Existe equivalência entre direito e justiça? Há quem sustente que sim. Perfilho-me ao lado dos que entendem que não.
Também não é pequeno o número dos que fazem com que direito equivalha à lei. Mas de que lei se está a falar? Da expressão necessária que se extrai da natureza das coisas? Lei como produto do Processo Legislativo?
Lei como conveniência, como polidez, a lei do mais forte ou a lei equitativa da democracia?
A lei pertence ao direito ou à Justiça? O direito é uma força autorizada, uma força que se autojustifica ou que tem sua aplicação justificada, ainda que essa justificação possa vir a ser declarada injusta ou injustificável.
A ideia de direito pressupõe a possibilidade de sua aplicação mediante força. Kant o enfatiza, em sua Introdução à doutrina do direito. Podem existir leis não aplicadas – o Brasil é o país em que há leis que “pegam” e leis que “não pegam” – mas não há lei sem aplicabilidade. E não existe aplicabilidade da lei sem a pressuposição de que possa vir a se utilizar da força para que ela seja aplicada.
Entenda-se por “força”, uma cornucópia de expressões: força direta ou indireta, física ou simbólica, exterior ou interior, brutal ou sutilmente discursiva – ou hermenêutica – coercitiva ou reguladora em tonalidades que Jacques Derrida bem visualizou em “Força de lei”.
Há possibilidade de se distinguir essa “força de lei” da violência sempre considerada injusta?
A casuística é multifária e complexa. Remete à definição de Estado como o monopólio da força. Já se vislumbra a prática impossibilidade de se identificar direito com justiça.
Pascal, nos seus “Pensamentos”, dizia que “a justiça sem a força é impotente: a justiça não é a justiça, ela não é feita se não tiver a força de ser aplicada; uma justiça impotente não é uma justiça, no sentido do direito; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem força é contradita, porque sempre há homens maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força; e, para fazê-lo, que aquilo que é justo seja forte, ou que aquilo que é forte seja justo”.
A conclusão é a de que, não podendo fazer com que aquilo que é justo fosse forte, fizeram com que aquilo que é forte fosse justo. Mera retórica?
A ciência jurídica, tal como estudada nas Faculdades de Direito do Brasil, ainda enfatiza o “fetiche da lei”. Não é postura desarrazoada, pois Montaigne já dissera “ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento mítico de sua autoridade, elas não têm outro”.
Inafastável o raciocínio de Montaigne, ao distinguir as leis, ou seja, o direito, da justiça. a justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. as leis não são justas como leis. Não se obedece a elas porque são justas, mas porque têm autoridade. Nas leis, a humanidade acredita. Ainda que sejam írritas à justiça.
Ninguém pode negar que existem leis iníquas. Todavia, o relativismo convencionalista ou utilitário faz com que elas sejam observadas, mesmo assim. Às vezes, por influência da moral cínica de La Fontaine, na fábula “O lobo e o cordeiro”, na qual se encontra a lição: “A razão do mais forte é sempre a melhor”.
Missão difícil e angustiante a dos profissionais do direito, sobretudo aqueles que têm de aplicar a lei às situações concretas postas pelo sistema à sua apreciação. Porque, diz Derrida, “a justiça é a experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura não fosse uma experiência da aporia, não teria nenhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um “apelo” à justiça. cada vez que as coisas acontecem ou acontecem de modo adequado, cada vez que se aplica tranquilamente uma boa regra a um caso particular, a um exemplo corretamente subsumido, segundo um juízo determinante, o direito é respeitado, mas não podemos ter certeza de que a justiça o foi”.
Inexiste coincidência obrigatória e automática entre direito e justiça. o direito não é a justiça. “O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantido por uma regra”.
Vã ilusão acreditar que a busca do equipamento estatal denominado “Justiça” garanta a decisão justa. Por isso é que muitos dos magistrados já assumiram que não se preordenam a fazer justiça, mas que sua tarefa é conferir segurança ao direito. Ainda que, às vezes, ele seja injusto.
São os deslizamentos equívocos entre direito e justiça, algo que escapa à maioria dos estudiosos da ciência jurídica suficientemente tentacular para impregnar toda a vida brasileira.
*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019/2020, e ocupa a Cadeira nº 28 na Academia Paulista de Letras Jurídicas