Coube aos romanos com o incomparável senso jurídico que lhes era peculiar criar, no seu Direito Público, a noção de “Res Publica”(Coisa Pública), contraposta à de “Res Privata” (Coisa dos Particulares). Esta noção, devida ao gênio jurídico do Povo do Lácio, integrou para sempre a Cultura do Ocidente. E o corolário de tal noção é o de que não se confundem, nem podem se confundir, o interesse público com o interesse dos particulares.
Acrescento que superados os excessos individualistas e patrimonialistas da Revolução Burguesa de 1789, excessos que alcançaram a sua expressão legal no Código de Napoleão de 1804, hoje se assiste em toda a parte ao triunfo da ideia de que o interesse social deve se sobrepor ao interesse individual. Esta ideia aliás triunfou no vigente Código Civil Brasileiro, fruto do trabalho de uma comissão presidida pelo saudoso jus-filósofo patrício Miguel Reale.
Miguel Reale --- de quem tive a honra de ser aluno nos Cursos de Pós-Graduação do Largo de São Francisco --- jamais foi um liberal. Pelo contrário, não só integrou a Ação Integralista Brasileira fundada por Plínio Salgado em 1932, como nela teve um papel de destaque, ao ocupar o cargo de Secretário Nacional de Doutrina... ora, o Integralismo Brasileiro foi um dos muitos movimentos políticos e ideológicos da primeira metade do século passado, movimentos nacionalistas e espiritualistas, a proclamar a necessidade de uma “Terza Via”, ou seja, de um “Terceiro Caminho” que se afastasse ao mesmo tempo do Capitalismo e do Comunismo...
Ao justificar a postura favorável ao primado do social que adotou no novel Código Civil, o Professor Miguel Reale afirma sem rebuços que, se não houve o triunfo do Socialismo, houve o triunfo da Socialidade... isto significa que, sempre que houver uma oposição entre o interesse individual e o coletivo, deve prevalecer o segundo.
Estas considerações são propedêuticas ao seguinte enunciado: --- Todo aquele que estiver investido em um cargo público de mando, tem o dever, ético e jurídico a um tempo, de pugnar pelo interesse público, de se voltar para o bem comum, abstendo-se da suprema indignidade de usar o cargo público para defender os seus próprios interesses, e/ou os interesses dos seus familiares.
Neste momento temos nós, no Brasil, o deplorável espetáculo de Sua Excelência, o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, usar o cargo de mandatário supremo da República para proteger os interesses escusos, e até mesmo criminosos, do seu filho Flávio Bolsonaro... com efeito, o filho do Presidente é acusado de estar envolvido nas famigeradas “rachadinhas”, quando integrante da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. E o que faz o pai, vale dizer, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, diante de tal situação? Ele não hesita em acionar dois órgãos públicos, dois órgãos do Estado --- e não do seu governo em particular --- para defender os interesses certamente escusos, e quiçá criminosos, do seu filho!...
Com efeito, Jair Messias Bolsonaro, que cinicamente proclama que, se puder dar “filet mignon” aos filhos, dá-lo-á, tem a desfaçatez de usar dois órgãos públicos, a Agência Nacional de Inteligência, ABIN, e o Gabinete de Segurança Institucional, para defender o filho... e o que causa pasmo é que esta atitude eticamente indefensável do Presidente da República não esteja provocando a repulsa daqueles que deveriam reagir ao imoral contubérnio, à indecente amigação entre o “público” e o “privado”...
O General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, tinha e tem o dever de ofício de reagir contra o imoral comportamento do seu chefe. E no entanto, permanece o General Augusto Heleno num mutismo servil, que atenta contra a sua justa reputação de militar honrado e patriota. Ao se prestar aos desmandos do seu chefe delirante e atrabiliário, Augusto Heleno desprestigia ademais a gloriosa farda verde-oliva do Exército Brasileiro, e lança o descrédito sobre uma instituição --- a militar --- inatacável ao longo da História do Brasil.
Sucede que o General Augusto Heleno, ao se prestar ao triste papel acima enunciado, desmerece o seu próprio nome: --- “Heleno” foi o antepassado mítico dos “Helenos” ou “Gregos”, isto é, do povo que, pela mão do genial Aristóteles de Estagira, iria dar autonomia científica à Ética... e “Augusto”, um título romano prenhe de significado religioso, quer dizer “aquele que deve ser venerado com toda a piedade.” Se é incapaz de reagir à imoralidade do chefe, deve o General Augusto Heleno renunciar ao seu cargo. Isto, em nome da decência, da coerência e da sua própria biografia.
*Acacio Vaz de Lima Filho é Livre-Docente em Direito Civil, área de História do Direito, pela Faculdade de Direito de São Paulo, acadêmico perpétuo da Academia Paulista de Letras Jurídicas, associado efetivo e ex-conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, e autor de obras de Historia do Direito