Crédito: Jornal SP Norte -

dirceo torrecillas ramos 48Por que um povo organiza-se, cede sua liberdade natural, submete-se a uma ordem jurídica? Por que elegem e nomeiam suas autoridades? Quais as funções destas, seus limites e suas relações com o povo soberano? São superiores para exercerem com soberba suas atividades? Fazem o que querem ou estão subordinados ao Estado de Direito? Por que possuem foro privilegiado, de um lado, e por outro, quais os remédios para a sociedade, contra seus abusos? Têm consciência que são servidores e não servidos pelo suor e subserviência popular? No Estado de Direito, aqueles próximos aos poderes constituídos ou compondo-os, têm o exercício de influência e conquistam privilégios ou não? Uma associação de garis consegue as mesmas benesses e outras vantagens conquistadas pelas associações de membros mais elevados do executivo, do legislativo e do judiciário?

Iniciemos pelo foro privilegiado. O que é? A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 diz, em seu artigo 102: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe”: I – “processar e julgar, originariamente”: ...b) “nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;” c) “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvando o disposto no artigo 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”.

Quando o dispositivo manda processar e julgar, originariamente, quer dizer única e última instância pelo Supremo Tribunal Federal porque este é o Superior e não existe outro acima dele. Questiona-se o privilégio porque, em tese, uma possível condenação será mais rápida e com apenas uma oportunidade de instância ao acusado. Julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal, condenado, transita em julgado, irá para a prisão em prazo mais curto e perderá os direitos políticos, em consonância com o artigo 15, inciso III, da Lei Suprema. Lado outro, a condenação em segunda instância, segundo o STF, poderá e não deverá levar ao início de cumprimento da pena, havendo a possibilidade de responder em liberdade na terceira e quarta etapas do julgamento, bem como manter os direitos políticos, com suspensão da inelegibilidade, conforme previsto no artigo 26, c, da “Lei da Ficha Limpa”, complementar nº 135 de 4 de junho de 2010, a qual altera a de nº 64 de 18 de maio de 1990. A vantagem, então, seria a possibilidade de quatro fases, iniciando-se na primeira diante do juiz singular, a segunda em Tribunais Estaduais ou Regionais Federais, a terceira no Superior Tribunal de Justiça e a quarta no Supremo Tribunal Federal, ainda que nestes dois últimos por análises formais, mas em todos com os inúmeros recursos, embargos, agravos possíveis. Considere-se o processo incipiente em cidades pequenas, com pessoas próximas, amizades fortalecidas, embora o juiz aja com isenção e independência.

TODOS devem ser alcançados pelas restrições ao Foro Privilegiado, ou seja, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador Geral da República, os Procuradores da República, os Juízes, os Ministros de Estado, dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União, os Chefes de missão Diplomática permanente, os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica ou apenas os membros do Congresso Nacional? Passariam Todos de uma para quatro instâncias? Assim, estar-se-ia respeitando o princípio da igualdade, mas provocando outras conseqüências desconfortáveis. Um ministro do Supremo Tribunal Federal diante de um juiz singular de primeira instância, bem como um militar de hierarquia Superior frente ao Conselho de Justiça formado por quatro militares e um juiz de direito em primeira instância, da mesma forma que os Deputados e Senadores. Estarão, todos, sendo julgados como os demais cidadãos comuns. Lembremos que sendo o objeto da restrição do foro privilegiado, a redução de processos no Supremo Tribunal Federal, o resultado será o inverso, porque através dos recursos o processo chegará da mesma maneira, ao Supremo Tribunal Federal e a sobrecarga atingirá a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª instâncias piorando a atuação do Poder Judiciário, em relação ao procedimento anterior. A solução seria considerar o trânsito em julgado material e formal na segunda instância e o STF ser um Tribunal Constitucional para julgamento em tese, em abstrato.

NA FUNÇÃO - EMENDA. Outra questão é a consideração de apenas atos praticados durante o mandato e no exercício da função, para merecer o “foro privilegiado” e se a restrição deveria ser objeto de Emenda Constitucional ou de interpretação.

A seção V, Dos Deputados e Senadores, no Capítulo I, Do Poder Legislativo, na Constituição Federal, expressa no artigo 53, “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, e no seu § 1º “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. Realmente, à primeira vista, para estas imunidades quanto à irresponsabilidade, à inviolabilidade e foro, o texto maior não determina quanto a atos praticados anterior ou posteriormente, ligados ou não à função. Entretanto, poderemos nos socorrer no direito e na doutrina estrangeira, como fonte do direito, desde que adequada à nossa realidade, para a devida interpretação. A Constituição francesa, em seu artigo 26 al. 1, estabelece: “Aucun membre du Parlement ne peut être poursuivi, recherché, arrêté, detenu ou jugé à l’occasion des opinions ou votes émis par lui dans l’exercice de ses fonctions”. As imunidades - inviolabilidade e irresponsabilidade, assim como o foro, estão nos mesmos dispositivos, permitindo a interpretação sistemática e comparativa.

Nosso texto corresponde ao francês com a diferença que este completa “no exercício de suas funções”. Abrange os atos ligados ao mandato e funções. Como ensina Louis Favoreu e outros “Le droit constitutionnel des institutions”, pp. 694, 695, 696, compreendem os debates em sessões, os trabalhos nas comissões, nas missões confiadas pela assembléia, conteúdo dos relatórios etc.; ao contrário não cobre as atividades políticas habituais, como discursos em reuniões públicas, artigos de imprensa etc. Protege, enfim, os parlamentares, devido à necessidade de defender livremente suas opiniões, palavras e votos, para não serem responsabilizados por injúria e difamação. Desta forma, a omissão, no Brasil, de “no exercício de suas funções”, conduz a uma amplitude maior do foro privilegiado para atos fora do exercício da função. É razoável entender que houve lacuna a ser preenchida pela interpretação, independentemente da Emenda Constitucional. Além dos casos mencionados por Favoreu e outros, não se justifica o foro privilegiado, com atuação da Suprema Corte, para crimes comuns, tais como, por exemplo violência contra mulher, filhos, briga de trânsito; deixar de pagar alugueis, condomínios, prestações etc.

CORPORATIVISMO. É interessante observar que frequentemente é mencionado o corporativismo em certos julgamentos, mormente na Justiça Militar que realmente é mais severa do que a Justiça Comum. Mas, o que dizer do foro privilegiado, onde os Ministros do Supremo Tribunal Federal são julgados por eles próprios. É o caso de perguntar-se se obedecem os casos de vedações, suspeição, de impedimento, mudança de voto já manifestado na mesma sessão e se cumprem suas funções regularmente nos dias de expediente, como manda a Constituição, os Códigos e a Lei do Impeachment? Ainda no caso de Militares, com relação aos crimes comuns, fora da função compete à Justiça Comum e é exemplar, para o foro privilegiado, mas nos crimes de responsabilidade deveria ser da competência da Justiça Militar e não do Supremo Tribunal Federal, salvo os conexos com os do Presidente da República (art. 52, I) atribuídos ao Senado Federal.

Portanto, todas as observações acima referidas, com relação ao princípio da igualdade para todos; a distinção entre julgamento originário e as várias instâncias; saber qual é o verdadeiramente privilegiado e o seu alcance; a questão hierárquica entre superiores e inferiores, de quem julga e de quem é julgado; do corporativismo; do respeito às vedações impostas; os crimes comuns, de responsabilidade, militares; estabelecimento e respeito aos limites impostos às autoridades, deve justificar a submissão do povo à ordem jurídica – Estado de Direito, cedendo parte de sua liberdade para garantir, com segurança, a liberdade maior. Finalmente todas as medidas a serem tomadas, por emendas à Constituição ou interpretação não prescindem da consequenciologia, sem a qual, os resultados poderão ser inversos dos desejados.