Fonte: Migalhas - 4/7/2025
A inteligência artificial e a substituição do trabalho: Reflexões despretensiosas acerca do protagonismo da IA na atualidade
A ascensão da IA gera debates sobre seu impacto no trabalho. A doutrina aponta para automação de tarefas, criação de novas funções e necessidade de requalificação.
A ascensão vertiginosa da IA - Inteligência Artificial tem gerado debates intensos sobre seu impacto no mercado de trabalho.
A questão central que emerge é: em que medida a IA contribuirá para a substituição do trabalho humano?
Embora a resposta seja multifacetada e de alguma sorte complexa, a análise doutrinária, internacional e nacional, revela tendências e perspectivas cruciais para a compreensão desse fenômeno que tende a ser protagonista do século 21.
A natureza da substituição: Automação, redefinição de tarefas e a visão brasileira
A doutrina predominante aponta que a contribuição da IA para a substituição do trabalho não se dará, em sua maioria, pela eliminação completa de profissões, mas sim pela automação de tarefas específicas e pela redefinição das funções humanas.
Autores como Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, em "The Second Machine Age" (2014), argumentam que a IA tende a ser mais eficaz mesmo na execução de tarefas rotineiras, repetitivas e baseadas em dados.
Isso inclui, v.g., desde a análise de grandes volumes de informações até a operação de maquinário complexo.
Nesses cenários, a IA pode e deve superar a capacidade humana em termos de velocidade, precisão e eficiência, levando à substituição de mão de obra em setores como manufatura, contabilidade e atendimento ao cliente (para tarefas repetitivas).
Já no que pertine ao contexto brasileiro, a doutrina e especialistas corroboram essa visão de complementaridade ao invés de substituição total.
Pesquisadores da USP e do TST, por exemplo, afirmam e dão ênfase à realidade de que a IA deve sim ser uma ferramenta de expansão do conhecimento e suporte às ações humanas, e não propriamente um substituto integral.
A discussão em sede nacional tem por foco a automação de tarefas, mas ressalta que a criatividade, a inteligência emocional, o pensamento crítico complexo, a tomada de decisões estratégicas e a interação humana empática permanecem como domínios insubstituíveis pela IA.
Profissões que dependem fortemente dessas habilidades, tais como artistas, psicólogos, estrategistas de negócios e profissionais de saúde (na dimensão do cuidado humano), tendem a ser complementadas pela IA, e não substituídas.
Criação de novas profissões e demanda por novas habilidades no Brasil
Paralelamente à substituição de tarefas, a IA também é um motor que impulsionará a criação de novas profissões e a demanda por novas habilidades.
Nesse sentido, a doutrina internacional e nacional são mesmo unânimes ao enfatizar que o desenvolvimento e a manutenção de sistemas de IA, a análise e interpretação dos dados gerados por eles, e a integração dessas tecnologias em diversos setores exigirão sem dúvida um novo perfil de profissional.
Livros como "AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order" (2018), de Kai-Fu Lee, destacam a necessidade de especialistas em IA, cientistas de dados, engenheiros de "machine learning" e profissionais capazes de gerenciar a interação entre humanos e máquinas.
No Brasil, especialistas e estudos da Câmara dos Deputados e da Agência SP reforçam a necessidade de requalificação profissional e adaptabilidade.
Isto porque a capacidade de colaborar com a IA, de entender seus limites e potencialidades, e de utilizar essas ferramentas para aprimorar o trabalho humano será uma habilidade-chave no futuro, com a expectativa de que a IA, a longo prazo, impacte positivamente a geração de empregos e o crescimento econômico.
Implicações sociais e políticas: O papel do Estado e da educação no cenário brasileiro
A perspectiva doutrinária também se debruça sobre as implicações sociais e políticas da substituição do trabalho pela IA.
A potencial exacerbação da desigualdade social, o deslocamento de trabalhadores e a necessidade de políticas públicas de requalificação profissional são temas centrais.
Autores como Yuval Noah Harari, em "21 Lessons for the 21st Century" (2018), alertam para o risco de uma "classe inútil" se a sociedade não se adaptar adequadamente às mudanças impulsionadas pela IA.
No Brasil, essa preocupação se traduz em debates legislativos e acadêmicos sobre a urgência de um plano de ação do estado.
A Câmara dos Deputados, por exemplo, discute projetos de lei (como o PL 2338/23, já aprovado no Senado) que visam regulamentar o uso da IA no Brasil, incluindo medidas de proteção ao trabalhador, como a exigência de transparência dos algoritmos, a garantia de supervisão humana em decisões críticas, a prevenção de discriminação e a promoção equânime de programas de requalificação.
A doutrina nacional igualmente ressalta o papel fundamental da educação continuada e da requalificação da força de trabalho para mitigar os impactos negativos da automação. Instituições como a USP e a FGV têm estudos que apontam para a necessidade de os profissionais estarem sempre atualizados e de desenvolverem habilidades que complementem a IA, como a adaptabilidade e a flexibilidade.
Justamente porque o desafio é garantir que o Brasil possa se posicionar como um legítimo líder na era da IA, a aproveitar seu potencial para impulsionar o desenvolvimento econômico e social, e construir um futuro muito mais próspero e inclusivo para todos.
Conclusão
Em suma, a IA contribuirá para a substituição do trabalho, mas de forma seletiva, acuidada e quiçá complexa.
A doutrina majoritária, tanto internacional quanto nacional, aponta para a automação de tarefas rotineiras e a redefinição de funções, em vez da erradicação e extinção em massa de profissões.
De igual forma, a IA será sem a menor sombra de dúvidas um catalisador para a criação de novas oportunidades e demandará uma força de trabalho com novas habilidades.
O desafio reside em como as sociedades, muito especial e particularmente o Brasil, se adaptarão a essa transformação, investindo em educação, requalificação e políticas sociais e regulatórias que garantam uma transição célere , justa e equitativa.
A compreensão doutrinária desse fenômeno se faz crucial para guiar as discussões e as ações necessárias para navegar na espetacular era da inteligência artificial.
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Araújo, Rayra Farias de. "Inteligência artificial: as implicações jurídicas da inteligência artificial nas relações de emprego". in Revista de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito da Seguridade Social, v. 10, n. 2, 2023.
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Câmara dos Deputados. "Projeto inclui medidas de proteção de trabalhador contra IA na CLT". Notícias, 30 set. 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1093899-projeto-inclui-medidas-de-protecao-de-trabalhador-contra-ia-na-clt/.
Harari, Yuval Noah. 21 Lessons for the 21st Century. Spiegel & Grau, 2018.
Jornal da USP. "IA deve ser ferramenta de expansão do conhecimento e não de substituição do trabalho humano". 11 fev. 2025. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/ia-deve-ser-ferramenta-de-expansao-do-conhecimento-e-nao-de-substituicao-do-trabalho-humano/.
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Lee, Kai-Fu. AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order. Houghton Mifflin Harcourt, 2018.
TuTo Digital. "O Impacto da IA Generativa no Mercado de Trabalho Brasileiro". 25 abr. 2025. Disponível em: https://tutodigital.com.br/blog/o-impacto-da-ia-generativa-no-mercado-de-trabalho-brasileiro/.
Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade
Migalheira desde abril/2020. Advogada, sócia fundadora do escritório Figueiredo Ferraz Advocacia. Graduação USP, Largo de São Francisco, em 1.981. Mestrado em Direito do Trabalho - USP. Conselheira da OAB/SP. Conselheira do IASP. Diretora da AATSP.