Fonte: Revista CCLA
Interessante como as ideias nos ocorrem, vindas do nada para se tornarem fixação e determinação de persegui-las a fim de satisfação das lembranças.
Lendo há já algum tempo excelente crônica de meu amigo e presidente da Academia Campinense de Letras, Jorge Alves de Lima, sobre a Campinas dos tempos idos, nela vi a referência a José Bonifácio como poeta, e em seguida o poema de um poeta campineiro tendo como tema os pés de uma donzela. Intrigado sobre o Patriarca da Independência como poeta, veio-me à cabeça a ligação de seu nome a uma poesia sobre os pés de uma dama.
Lembrei-me então, de que teve ele um sobrinho, que teve também o seu mesmo nome, José Bonifácio de Andrada e Silva, este filho de seu irmão, outro nome da história da Independência e do Império do Brasil, Martim Francisco, que eleito para a Assembleia Constituinte do Império em 1823, nela se destacou como deputado.
Curiosidade, aliás, o fato de que este seu sobrinho, nascido em Bordéus, na França, em virtude do exílio de seu pai, em 1827, tinha como sua mãe, Gabriela Francisca, filha do Patriarca, que aos 14 anos se casara com Martim Francisco, então já na idade de 45 anos. Curiosidade, dizemos, pois era ao mesmo tempo neto e sobrinho do seu avô. De seu pai, deputado combativo.
Acudiu-me à memória, então, a alcunha que o designava: “José Bonifácio, O Moço”, e o fato de que já havia visto uma estátua em frente à Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo de São Francisco, desde que ali fizera meus cursos de mestrado, na já longínqua década de 1960, de direito tributário e de direito processual civil. Teve como professores Ruy Barbosa Nogueira e Alfredo Buzaid, e de minha estranheza de ver a designação, “O MOÇO”, aplicada a quem eu então pensava que era o Patriarca, figura austera de um senhor já de idade avançada. A associação de idéias do sobrinho-neto e de um poema, acudiu-me então de ter visto aquele nome e apelido relacionado à Academia Brasileira de Letras. Nesta, vi que era ele patrono da cadeira n.º 22, escolhido que foi pelo primeiro ocupante da mesma, Medeiros de Albuquerque, sucedido posteriormente, por Miguel Osório de Almeida, Luis Viana Filho, Ivo Pitanguy e agora ocupada, desde 1917, por João Almino.
Volto, neste passo, à figura de seu pai – Martim Francisco, destacado parlamentar de retórica brilhante, sobre quem me recordo haver lido, em minha meninice, em meu primeiro livro de história do Brasil a – História do Brasil para crianças, de Viriato Correa –, a menção de seu ato de coragem quando, ao ser dissolvida por D. Pedro I a Assembleia Constituinte, ao sair do prédio onde estava instalada, passando em frente aos canhões de Sua Majestade Imperial, tirando o seu chapéu, fez-lhes um cumprimento: “Respeito Vossa Majestade”. Dessa progênie, que, objeto das mais sórdidas intrigas, “armadas todas pelos áulicos palacianos” como as qualifica Paulo Nathanael Pereira de Souza1 teve determinado seu exílio, conservou-a o filho causando em Medeiros de Albuquerque profunda impressão que João Almino, o hoje ocupante da cadeira 22, relembrou na sua brilhante oração de posse na Academia Brasileira de Letras com as seguintes palavras:
Luis Viana Filho, terceiro ocupante da cadeira 22, narra a impressão deixada por esse sobrinho do Patriarca da independência em Medeiros e Albuquerque, o fundador da cadeira, num dia de 1886, Bonifácio, no Senado, enlevava a plateia com a defesa do abolicionismo. Quando terminou, a palidez de seu rosto não ofuscava o “olhar rutilante”. Doente, viera contra recomendação médica e dias depois morreria. O episódio faria Machado de Assis, em versos por ocasião de sua morte, dizer que Bonifácio caíra “não ao peso dos anos, mas ao peso do ...amor à... pátria amada”2
No ensaio biográfico que sobre José Bonifácio, O Moço, escreveu Antonio Junqueira de Azevedo3 estão alinhados os vários campos da vida do biografado, como orador parlamentar, professor de direito civil e direito criminal na Faculdade de Direito de São Paulo, abolicionista e, no que aqui mais de perto nos diz, como poeta.
Em seus versos, revela-se o seu caráter patriótico, na poesia O redivivo, escrita em homenagem ao general Andrade Neves, o Barão do Triunfo, comandante das cargas de cavalaria de guerra na batalha do Avaí, na Guerra do Paraguai, recitada no Brasil inteiro ao fim dessa luta. A esse caráter adiciona ainda o de abolicionista, em seu poema da mesma guerra, em homenagem ao “soldado 42”, do corpo de voluntários paulistas, um corneteiro negro, de quem se disse que, mesmo tendo perdido um braço, continuou a tocar o “Avança!” segurando a corneta com o braço que lhe restava.
Mas aqui nos toca ao coração falar do poeta que sucedeu à trindade romântica de Fagundes Varela, Álvares de Azevedo e Castro Alves, com uma suscetibilidade carinhosa pelo seu amor e que em 1848 publicou seu livro de poemas Rosas e Goivos1 que, conforme nota manuscrita em Ex-Libris, de Rubens Barbosa Alves de Moraes, “é o primeiro livro de poesias impresso em São Paulo”2.
De se lembrar que Coelho Neto (sempre lembrado por sua atuação no início do século passado em nosso Centro de Ciências, Letras e Artes, vindo a Campinas para lecionar no “Culto à Ciência”) coloca-o no grupo dos poetas românticos menores que se seguiram à trindade acima3 que Alfredo Bosi designa como epígonos, retomando eles as efusões sentimentais dos vates da trindade4.
Volvamos agora ao “leit motiv” da nossa lembrança, a amorosa descrição do pé da moça amada, poema lírico que também Alberto de Oliveira, príncipe dos poetas que antecedeu ao nosso Guilherme de Almeida, reproduziu em suas Páginas de Ouro da Poesia Brasileira, mantida aqui, com em todas referências fizemos, a grafia de então5:
Adorem outros palpitantes seios,
Seios de neve pura,
De angelico sorrir meiga fragrância,
Ou sobre collo de nevada garça,
Caindo a medo em ondas alouradas,
Bastos anneis de tranças perfumadas.
Adorem o coral do lábio ingrato,
Na alvura do alabastro,
A voz suave, o pallido reflexo
Da luz do céo em face de criança;
Ou sobre altar erguido á formosura,
Na fronte eburnea a mórbida brancura.
Adorem outros de um airoso porte
Relevados contornos;
A majestade da beleza altiva,
O desdenhoso riso, o collo, o gesto,
A descuidosa mão que a trança alisa,
Na trípode infernal a pythonisa.
Não! Não quero painéis de tal encanto!
Tenho gostos humildes:
Amo espreitar a negligente perna,
Que mal se esconde nas rendadas saias,
Ou vêr subindo o patamar da escada,
Sem azas, a voar, um pé de fada.
Um pé, como eu já vi, de tez mimosa,
De tez folha de rosa,
Leve, esguio, pequeno, carinhoso,
Apertando a gemer num sapatinho;
Um pé de matar gente e pisar flôres,
Namorado da lua e pai de amores!
Um pé, como eu já vi, subindo a escada
Da casa de um doutor...
Da moçoila gentil a erguida saia
Deixou-me ver a delicada perna...
Padres, não me negueis, se estaes em calma,
Um coração no pé, na perna uma alma.
Um pé, como eu já vi, junto à otomana,
Em férvido festim,
Tremendo de valsar, envergonhado,
Sob a meia subtil, e a côr do pejo
Deixando flutuar na meia azul...
Requebro, amor, feitiço, um pé taful!
Poeta do amor e da saudade,
Depois de morto, peço,
Em vez de cruz sobre a funerea pedra,
A fórma de seu pé: foi o meu culto...
Quero sonhar o resto, emquanto a lua,
Chorosa e triste, pelo CEO fluctúa.
AGOSTINHO TOFFOLI TAVOLARO, advogado, membro da Academia Campinense de Letras (ACL) e do Conselho Deliberativo do Centro de Ciências, Letras e Artes. É, também, membro do Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Campinas, da Academia Paulista de História e da Academia Paulista de Letras Jurídicas, e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. No campo jurídico, foi presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) do Rio de Janeiro, presidente do ILADT (Instituto Latino Americano de Direito Tributário) de Montevidéu (Uruguai) e vice-presidente da IFA – International Fiscal Association, em Amsterdam - Holanda.
1 Goivos, na botânica, designam flores perfumadas e ornamentais, tendo também o sentido figurado de alegria, contentamento, gáudio, segundo o Caldas Aulete.
2 Este livro se encontra em versão digital na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, e conseguimos também adquiri-lo físico na estante virtual. Rubens Barbosa Alves de Moraes bibliotecário, bibliófilo e historiador (v. Google). Como editora temos “S. PAULO – TYPOGRAPHYA LIBERAL. Rua das Flores, n.9. (Imp.J.V.ARÊAS).
1 Martin Francisco: Revista da Academia Paulista de História, Ano XVII, n. 125, p. 3
2Disponível em: ?https://www.academia.org.br>discurso-de-posse
3 Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, n. 88, p.157-182
3 Compendio de Litteratura Brasileira (3. edição revista e augmentada). Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, 1929, p.143
4 História Concisa da Literatura, Cultrix São Paulo: 44. ed., p.117.
5 Páginas de Ouro da Poesia Brasileira. H. GARNIER, Livreiro-Editor, Rio de Janeiro – 109, Rua do Ouvidor, RIO DE JANEIRO – 6, Rue des Saints-Pères, 6 PARIS
*Membro