(O Estado de S.Paulo)
Ives Gandra da Silva Martins e Fábio Ulhoa Coelho
Códigos não são importantes apenas para fins jurídicos; têm também relevante função cultural.
No campo do Direito, os códigos sistematizam as normas de determinados setores das relações sociais e econômicas, conferindo-lhes maior racionalidade. Para além do Direito, os códigos servem de poderoso instrumento de propagação de conceitos e valores.
Veja-se o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Tecnicamente falando, é uma simples lei, porque sua tramitação legislativa não seguiu os ritos próprios das codificações. Os teóricos que, logo após a edição do CDC, tentaram construir argumentos visando a limitar sua aplicação procuraram explorar essa questão, como um modo de desprestigiá-lo. Não conseguiram, e acabou-se fixando, no linguajar dos profissionais, dos tribunais e até mesmo das leis, a denominação de “código”. A questão técnica sobre a exata natureza legislativa perdeu toda a importância, porque a sociedade brasileira incorporou o valor de que os consumidores precisam ser protegidos de modo especial.
Códigos afirmam valores. Antigamente, no embalo do iluminismo francês, pretendia-se, com os códigos, dotar a sociedade de um conjunto absolutamente lógico, completo e imutável de normas jurídicas. Hoje, os códigos mais coordenam que sistematizam, não ambicionam a completude nem tendem à perenidade. O Código Civil de 2003, por exemplo, já foi alterado 31 vezes; mais de uma vez por semestre, portanto. São assim os códigos contemporâneos: dinâmicos. E que valores se pretendem afirmar, hoje no Brasil, com a proposta de um novo Código Comercial?
São os valores que giram em torno da estruturação da economia de acordo com a ordem prevista na Constituição de 1988, fundada na livre iniciativa e na dignidade do trabalho humano (art. 170). A reconhecida vetustez do Código Comercial de 1850 e a muito questionável absorção de parte importante da matéria comercial pelo Código Civil contribuíram para a fragilização desses valores.
O lucro tem sido visto quase como um pecado, esquecendo-se de que é o principal fator de motivação de qualquer empreendimento. Passa-se despercebida a importância para toda a sociedade da determinação de alguns (os empresários) de assumirem o risco da produção de bens ou serviços, sendo inconteste que cada um de nós só pode desfrutar do que precisa para viver (vestuário, alimentação, remédios, transporte, cultura, lazer, etc.) graças a iniciativas dessa natureza.
O Código Comercial contribuirá para a afirmação desses valores, dentro e fora dos tribunais, proporcionando aumento da segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais.
Leia-se, por exemplo, o artigo 4.º, parágrafo único, do Substitutivo Paes Landim: “Decorre dos princípios da liberdade de iniciativa empresarial e da liberdade de concorrência o reconhecimento: (a) da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa privada para o atendimento das necessidades de cada um e de todos; (b) do lucro obtido com a exploração regular da empresa como o principal fator de motivação da iniciativa privada; (c) da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica assegurada ao investimento privado (...)”.
À medida que a lei incorpore esses conceitos (verdadeira explicitação da Constituição), isso os torna objeto de conhecimento obrigatório dos estudantes, estudiosos e profissionais do Direito. Os programas das faculdades vão incluir o seu estudo; as listas de pontos dos concursos da magistratura e do Ministério Público deverão necessariamente contemplá-los; produzir-se-ão estudos, artigos, dissertações e teses sobre o dispositivo; etc. Com isso, os valores veiculados pela norma legal serão conhecidos e incorporados por mais pessoas.
Esta estratégia de reafirmação de valores não é nenhuma novidade no Brasil. Foi graças ao reconhecimento, na lei, da “vulnerabilidade do consumidor”, constante do artigo 4.º, I, do CDC, que este importantíssimo fundamento valorativo de toda a proteção especial dos consumidores passou a frequentar os argumentos jurídicos de doutrinas, petições, sentenças e acórdãos.
Além desta fundamental questão principiológica, o novo Código Comercial também tem como objetivo nuclear contribuir, no plano do Direito privado, para destravar a economia. Contempla inovações que livrarão os empresários das amarras de burocracias, tornando o ambiente de negócios mais favorável ao desenvolvimento das empresas brasileiras e mais atraente aos investidores de todo o mundo. A Colômbia é um exemplo de país que realizou consistentes reformas microeconômicas, melhorando consideravelmente, com isso, sua classificação nos rankings globais de ambiente de negócios. O Brasil precisa trilhar caminho semelhante.
O projeto de novo Código Comercial, iniciativa do deputado Vicente Cândido, é apoiado por importantes entidades empresariais, entre as quais a Fecomercio de São Paulo, por seu Conselho Superior de Direito, com indicação de assessores que, nas viagens feitas ao exterior a fim de comparar modelos vigentes e exitosos, colaboraram na apresentação de sugestões. Na atual legislatura, o debate foi impulsionado pelo dinamismo do deputado Laércio Oliveira, presidente da Comissão Especial do Código. O erudito substitutivo do deputado Paes Landim, relator geral, acolheu críticas e consolidou contribuições recebidas ao longo destes cinco anos de tramitação, aperfeiçoando o projeto. Aguarda-se para logo a sua votação, para que a economia brasileira possa se beneficiar o quanto antes das melhorias na disciplina jurídica da atividade econômica previstas no novo Código Comercial.