milton paulo de carvalho 58

Constituição da República Federativa do Brasil. “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.”

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SUMÁRIO: 1. A importância do sentido e do alcance da expressão “dignidade da pessoa humana”. – 2. Componentes da dignidade da pessoa humana. – 3. Origem histórica e fundamento racional da dignidade do homem. – 4. A lei moral: bonum faciendum malum vitandum; o homem: corpo e alma, razão e liberdade. – 5. O conceito de dignidade da pessoa humana integra o estudo da ética social. – 6. Método de interpretação e natureza da regra constitucional. – 7. Um princípio espiritual/racional na Constituição de um Estado laico? – Conclusão.

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  1. A importância do sentido e do alcance da expressão “dignidade da pessoa humana”.

Dignitas, dignitatis traduz-se por “dignidade, título, honra, posto, cargo honorífico, estado, autoridade, merecimento, estimação”, segundo JOSÉ CRETELLA JÚNIOR e GERALDO DE ULHOA CINTRA, Dicionário Latino-Português, São Paulo, Editora Anchieta Ltda., 1944, verbete dignitas, atis, pág. 327.

Em português, dignidade tem esta sinonímia: “1 qualidade moral que infunde respeito, consciência do próprio valor; honra, autoridade, nobreza (...) 2 qualidade do que é grande, nobre, elevado 3 modo de alguém proceder ou de se apresentar que inspira respeito, solenidade, gravidade, brio, distinção (...) 4 respeito aos próprios sentimentos, valores; amor-próprio (...) 5 prerrogativa, honraria, título, função ou cargo de alta graduação (...), segundo ANTÔNIO HOUAISS e MAURO DE SALLES VILLAR, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, verbete dignidade.

Está a ver-se que os léxicos põem em evidência a ideia de distinção, de diferença e de superioridade, pois o conceito compreende prerrogativa ou alta graduação; ou seja, a dignidade reconhece-se como atributo de um ser em relação a outros seres. O qualificativo humana, ou os restritivos do homem e da pessoa humana demonstram que é de uma certa e determinada dignidade que se trata. Mas, não se conhece outra que não seja do homem. Também não revela ser um conceito que se qualifica ou quantifica quando aplicado ao homem, como “boa ou má dignidade” ou “mais ou menos dignidade” ou “maior ou menor dignidade”: enquanto atributo humano tem um sentido absoluto. O que pode ser comparado entre homens é o respeito, ou a consciência, maior ou menor, que cada um pode ter pela própria dignidade. Essas noções permitem concluir que o vocábulo é sempre empregado para distinguir o homem dos seres não humanos. É palavra que sempre designa uma qualidade que os vegetais e os animais irracionais não possuem. A dignidade é congênita à espécie humana. Do irracional não há falar em dignidade.

É verdade que se encontram locuções como estas: “altos dignitários da nação”, “pessoas constituídas em dignidade...” etc., mas nessas expressões, salvo alguma hipótese de corruptela, vê-se que a derivação do primitivo “dignidade” está sendo empregada em sentido figurado, como extensão do significado original e próprio, para demonstrar, precisamente, a distinção, agora, entre pessoas. A locução “dignidade humana”, no nosso vernáculo, não tem sentidos análogos ou equívocos; pois, de resto, como já se disse, o restritivo “da pessoa humana”, sempre presente, não permite ilações deformadoras nem do sentido nem do alcance do vocábulo. A dignidade é a mesma para todos os homens; é ela o fundamento e razão da isonomia.

A dignidade da pessoa humana não se reconhece pelo volume da sua cultura, da sua riqueza, dos seus valores social ou materialmente considerados; é ínsita à natureza humana. Mas, a pessoa pode perdê-la por sua intencional desatenção à consciência moral.

2. Componentes da dignidade da pessoa humana.

Tem a dignidade do homem uma constituição ao mesmo tempo natural e espiritual. Integra-se ela de vários elementos, sendo o primeiro o ter sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus, mesmo que se creia no evolucionismo para explicar o surgimento do universo. Integram ainda a dignidade da pessoa humana estes elementos: o ser essa criatura dotada de vontade e inteligência; o possuir um corpo finito e uma alma infinita; o ter insculpida na sua consciência, desde o nascimento, a lei moral consistente no fazer o bem e evitar o mal; o dispor de um outro atributo que lhe é próprio e exclusivo: a liberdade; e o ter todo o universo à sua disposição... Esses elementos demonstram a existência de um ser superior a todos os outros seres, tudo isso fazendo com que a dignidade seja reconhecida e acatada pelo direito como qualidade integrante do ser humano e não entendida como uma aquisição dele, ou criação jurídico-positiva, mas sim um dos componentes entre os dotes informadores da visão axiológica desse ser.

Essa noção leva-nos à origem dos seres. O homem tem dignidade desde o seu aparecimento e o aparecimento dos demais entes sobre a terra. Admita-se a criação pela vontade de Deus (criacionismo) ou pela evolução da matéria, pela seleção natural ou qualquer outra versão do evolucionismo, a verdade é irretorquível: o homem é o maior e o mais importante de todos os seres, encontrando-se o universo todo, todos os demais seres animados ou inanimados, ao seu inteiro serviço, à sua discricionária disposição.

3. Origem histórica e fundamento racional da dignidade do homem.

Em todos os tempos a dignidade humana é reconhecida como valor imaterial. Extraem-se da Bíblia algumas lições que demonstram a superioridade do homem sobre os demais seres existentes na natureza, derivada da sua dignidade.

A origem divina da dignidade do homem é reconhecida desde os primeiros tempos da civilização. Os judeus cantaram em salmo a grandeza de Deus ao criar a ordem universal e louvaram o ter Ele dedicado ao homem o domínio sobre todas as coisas criadas:

Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas, que tu criaste,

(exclamo): Que é o homem, para te lembrares dele?

Tu o fizeste pouco inferior aos anjos,

de glória e de honra o coroaste,

e lhe deste o mando sobre as obras das tuas mãos,

sujeitaste todas as coisas debaixo de seus pés;

Todas as ovelhas e todos os bois

e, além destes, os outros animais do campo,

as aves do céu, e os peixes do mar:

tudo o que percorre as veredas dos oceanos.

Esse canto judaico ratifica e exalta a narrativa histórica do primeiro livro da Bíblia, o Genesis, com estas palavras cuja expressão conduz à certeza de que a dignidade é um atributo diferenciador da criatura humana em relação aos demais seres. Descreve-se no Cap. I, vv. 26 e 27:

“26. E (por fim, Deus) disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e às aves do céu, e aos animais selvagens, e a toda terra, e a todos os répteis, que se movem sobre a terra. 27. E criou Deus o homem à sua imagem; e criou-os à imagem de Deus, e criou-os varão e fêmea.” (Bíblia Sagrada, Pe. Matos Soares, Antigo Testamento, Pentateuco, Porto, Tipografia Alberto de Oliveira Ltda., 1951, pág. 17).

Essas descrições evidenciam a origem histórica e o fundamento racional da dignidade como atributo do ser humano. Qual a razão, ou a que título, tem sido a dignidade da pessoa humana, ultimamente, tão invocada em pronunciamentos justificativos de medidas políticas e econômicas? Medidas e pronunciamentos que vêm arrimados num dispositivo fundamental da Constituição Federal, primeiro texto legal do Estado Democrático de Direito em que se diz constituir esta República.

Por que, no Brasil, se “põem a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”? Porque se reconhece e preserva-se no nascituro a dignidade da pessoa em que ele se convolará.

Julgamos demonstrado que a dignidade da pessoa humana reconhecida pelo direito é aquela com a qual ela nasceu desde que nasceu o mundo.

4. A lei moral: bonum faciendum malum vitandum; o homem: corpo e alma, razão e liberdade.

Insculpida na consciência do homem desde o seu nascimento, a regra de fazer o bem e evitar o mal é um dos caracteres mais eloquentes do contexto espiritualidade/racionalidade da essência humana.

Com efeito, é de evidência ofuscante e dispensa qualquer demonstração a presença da lei moral na mente e no coração de todo ser humano. O homem sente e chega a proclamar a lei moral mesmo quando age contra ela.

Reconheça-se que esse dado explica todas as atitudes humanas – no sentido do bem ou do mal – e está sempre presente, ostensiva ou veladamente, nas decisões dos grupos humanos.

Se pela razão o homem distingue entre o bem e o mal, faculdade que lhe vem da consciência moral, sendo atributo que só ele possui, pela vontade é capaz de orientar a sua conduta na busca do bem verdadeiro. A distinção que lhe brota da consciência e sua vida conforme essa distinção demonstram a sua dignidade.

Inteligência e vontade, razão e liberdade, são, portanto, ingredientes da dignidade do homem.

5. O conceito de dignidade da pessoa humana integra o estudo da ética social.

Concebendo a dignidade da pessoa humana como alicerce da isonomia, somos levados a concluir que a justiça social somente se poderá alcançar se for respeitada aquela dignidade em toda a sua transcendência. Pela simples razão de que o Estado existe para servir ao homem (sendo um absurdo intolerável o inverso!), e diante desta outra verdade: a pessoa representa o fim último da sociedade.

A conclusão não pode ser outra: é por isso que está na Constituição.

Assentado o fundamento no direito natural do sentido e da abrangência da dignidade humana, vejamos como refletem no contexto social, para entender o acerto da sua presença num texto constitucional.

Poder-se-ia cogitar de que o termo dignidade teria na Constituição outro significado, em razão da laicidade do Estado ou por outras razões. O que acontece é que a dignidade da pessoa humana, característico conato do homem, não foi assim identificada, nem conceituada como acima se conceituou, pelas doutrinas que buscaram responder à pergunta “o que é o homem?” e “no que consiste o humanismo”?

JOHANNES MESSNER abre a sua monumental Ética Social com estas palavras: “... é legítimo, para não dizer obrigatório, abrir a teoria da sociedade com a resposta ao problema do homem.”1 E na investigação para a resposta alinha nada menos do que doze concepções de humanismo, entre as quais a dialético-materialista, que tem em Lênin o seu mais expressivo expositor. Lênin chamava “fideismo”, ou seja, “...uma doutrina que coloca o crer no lugar do saber”, a toda metafísica que se afastasse do materialismo dialético, argumento acaciano, pois o materialismo dialético também se calca em princípios sem fundamento, isto é, em dogmatismo.2

Daí que a dignidade é qualidade natural e espiritual do homem, não tendo outro sentido senão o que se lhe pode deduzir do até aqui exposto, tendo em consideração o homem brasileiro e sua sociedade. Ou seja: o atributo da pessoa humana consistente no exercício efetivo da sua capacidade de distinguir e praticar o bem e evitar o mal, pela utilização da sua racionalidade e da sua liberdade (sindérese), sendo o seu reconhecimento e respeito não mais que efeitos da sua presença em cada pessoa humana.

6. Método de interpretação e natureza da regra constitucional.

A hermenêutica do direito posto não poderia escapar da “setorização” dos estudos jurídicos, que no Brasil se acentuou com as reformas do ensino do direito na segunda metade do século passado e, tendo-se generalizado, hoje se pratica até nos concursos públicos para as profissões jurídicas. Será de apurar-se, em breve futuro, qual terá sido o resultado desse estreitamento, que prefere o estudo de partes ao conhecimento do Direito na sua unidade.

À visão superior, de que o direito positivo deve ser interpretado sob regras aplicáveis a todo o direito, com as derivações peculiares a cada um dos seus ramos, sugerem-se classes e métodos de interpretação autônomos. Assim é que ao lado dos quatro clássicos métodos – gramatical, histórico, teleológico e sistemático – surgem em profusão categorias próprias de direito constitucional, penal, etc. Para a lei constitucional, que nos interessa, então, os métodos vão-se afeiçoando às características das constituições escritas da atualidade.3

Falemos agora da natureza do preceito. O preceito constitucional que enseja este estudo designa simplesmente uma entidade elementar de um Estado de Direito, não sendo caso de buscar sua subsunção em qualquer das ideologias políticas dominantes nos tempos que correm. O contexto legal do primeiro artigo dessa Lei Fundamental exala a tendência liberal-democrática que marca a tradição institucional brasileira, com as atualizações dominantes no constitucionalismo moderno, relativas ao respeito à livre iniciativa e à intervenção excepcional do Estado no domínio econômico, ao sentido da função social da propriedade e, de resto, no reconhecimento dos direitos e garantias individuais preconizados como fundamentos do Estado de Direito.

Releva na regra em estudo o enunciado de um princípio autenticamente brasileiro, que se se não considera liberal no sentido político, denota e evidencia com nitidez a real liberdade que o homem e o povo desta terra trazem nas entranhas: a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, ao lado da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político, que estruturam e solidificam a sua incontestável soberania. Não diz o preceito, por exemplo, que o Estado, como entidade, “reconhece” a dignidade humana, nem que o Estado tem a dignidade humana como “meta” a ser alcançada, mas afirma, categórica e solenemente, que ele próprio provém da existência dessa dignidade, sendo cada pessoa humana, na sua integral dignidade, a causa da sua existência.

A configuração jurídica desta sociedade é a de um Estado criado para o homem com todo o acervo de prerrogativas que lhe confere a sua dignidade. Este, segundo nos parece, é o dado ou elemento condutor da interpretação que se pode fazer, aplicados, apenas, os métodos literal, teleológico e sistemático, porque, segundo nos parece, são os bastantes a nos conduzirem a uma conclusão coerente.

Coerência que enfrenta esta indagação: um Estado laico adota um conceito espiritual/racional para alicerçar a sua própria existência?

7. Um princípio espiritual/racional na Constituição de um Estado laico?

A resposta é afirmativa. Pois não existe – ou não parece existir – outro conceito de dignidade da pessoa humana a que tenha podido reportar-se o legislador constituinte brasileiro senão o aqui formulado, quando se considera que é a pessoa humana a destinatária de toda a vocação da sociedade, sendo o atributo da dignidade o acolhido por este grupo humano para fundar o seu Estado, tal como desde o seu nascimento acredita e o professa como verdade.

Historicamente, a doutrina oriunda da natureza do homem e do seu meio antecede à criação da sociedade organizada em forma estatal. Daí que, por direito natural, o Estado existe para servir ao homem. O Estado é meio, não fim; o Estado é criatura do homem, não seu criador. E porque são inúmeros os princípios e conceitos relativos à alma e à inteligência humanas, principalmente os concernentes à moral social e à vocação do homem, é que a lei positiva os acolhe.

Conclusão.

Impõe não se alienar do sentido transcendental da dignidade humana; e respeitar a verdade de que o Estado existe para alcançar os fins que constituem a vocação da pessoa humana, e não, jamais, submeter a pessoa e seus fins à vontade do Estado ou de ideologias ocasionalmente dominantes.

É de lembrar-se sempre a lição imortal de ULPIANO, no Digesto:

“OMNE IUS HOMINUM CAUSA CONSTITUTUM SIT”.
“Todo direito seja constituído por causa dos homens.”


1 JOHANNES MESSNER, Ética Social, trad. de Alípio Maia de Castro. São Paulo: Editora Quadrante e Editora da Universidade de São Paulo, s/d, pág. 10.
2 Ob. cit., pág. 16.
3 Nessa linha, apontam-se entre muitos outros: método jurídico, tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, científico-espiritual, científico-cultural, da comparação constitucional, normativo-estruturante, etc. etc.

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São Paulo, 16 de fevereiro de 2018

ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS

MILTON PAULO DE CARVALHO

Titular da Cadeira n. 56 da

Patrono: PLÍNIO BARRETO