Confundiram fins democráticos com a própria democracia, ou seja, a mitologia da democracia com sua existência real. Esqueceram que a democracia, enquanto idéia, não é um fato, mas apenas, e tão somente, um conceito. Não atentaram, ainda, para a evidência histórica, que nos ensina que o verdadeiro modelo de democracia é o possível, aquele usado para uma sociedade real, conflituosa, desigual, constituída de homens imperfeitos e não de deuses. Ignoraram o fato que a implantação e o florescimento da democracia, em qualquer das suas adjetivações, não é apenas uma questão de vontade ou determinação pessoal. Em sendo um produto histórico, ela só se torna possível na medida em que existam, principalmente, as condições e os pré-requisitos objetivos para o seu bom funcionamento. Mas, afinal, que razões poderiam explicar o utopismo dominante na Assembléia Nacional Constituinte? Em que pese à dificuldade de se elaborar uma única classificação para os diversos tipos utópicos, a razão básica para justificar esse fenômeno, no nosso entender, reside no caráter profundamente idealístico da nossa cultura política, do qual a nossa elite, mesmo a mais intelectualizada, ainda não se desvencilhou. O utopismo na Constituição está em todos os seus capítulos, algumas vezes introduzindo novos tipos de direitos e garantias e, outras vezes, adjetivando exorbitantemente aqueles já tradicionais em nosso Direito Constitucional. Assim é que encontramos no texto esse fabuloso catálogo de utopias: garantias de existência digna a todos (artigo 170 ); fixação de requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural ( artigo 186 ); configuração do crime de usura desde que a cobrança de juros ultrapasse a 12% ao ano (artigo 192 § 3º. ); garantia de saúde a todos ( artigo 196 ); garantia de atendimento ao ensino fundamental, inclusive transporte e alimentação ( artigo 208 ); transporte urbano gratuito para os idosos de mais de 65 anos ( artigo 230 ); garantia de um salário mínimo para cada portador de deficiência e idoso pobre ( artigo 230 ); direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ( artigo 225 ); prestação de assistência social a quem dela necessite, independentemente de contribuição social ( artigo 203 ); garantia à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade e etc. ( artigo 227 ). Poder-se-ia argumentar que as medidas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que o utopismo do Constituinte foi muito além do esperado. Os constituintes decretaram por um passe de mágica, pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, que todas as normas programáticas passariam a ser pragmáticas, pois sentenciaram no artigo 5, LXXVII, §2º: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata ". Um outro equivoco que se pode imputar à nossa Constituição é seu caráter demagógico. De fato a maioria dos nossos constituintes, para impor sua liderança política, ou satisfazer sua vaidade, criaram falsas expectativas na sociedade com medidas jurídicas sedutoras, que sabiam, de antemão, serem enganosas ou impraticáveis. Nesse particular, há que se estabelecer uma diferença importante: entre atitude demagógica e o produto demagógico. A atitude demagógica é um dado subjetivo. É o defeito imputável a quem se vale desse artifício para projetar uma imagem simpática para o público. Conseqüentemente, assoma a figura do demagogo, para quem o resultado só vale na medida em que dele obtiver a projeção pessoal desejada, mesmo à custa da exacerbação de expectativas populares. O produto demagógico é um dado objetivo. O defeito está no resultado, independente da intenção de quem o produziu. Conseqüentemente, a figura do demagogo, que pode ou não estar por traz do produto, perde a importância para o próprio resultado demagógico que consiste, efetivamente, no despertar ou no exacerbar falsas expectativas. O produto demagógico baseia-se numa simplificação ingênua da realidade, quase sempre mascarando aspectos essenciais; seu irrealismo o aproxima da utopia, naquilo que esta possa ter de sedutor, de desenhar róseas expectativas. A atitude demagógica pôde ser sentida ao longo dos trabalhos constituintes. Não tendo sido exclusiva, a Assembléia Nacional Constituinte ensejou a prática demagógica por parte de muitos constituintes, preocupados de projetar uma imagem "progressista", e, por decorrência, colher vantagens políticas. Foi uma forma de se situarem melhor perante o grande público, dando a impressão de serem autênticos democratas, inovadores, criativos, atualizados, patriotas, humanistas, sensíveis aos problemas sociais. Na verdade, trabalharam com um olho nas câmeras de TV e outro nas urnas, tomando como Muitos esperavam fazer campanhas eleitorais desfraldando a bandeira da nova Constituição. Havia razões conjunturais para assim proceder. A maioria dos Constituintes foi guindada à Assembléia Nacional Constituinte pela explosão eleitoral provocada pelo Plano Cruzado. Fracassado este, sentiram a perda de popularidade e a maneira de reconquistá-la foi usar a Constituição como instrumento de veiculação de promessas incumpríveis. Mas muito embora, singularmente alguns membros da constituinte pudessem se valer da notoriedade e da publicidade dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, para projetar uma imagem pessoal de fácil simpatia, e outros mais estivessem, até por generosidade, forjando utopias, o fato concreto é que a maioria dos constituintes produziu um texto de características demagógicas. Agora não mais importa se com ou contra a intenção dos Constituintes. De fato, se debruçarmos ainda que rapidamente na leitura do texto Constitucional, verificaremos um desequilíbrio constante entre os direitos e os correlatos deveres do indivíduo. "Fala-se em 'garantias' quarenta e quatro vezes, em 'direitos' setenta e seis vezes, enquanto a palavra 'deveres' é mencionada apenas quatro vezes." (18*)
A impressão geral é que os Constituintes quiseram apenas conceder, sem nada exigir, e distribuir, sem tratar de criar condições de produzir. Promulgada a Constituição, o importante agora é analisar as conseqüências das medidas demagógicas e não tanto quais teriam sido as intenções dos Constituintes ao produzir o texto. O dado observável da nossa realidade é que a proposta constitucional demagógica gerou e exacerbou desejos, despertando normas e crescentes reivindicações, por parte da sociedade. Como, todavia, muitas delas são irrealizáveis, e outras só serão possíveis de atendimento a longo prazo, dentro das possibilidades futuras da Nação, as reivindicações não atendidas vem provocando dramáticas frustrações. A conseqüência mais funesta é que a Constituição tem perdido o seu caráter simbólico, entrou em processo de descrédito e passou a ser descumprida até pelos seus aplicadores, sem grande remorso e cerimônia. O corporativismo é mais um equivoco encontrável em nossa Constituição. Lamentavelmente, ela não eliminou as características corporativistas das constituições anteriores: na verdade, agravou-as. Com efeito, em 1988, os diversos grupos de pressão atuaram de forma ainda mais organizada, com maior soma de recursos, para verem garantidos e ampliados seus interesses específicos. Nelson Jobim, brilhante parlamentar e constituinte, bem retrata o ambiente corporativista nos trabalhos constituintes: "em 1988 nós víamos a galeria como a representação popular, como se estivesse lá o povo pelas suas organizações.
Depois nós começamos a ver que o que estava na galeria não era o povo: eram as corporações de ofício, aparelhadas algumas por partidos políticos, outras não, mas todas elas visando a interesses próprios das suas corporações". De fato, nenhum segmento organizado da sociedade resistiu à tentação de patrocinar os seus interesses classistas e corporativos junto ao Poder Constituinte. Como resultado dessa abusiva pressão, hoje "o texto Constitucional singulariza criaturas especiais, em desafio ao princípio da economia segundo o qual 'todos são iguais perante a lei'. Constata-se, nele, nitidamente, uma série de desigualdades em favor de certos setores da burocracia estatal ou de grupos diferenciados da sociedade civil...." (19*)
Na realidade a Constituição, em termos de corporativismo, é rica de exemplos: Empresas Estatais ( artigos 21, X, XI, XII; 177 I até IV ); Magistratura ( artigo 93 ); Representação Classista ( artigo 111 §3º. inciso I e §2º. ); Ministério Público ( artigo 123,§3º. e §5º. ); Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ( artigos 131 caput e §3º. ); Polícias Rodoviárias e Ferroviária Federal ( art.144 incisos II e III ); Polícia Civil ( artigo 144 § 4º. ); Médicos ( 199 § 3 º. ); Universidades Estaduais ( artigos 218 § 5º. ); Notários ( artigo 236); Fazendários ( artigo 237 ); Delegados de Polícia ( artigo 241 ); Escolas Oficiais ( artigo 242 caput ); Servidores Públicos Civis ( artigo 19 ); Ministério Público do Trabalho e Militar ( artigo 29 § 4º. ); Índios ( artigo 231 § 2º. e 3º.); Empresariado Nacional ( artigo 171 § 1º. ); Advocacia ( artigo 133 ), além de inúmeros outros. Constata-se, da leitura dessa imensa lista que, a rigor, todos os segmentos da sociedade, efetivamente organizados foram aquinhoados com favores e benesses legais: desde a "tanga" até a "toga". Além de casuística, contraditória, utópica, demagógica e corporativista, a nossa Constituição revela aspectos socializantes. A identificação do grau de socialização da nossa Constituição é facilmente comprovável por que: no tocante ao regime de bens, restringe o direito de propriedade (artigos 172; 176; 178, §3º.; 182, §4º., incisos I, II e III; e 186); no que diz respeito ao regime de pessoas, restringe o direito de iniciativa pessoal no campo econômico (artigos 171; 172; 174; 176; 178; 184; 190; 192; 222; 223;231; 237 e 238); no que concerne ao regime de renda, restringe a percepção dos lucros, tornando-se os relativos não à produção, mas às necessidades tidas como de justiça social (artigos 172; 192, inciso VII e §3º. ); e, por último, no que tange ao regime da produção - distribuição, restringe e limita o controle privado na produção de bens e disciplina, fora das forças de mercado, os mecanismos de circulação e consumo das riquezas. Na verdade, a Constituição de 88 não chegou ao ponto de estruturar um Estado Democrático de Direito de conteúdo socialista, mas pretendeu, por certo, compatibilizar a democracia política com muitos aspectos próprios do socialismo econômico. O conjunto tende ao socializante, muito embora o número do constituintes socialistas fosse reduzido. Para muitos deles, o socialismo foi identificado ao "progresso", ou seja, à aspiração de melhoria da sociedade brasileira, ou, ainda, entendido como sendo uma afirmação do primado do interesse coletivo sobre o individual; ou, por fim, como um princípio de ordem social objetivamente orientado ao distributivismo das riquezas. É compreensível que num país, como o Brasil, ainda socialmente muito desigual, o igualitarismo distributivista tivesse dominado o espírito generoso de boa parte dos membros da Constituinte. Esqueceram, no entanto, que a verdadeira solução para o problema da desigualdade social não é o socialismo democrático mas sim, o capitalismo democrático. Muito embora, a “nível” de "aspiração", o socialismo possa compatibilizarse com a democracia, há uma visceral contradição dele, enquanto "organização social", com o regime democrático. Aliás, este é o dilema que nos propõe Noberto Bobbio ao afirmar que essa contradição existe, porquanto, através da democracia, o socialismo é inatingível, mas, se for atingido através da ditadura, será a democracia a inatingível.
O estatismo é mais um lamentável equivoco presente em nossa atual Constituição. Como se sabe, a estatização se refere a qualquer tipo de acréscimo do poder do Estado, em detrimento dos poderes que remanescem aos indivíduos e aos grupos secundários da sociedade, na partilha política. Uma Constituição é estatizante quando permite a intervenção do Estado na órbita privada das relações econômicas e sociais, atribuindo-lhe poderes que as regulem, limitam ou substituam. Pois bem; lamentavelmente os Constituintes não conseguiram ou não quiseram superar o nosso condicionamento cultural de tudo esperar do Estado. Deveria reconhecer e lutar contra essa distorção, mas acabaram por inserir no texto Constitucional, uma série de dispositivos que aumentaram consideravelmente os encargos e as formas de intervenção do Estado. Ao invés de se limitar, o que já era uma demasia, a área de educação, saúde e previdência, o texto atual, aumenta o tamanho do Estado, atribuindo-lhe, de forma surpreendente, papel relevante no campo da ciência, da tecnologia, cultura, arte, esporte e lazer. O modelo de Estado desenhado pela Constituição assumiu características nitidamente paternalistas. Ficou mais forte e demandado. Tornou-se administrador, justiceiro, patrão, e defensor dos fracos e oprimidos, além de produtor e provedor de recursos. De outro lado, a sociedade ficou mais dependente e mais inerme. Foi limitado o campo de opção do brasileiro em questões importantes de sua vida. Reduziu-se, enfim, a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e se desenvolver pelas suas próprias decisões. Valem, aqui, as sábias palavras de Hernando de Sotto: "Um direito formulado com fins exclusivamente distributivista não favorece nem aos ricos nem aos pobres mas sim aos que estão melhor organizados para aproximar-se do poder". (20*)
Não cabia ao legislador constituinte assumir uma atitude paternalista e resolver os problemas do cidadão, mas os da cidadania. Não lhe cabia igualmente resolver os problemas do Governo, mas criar condições para a governabilidade. O paternalismo é um dado presente em quase todo o texto Constitucional. Ele adquiriu, todavia, maior evidência no Capítulo da Ordem Social, quando trata dos direitos dos trabalhadores. Lamentavelmente, não souberam os nossos constituintes, ainda desta vez, nos libertar da sensação de dependência do Estado, no pressuposto de que ele é neutro e eticamente confiável; o único capaz de impor regras adequadas e restabelecer eficazmente o equilíbrio nas relações trabalhistas. O preço dessa atitude foi o aumento astronômico do poder relativo do Estado no contexto social, em detrimento do poder negocial das partes envolvidas na relação. Ademais, "a preocupação dos constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos e sim garantir mais direitos para os já empregados. Legislou-se para pouco mais de metade dos trabalhadores porque o resto está na economia informal, à margem da lei e das garantias. Nossa Constituição, sob aparência benfeitora, é uma conspiração dos já empregados contra os desempregados e os jovens". (21*)
Por outro lado, na ânsia de proteger a todos os trabalhadores, indistintamente, acabaram por dar tratamento igual a situações desiguais. Consideraram empregados, com iguais direitos, tanto um próspero executivo como um simples ajudante de pedreiro. Atribuíram a empresas iguais responsabilidades, independentemente da adversidade da conjuntura e de seu porte ou localização, não importando se simples oficina de quintal interiorana ou poderosa multinacional de São Paulo. Na verdade a Constituição estratificou as relações entre empregador e empregadores: furtou e frustrou a ambas as partes o direito de decidir o seu futuro, na medida em que, o legislador constitucional se arvora em árbitro e ditador desse destino. É bom lembrar "que não é apenas o governo que pode dar a proteção ao trabalhador. Em todos os países é a própria sociedade que, com o um todo, vai impondo reconhecimento legal à progressiva conquista dos direitos trabalhistas e previdenciários, e as autoridades se limitam a homologá-los. Afinal a força política não advém apenas das leis, mas da realidade social." (22*)
Mas a pergunta que se impõe é a seguinte: teriam sido essas normas protecionistas, como imaginaram os constituintes, valioso instrumento para eliminar o nosso subdesenvolvimento, a promoção do bem-estar geral e a criação de uma sociedade mais livre, justa e solidária? Seria válido, em nossos dias, o modelo de Estado Paternalista adotado pela nossa Constituição? Como a norma legal existe para ser aplicada e não para ser admirada por suas qualidades formais, o teste da eficácia é crucial. Se a norma aparentemente é boa, porque eticamente justificável nem por isso será adequada. A comprovação empírica é que quanto mais garantias sociais nossa legislação oferece, maior o grau de injustiças sociais." (23*)
Ao equivoco do paternalismo segue-se outro que é o caráter marcadamente assistencialista da Constituição. De fato, nossos Constituintes inseriram no texto Constitucional um conjunto de "direitos sociais" , em escala nunca vista anteriormente. A lista é exaustiva: abarca os campos do trabalho ( artigo 7º. ), da seguridade social ( artigos 194 a 196 ), da saúde ( artigos 201 a 203 ), da assistência social ( artigos 203 a 205 ), da educação ( artigos 205 a 214 ), da cultura ( artigos 215 a 217 ), do desporto ( artigos 217 e 218 ), da proteção à família, à criança, ao adolescente ( artigos 226 a 231 ) e dos índios ( artigos 231 e 232 ). Os fatos revelam que os preceitos sociais utópica e generosamente contemplados pela Constituição aos menos favorecidos continuam, em grande maioria, no papel, porque, na pratica, o Estado assistencialista não tem capacidade nem recursos para assisti-los. Nossos constituintes, desejosos de passar o Brasil a limpo e resolver todos os seus problemas de forma demagógica, utópica e paternalista, acabaram por transformar a Constituição num grande e ambicioso programa assistencial do Estado. Para executar essa hercúlea tarefa, os Constituintes ampliaram as atribuições e responsabilidades do Poder Público. Mas, como se sabe,a intervenção social é dispendiosa. Levada ao extremo em que chegou a Constituição, demandaria uma grande soma de recursos. Pois bem, para satisfazer os "direitos" criados com largueza pela Constituição e atender a todas as demandas sociais, os nossos constituintes viram no próprio Estado a fonte de recursos. Aí reside, todavia, o grande equívoco. "Mas como o Estado? “Certos filósofos e estadistas pensam que o Estado possa ter virtude própria, e não simplesmente ser meio para o bem-estar dos cidadãos. Não vejo razão alguma para concordar com este modo de ver. “O Estado” é uma abstração; ele não sente prazer ou dor, ele não tem esperanças ou receios, e o que julgamos seus propósitos são na verdade os propósitos dos indivíduos que o dirigem. Quando pensamos concreta, e não abstratamente, verificamos, em vez de “O Estado”, certas pessoas que têm mais poder que o que cabe à maioria dos homens. E assim a glorificação de “O Estado” vem a ser, de fato, a glorificação de uma minoria governante. Nenhum democrata pode tolerar uma teoria tão fundamentalmente injusta”. (24*)
De fato, esse conceito de Estado produtor de recursos, capaz de prever e prover é um imperdoável engano. "O Estado provedor não passa, jamais passou, de uma dolorosa balela. Não pode prover quem não produz. A função do Estado não é produzir, mas organizar a vida social; o que ele deve prover são as condições juspolíticas para que a sociedade produza livremente". (25*)
Outra lamentável confusão dos nossos Constituintes foi a de não distinguir a diferença entre "garantias onerosas" e não "onerosas"; entre "aspirações dignas" e "direitos adquiridos".
Por exemplo, "o capítulo sobre direitos individuais da nossa Constituição é um real avanço porque explicita liberdades democráticas que tem grande valor e nenhum custo". Mas, os chamados "avanços sociais", todavia, representam custos para as empresas e para os contribuintes, daí porque os nossos Constituintes deveriam, ao elaborar o texto Constitucional, avaliar primeiro os ônus que as medidas paternalistas e assistencialistas imporiam à sociedade e depois verificar se havia disponibilidade de meios para concretizá-las na prática. Na verdade, não fizeram nenhuma coisa nem outra. Como decorrência, a partir da promulgação da Constituição, as conseqüências do custo social do estatismo, têm sido funestas para o País, principalmente, sob dois aspectos: o crescimento da burocracia e o estimulo à voracidade fiscal. Como não podia deixar de ser, esse Estado paternalista, empreguista, cartorialista e burocratizado é tremendamente desperdiçador. Inexiste qualquer tipo de controle possível sobre essa megamáquina, onde os recursos somem na voragem dos custos dos projetos, das trâmites e da folha de pessoal. Pouco sobra para suas atividades-fim. O pouco que ainda sobra, a corrupção encarrega de desviar. Para fazer frente ao crescimento constante dos seus custos, o Estado, a partir da promulgação da Constituição, exacerbou a sua voracidade fiscal, a níveis inimagináveis e insuportáveis. A Constituição sobrecarregou o contribuinte através de três sistemas fiscais paralelos:
a) o sistema tributário tradicional, com o conhecido elenco de impostos;
b) o sistema tributário da seguridade social, que é um sistema paralelo no qual os empresários seriam novamente garfados sobre a forma de salários, o faturamento e o lucro e;
c) o sistema tributário sindical, que compreende, além do imposto sindical, "uma contribuição da categoria", definida em Assembléia Geral (art. 8º., IV)".
De fato, consoante nos mostra o expoente na matéria, Ives Gandra da Silva Martins, a partir da promulgação da Constituição, os contribuintes passaram "a pagar muito mais tributos, já que foram criados novos impostos como o de grandes fortunas, o de heranças, o das doações sobre bens móveis, o imposto de renda estadual, o empréstimo compulsório, sobre investimentos públicos relevantes, o imposto municipal sobre combustíveis, com o que, além do espectro atual, poderão os cidadãos brasileiros contribuir ainda mais com seu trabalho e salários para sustentar a 'eficiente' e 'austera' máquina administrativa, que continuará sendo administrada pelos mesmos legisladores e burocratas que a administram hoje". (26*)
Entre outros desacertos reveladores do fiscalismo, dois dispositivos da Constituição de 1988 bem exemplificam a voracidade fiscal do Estado. São duas "reservas" contra o contribuinte. A primeira autorizando a União a instituir mediante lei complementar, praticamente todos os impostos que entender (artigo 164, inciso I); em segundo, a instituir contribuições sociais de intervenção no domínio econômico e de interesses das categorias profissionais ou econômicas, também praticamente sem limites, senão aqueles dos princípios gerais de tributação (artigo 149). No campo fiscal, tornou-se inócuo o magno princípio, como o da capacidade contributiva, consagrado no artigo 145, §1º. que dá ao legislador uma sinalização para que, "sempre que possível", os impostos sejam "graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte". Mas graças a uma exceção desarrazoada, a competência estabelecida no artigo 149, em favor da União, permite que ela institua, como realmente faz, contribuições previdenciárias escorchantes sobre empregados e empregadores sem nenhuma consideração com a desigualdade de situação de uns e de outros, sejam econômicas, sejam sociais ou geográficas. Para concluir, a Constituição de 1988 criou um Estado fiscalista, alimentou a voracidade arrecadatória do governo, aumentou a carga contributiva da sociedade sem resolver a até agravando a crise fiscal do Estado.
VIII. ATITUDES DIANTE DA CONSTITUIÇÃO
Diante da nova realidade constitucional, registram-se as mais diversas reações prospectivas; do otimismo ao pessimismo, da prudência ao radicalismo, da expectativa ao ativismo. Dificilmente essas circunstâncias deixarão impassíveis os que as estão vivendo, seja como políticos, seja como cidadãos. Numa esquematização simplificadora, poderemos identificar, basicamente, sete tipos de atitudes em relação à nossa Constituição, conforme a linha de solução preconizada; a da solução participativa, a da aceitação passiva, a da desobediência civil, a da solução judiciária, a da solução executiva, a da solução parlamentar e a da rebeldia armada. A solução participativa, aberta pela própria Constituição, nasce da confiança crescente do povo no seu próprio poder de influir. Se a Carta de 1988 padece de defeitos de legitimidade, ninguém mais intitulado que o próprio povo para corrigi-los. A aceitação passiva consiste na opção de cumprir, a todo risco, o texto Constitucional. Não importam as conseqüências, nem mesmo do cumprimento de seus mais controvertidos e, até, absurdos preceitos. Trata-se de um documento produzido por representantes eleitos pelo povo e, por isso mesmo, só o seu rigoroso cumprimento, com todo radicalismo que possa significar, seria uma atitude democraticamente justificável. A desobediência civil seria a solução diametralmente oposta. Confrontados com as conseqüências inevitáveis e desastrosas, como lhes parecem, esses segmentos radicalizantes pregam o descumprimento aberto, do tipo "não cumpro porque não posso". A solução judiciária parte da crença nos juízes. A eles, caberá, calcados na ciência e prudência, no dia a dia da interpretação da nova Constituição, a tarefa de contornar os absurdos e de minimizar os conflitos. De sua ação, cautelosa e firme, dependeria e estabilidade constitucional.
A solução executiva se estriba na confiança da autoridade do Presidente da República, tradicionalmente exercida em momentos de crise no País. Dele se espera uma ação catalítica, uma aplicação moderada e uma iniciativa prudente, dando ao texto condições de ser paulatinamente adequado à realidade dentro de um clima de ordem, ainda que não rigorosamente constitucional. A solução parlamentar parte da confiança nos legisladores. Seriam eles capazes de contornar os problemas através de emendas, de leis complementares e de leis ordinárias, e da Revisão, à medida em que se torne necessário desbastar as arestas e manter íntegra a ordem Constitucional. Finalmente, last but not the least, a rebeldia armada. O golpe, de recorrente presença em nossa História política, seria a ultima ratio. Rasgar-se-ia a Constituição em favor de um suposto interesse nacional, ainda que isso signifique vulnerar a democracia e regredir politicamente.
IX. CONCLUSÃO
A conclusão desse exercício analítico, embora complexas as premissas, é muito simples: nenhuma das soluções apresentadas, tomada isoladamente, oferece uma solução satisfatória aos problemas suscitados pela nova Carta. A resposta, desde logo, não pode estar nas posições radicais, ou seja, na aceitação passiva, na desobediência civil, nem, muito menos, na rebeldia armada. Parece-nos que ela deve resultar da conjugação das soluções morigeradas, confiando nos três Poderes do Estado e, sobretudo, na própria Sociedade, a responsabilidade de tornar possível o utópico; moderado o extremado; gradual o abrupto; e, sobretudo, legítimo o ilegítimo. A única atitude sensata só pode ser a que parta da assunção de responsabilidades por aqueles que detêm uma parcela do poder de interpretar, aplicar e mudar. O Legislativo é necessário para rever, emendar e integrar a Carta, adequando-a as reais necessidades e possibilidades do País. Ao Executivo caberá a importante tarefa de aplicá-las de forma realista, segura e definida, sem sucumbir aos acenos da popularidade fácil. O Judiciário é fundamental para interpretar prudentemente os textos preconceituosos e radicalizantes, dando à letra da lei a vivificação que a torne norma legítima. Mas estará, sobretudo, nas mãos da própria sociedade, pela onímoda participação que a própria Constituição possibilita, a responsabilidade de pugnar pela verdadeira legitimação que lhe falta.
(1*) Desembargador Federal do Trabalho, aposentado Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia
(2*) DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, - "Constituição e Revisão", Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1991.- pág. 475
(3*) CLÁUDIO ABRAMO, - "Constituinte e Democracia no Brasil", Ed.Brasiliense,1985,São Paulo, p.53.
(4*) ROBERTO CAMPOS, - "Século Esquisito",Ed.Topbooks, 1990, Rio de Janeiro, p. 214. 5ROBERTO CAMPOS,- "Sigla e Mensagem","O Globo", de 22 de dezembro de 1985, pág. 12.
(6*) NEY PRADO, "Os Notáveis Erros dos Notáveis - Da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais",Rio de Janeiro,Ed.Forense, 1987.
(7*) Erros que os constituintes devem evitar – Folha de São Paulo – 23 de abril de 1987
(8*) ANA LUCIA DE LYRA TAVARES, - "A Constituição Brasileira de 1988:subsídios para os comparatistas", in Revista de Informação Legislativa - JAN/a MARÇO 1991,nº 109, Rio de Janeiro.
(9*) MIGUEL REALE - Consciência Nacional. São Paulo: “O Estado de S. Paulo, 25/05/1993
(10*) ROBERTO CAMPOS, - "Século Esquisito", Ed.Topbooks, 1990, Rio de Janeiro, p. 211
(11*) Claudio Pacheco – “Constituição de Miúdos, in Carta APEC, nº 749, 10/06/1986
(12*) DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO – Dádiva do Papel. Rio de Janeiro: APEC, nº 797, 30/06/88, p. 18/19
(13*) ROBERTO CAMPOS, - "Guia para os Perplexos", pág. 203
(14) ROBERTO CAMPOS, - Folha de São Paulo, 20 de agosto de 1993
(15*) HÉLIO JAGUARIBE - Três Problemas e Seis Cenários", in Folha de São Paulo, de 21 de julho de 1988, pág.A-3
(16*) PAULO NATHANAEL, - "Constituição: Crendice e Realidade" - in O Estado de São Paulo, 05/03/87
(17*) DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, - "Constituição e Revisão", Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1991, p. 442
(18*) ROBERTO CAMPOS, - "Século Esquisito", Ed. Topbooks, 1990 - Rio de Janeiro, p. 204.
(19*) ROBERTO CAMPOS, - "A Revolução Discreta", in O Estado de São Paulo,24/04/1988.
(20*) HERNANDO DE SOTTO – “Economia Subterrânea”, Ed. Globo, 1986 - Rio de Janeiro, p. 262.
(21*) ROBERTO CAMPOS – Além do Cotidiano. Ed: Record, 1985, Rio de Janeiro - p. 88.
(22*) L. G. NASCIMENTO SILVA. Globo 13/12/86 – “A Constituinte e os Direitos Sociais” in Jornal o Globo, 13/12/1986
(23*) ROBERTO CAMPOS - "Da dificuldade de ligar causa e efeito", in O Estado de São Paulo, 23/05/93
(24*) BERTRAND RUSSELL – “A autoridade e o Indivíduo”. Zahar Editores, 1977, pags. 103 e 104
(25*) DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO - "Constituição e Revisão", Ed.Forense, Rio de Janeiro, 1991.pág. 378
(26*) Ives Gandra da Silva Martins – “Sistema Tributário na Constituição de 1988” Ed. Saraiva, São Paulo, 1992, p. 44