Artigo de autoria de Regina Beatriz Tavares da Silva com a colaboração de Emily Costa Diniz.
No final de 2022, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou o julgamento de caso inédito na Corte a respeito do prazo para a propositura de ações que tenham em vista o sustento de animais de estimação após a separação de um casal (REsp nº 1.944.228/SP, julgado em 18/10/2022).
Cada vez mais os animais de estimação são levados ao debate judicial após a separação, sendo essa a segunda vez em que a matéria passa pela análise do STJ¹.
Em nosso ordenamento jurídico atual animais têm natureza patrimonial, porque se enquadram na categoria de “bens semoventes”, isto é, bens móveis que possuem movimento próprio, conforme o nosso Código Civil (CC, art. 82).
Por esse motivo, os animais de estimação não são dotados de personalidade jurídica e a celeuma se instala em ações de alimentos e de guarda de animais.
Existe corrente de pensamento que defende a possibilidade de direitos de sustento e convivência com pets serem pleiteados na Justiça, recorrendo, para tanto, ao art. 225 da Constituição Federal. Segundo essa vertente, os animais são seres “sencientes” e dignos de proteção jurídica, já que são frequentes os vínculos afetivos entre eles e os membros da família.
As dúvidas sobre a matéria estão na pauta de muitos doutrinadores e ainda não foi encontrada uma solução. No 5º Congresso Internacional da ADFAS esse tema será tratado por palestrantes nacionais e da península ibérica, com interessantes comparações entre o sistema jurídico brasileiro e o de outros países.
No caso em tela, após mais de 4 anos da separação de um casal, a ex-companheira, que permaneceu com a posse dos 6 cães adquiridos durante a união estável, pleiteou indenização pelos gastos que teve com os pets após a dissolução da relação amorosa, bem como auxílio monetário mensal para o custeio das futuras despesas cotidianas.
Formou-se relevante precedente, embora sem unanimidade dos julgadores, no sentido de que a relação entre os donos ou tutores e os animais de estimação está inserida no direito de propriedade.
Nesse sentido, a partir do momento em que a partilha foi realizada e os animais foram livremente deixados pelas partes sob a propriedade de somente um dos ex-companheiros, segundo o STJ, este terá integralmente o bônus da companhia do animal e o ônus de arcar com as respectivas despesas.
Todos os Ministros consideraram que os animais de estimação têm natureza na lei de bens semoventes, mas as divergências se deram quanto ao fundamento da pretensão reparatória e quanto à existência, ou não, de copropriedade dos animais de estimação entre o ex-casal, o que impacta em diferentes prazos prescricionais.
Votaram vencidos pela aplicação do prazo prescricional de 10 anos o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator original, e a Ministra Nancy Andrighi.
O voto vencedor, pela aplicação do prazo prescricional de 3 anos, foi proferido pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, relator para o acórdão, acompanhado dos Ministros Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino.
Conforme o voto da Ministra Nancy Andrighi, que considerou a copropriedade dos animais de estimação após a separação, o prazo prescricional para o ajuizamento da ação seria de 10 anos (CC, art. 205), pois a pretensão reparatória estaria fincada nos direitos de condomínio.
No entanto, nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio Bellizze, designado como relator para o acórdão, por ter pensamento igual ao da maioria de julgadores, foi entendido que, após a separação de um casal, sem que seja regulada a destinação dos animais de estimação em escritura pública ou em sentença judicial, a propriedade dos pets passa a ser exclusiva de quem fica com a sua posse. Por isto, foi aplicado o prazo prescricional de 3 anos para a propositura da ação indenizatória (CC, art. 206, § 3º, IV), uma vez que baseada no instituto do enriquecimento sem causa e não na copropriedade.
Todos os votos, em sua fundamentação, entenderam não ser possível aplicar ao caso analogia com as normas do Direito de Família, inerentes a pensão alimentícia destinada a crianças e adolescentes após a separação de um casal. Afastaram, portanto, a aplicação do prazo prescricional de 2 anos previsto no § 2º, do art. 206, do CC para a hipótese de “pretensões para haver prestações alimentares”.
Porém, todos os Ministros não descartaram a possibilidade de pedidos judiciais que se refiram ao sustento de animais de estimação após a dissolução de um casamento ou de uma união estável.
Assim, houve consenso na compreensão de que os animais de estimação são classificados como bens semoventes em nosso ordenamento atual, todavia com proteção especial, pois não são meras “coisas inanimadas”.
Ao balizar esse entendimento, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator original, citou em seu voto a Prof. Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS. Leia-se:
Regina Beatriz Tavares da Silva alerta para a necessidade de revisitação da teoria da coisificação dos animais de estimação, especialmente diante da conhecida judicialização de partilhas envolvendo estes em ações de divórcio ou dissolução de união estável (Com quem fica o animal de estimação do casal que se separa? Estadão, 25 ago. 2016. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/com-quem-fica-o-animal-de-estimacao-do-casal-que-se-separa/. Acesso em: 01 jun. 2018).
Como acentuou o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, há uma lacuna legislativa quanto à custódia dos animais de estimação, que, apesar de atualmente serem considerados como bens semoventes, não podem ser tidos como meros objetos.
Em seu voto, salientando que os pets passam a fazer realmente parte das famílias que os adotam, esse Ministro aponta dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que demonstram que o Brasil é um dos países com a maior quantidade de animais de estimação per capta do mundo, com a presença de cães em 28,9 milhões de lares do país e de gatos em 22 milhões de famílias brasileiras.
Diferentemente dos demais Ministros, que se conformam com a suficiência de nosso ordenamento jurídico atual, para ele, os animais de estimação não deveriam se enquadrar nem como coisas, nem como sujeitos de direito, mas, sim, numa terceira categoria.
Assim, em seu voto, a aplicação do prazo prescricional geral de 10 anos se daria não por uma questão de copropriedade, mas, sim, em virtude da ausência de regulamentação legislativa quanto à custódia dos animais de estimação.
A seguir, segue trecho da ementa do julgado do STJ, cuja relatoria para o acórdão foi do Ministro Marco Aurélio Bellizze:
RECURSO ESPECIAL. 1. AÇÃO PROMOVIDA, APÓS QUASE 5 (CINCO) ANOS DO FIM DA UNIÃO ESTÁVEL (E DA PARTILHA DE BENS), POR EX-COMPANHEIRA DESTINADA A COMPELIR O EX-COMPANHEIRO A PAGAR TODAS AS DESPESAS, NA PROPORÇÃO DE METADE, DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO ADQUIRIDOS DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL, ASSIM COMO A RESSARCIR OS GASTOS EXPENDIDOS COM A SUBSISTÊNCIA DESTES, APÓS O FIM DA RELAÇÃO CONVIVENCIAL. 2. RELAÇÃO JURÍDICA INSERIDA NO DIREITO DE PROPRIEDADE E NO DIREITO DAS COISAS, COM O CORRESPONDENTE REFLEXO NAS NORMAS QUE DEFINEM O REGIME DE BENS. 3. DESPESAS COM O CUSTEIO DA SUBSISTÊNCIA DOS ANIMAIS SÃO OBRIGAÇÕES INERENTES À CONDIÇÃO DE DONO. DISSOLVIDA A UNIÃO ESTÁVEL, OS EX-COMPANHEIROS POSSUEM ABSOLUTA LIBERDADE PARA ACOMODAR A TITULARIDADE DOS ANIMAIS DA FORMA COMO MELHOR LHES FOR CONVENIENTE. SUBSISTÊNCIA DE CONDOMÍNIO ENTRE OS BENS HAURIDOS DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL ATÉ, NO MÁXIMO, A REALIZAÇÃO DA PARTILHA. O CONDOMÍNIO, ANTES DA PARTILHA, RESTRINGE-SE AOS BENS QUE SE ENCONTREM EM ESTADO DE MANCOMUNHÃO, DO QUE NÃO SE COGITA NA ESPÉCIE EM RELAÇÃO AOS ANIMAIS. 4. DEFINIÇÃO PELAS PARTES, POR SUAS CONDUTAS DELIBERADAS, DE ATRIBUIR A PROPRIEDADE DOS ANIMAIS EXCLUSIVAMENTE À DEMANDANTE. 5. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. PRAZO PRESCRICIONAL DE 3 (TRÊS) ANOS. PRETENSÃO DE COBRAR OS CUSTOS DAS DESPESAS DOS ANIMAIS RELATIVA AO PERÍODO NO QUAL EXERCEU EXCLUSIVAMENTE A TITULARIDADE DOS PETS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE DIREITO QUE DARIA LASTRO À PRETENSÃO INDENIZATÓRIA PRESCRITA. 6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. […] (REsp n. 1.944.228/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator para acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 7/11/2022.)