A Lei básica de desapropriação, Decreto-Lei nº 3.365, de 21 junho de 1941, era uma das poucas leis da era Vargas editada com clareza e objetividade que havia restado.
Em seus 42 artigos exauria com lapidar clareza a desapropriação nos planos material e processual.
Durante mais de 7 (sete) décadas de vigência não apresentou qualquer dificuldade de sua aplicação, salvo no valor da oferta para fins de imissão prévia na posse do imóvel objeto de desapropriação, porque o diploma legal foi editado em uma conjuntura completamente diferente da atual, em que a imissão provisória passou a ser a regra geral, ao passo que nas décadas de 40 a 50 era uma medida excepcional, e nem havia congestionamento da justiça naquelas épocas, possibilitando a rápida conclusão do processo expropriatório seguida de pronto pagamento da justa indenização fixada.
Atuamos no Departamento de Desapropriação da Prefeitura de São Paulo durante longos 20 anos, tendo sido seu diretor em duas oportunidades, ocasião em que inovamos o critério de depósito do valor da oferta com base em laudo avaliatório prévio elaborado pela divisão de engenharia daquele Departamento, de sorte que o valor ofertado e depositado refletia o valor de mercado.
Mas, essa lei clara e objetiva foi vítima de fúria legislativa pelos mesmos legisladores que em 2023 aprovaram a reforma tributária por meio da EC nº 132, de 20 de dezembro de 2023, na qual 491 novas normas constitucionais nebulosas, dúbias e conflitantes foram introduzidas na Constituição de 1988, que se transformou em autêntica colcha de retalhos de dificílima compreensão.
Assim é que esses mesmos legisladores, agora, travestidos de legisladores ordinários, introduziram alterações casuísticas nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 7º e demais dispositivos trocando palavra ou expressão por outra, sem qualquer necessidade.
Outrossim, foi acrescido os artigos 4º-A que introduz inúmeros requisitos para desapropriação de imóvel caracterizado como núcleo urbano informal. A prática, baseada no bom-senso já vinha adotando medidas adequadas para contornar os efeitos negativos da situação decorrente de imissão provisória nos imóveis ocupados por favelas, sem necessidade de medidas burocratizantes previstas na norma acrescida.
O acréscimo do art. 10-A, por sua vez, cria empecilhos à realização de desapropriação por acordo, estabelecendo inúmeros requisitos inúteis, superados pela prática de 70 anos. O art. 10-B, a seu turno, introduz a inusitada via de mediação ou juízo arbitral para fixação do justo preço na desapropriação amigável. Ora, se não há acordo quanto ao justo preço, a solução que se impõe é a desapropriação judicial. Não faz menor sentido a introdução de morosa e dispendiosa via da mediação ou do arbitramento na desapropriação amigável que se faz por escritura pública. A desapropriação judicial surge como sucedâneo ao malogro do acordo quanto ao justo preço do bem objeto de desapropriação. Temos saudades da época dos experientes legisladores que marcaram passagem na história. Talvez o inchaço da Casa Legislativa (513 Deputados) que se transformou no Legislativo mais caro do mundo tenha contribuído para o retrocesso qualitativo de sua atuação.
Por fim, a nova redação conferida ao art. 15-A repetiu a expressão “incidência de juros compensatórios de até 6% a.a” condenada pelo STF nos idos de 20024 em razão do preceito constitucional do justo preço que não se compatibiliza com a limitação do percentual de forma genérica, sem atentar para cada caso concreto (ADI nº 2332/DF Relator Min. Moreira Alves, DJ de 2-4-2004).
O único artigo do Decreto-Lei nº 3.365/41 que estava a merecer atualização, o §1º do art. 15, que permite a imissão provisória mediante o depósito do valor cadastral do imóvel, permaneceu intacto. Mexeu e remexeu em dispositivos claros que cristalinos que nenhum problema estava propiciando nas milhares de desapropriações feitas em âmbito nacional. Aquele § 1º, do art. 15 que deveria ter sido alterado, para se exigir o depósito da oferta no valor resultante do laudo prévio do perito judicial, permaneceu intacto, como se tivesse sido protegido por cláusula pétrea. A explicação para essa omissão pode ser encontrada na vontade política de continuar gerando precatórios impagáveis que, por força da última Emenda promulgada pelo Parlamento Nacional, serão liquidados ate o dia 31 de dezembro de 2029, se outra emenda não fizer nova prorrogação, o que é bem provável.
É lamentável que esse raro diploma legal virtuoso sobrevivente da era Vargas tenha sido vítima de fúria legislativa do Congresso Nacional que vem se dedicando, nas últimas décadas, à arte de complicar e obscurecer as normas componentes de nosso ordenamento jurídico. O legislador de hoje não consegue redigir um único dispositivo, sem contorcionismo jurídico que obscurece a norma ensejando inúmeras interpretações divergentes.
SP, 26-2-2024.
* Texto publicado no Migalhas edição nº 5.796, de 27-22024.