Fonte: Gazeta do Povo - 23/7/2019

     Não há dúvida de que falar em palestras sobre simplificação, eficiência, ganhos de arrecadação para estados e municípios, e diminuição da carga tributária para o contribuinte agrada a todos, pois ninguém é contra tais princípios. No entanto, como não é factível uma reforma tributária constitucional que não altere substancialmente as relações fisco-contribuinte ou o equilíbrio federativo, é importante realmente ler o texto da PEC 45/19. Quem o fizer verá que ela centraliza poder tributário na União e pretende tributar tudo e todos em adição aos tributos já existentes, criando novos “impostos seletivos” federais e um adensado imposto nacional sobre o consumo. Tende a aumentar a carga tributária, a tornar mais complexo o sistema atual, a gerar conflitos e lesar a autonomia de estados e municípios.

      Em 2007, o governo Lula propôs uma complicada reforma tributária que causaria graves distorções no regime federativo e no bolso do contribuinte. Após debater na Comissão Especial com Bernard Appy, então antonio carlos rodrigues do amaral 1 96955representante do ministro Guido Mantega, a convite do relator, deputado Sandro Mabel, participei da redação do substitutivo – que, como reequilibrava as relações fisco-contribuinte, foi logo abandonado pelo governo.

     Em 2019, o texto de 2007 surpreendentemente ganhou nova roupagem, foi tornado mais audacioso e complexo. A PEC 45/19 objetiva introduzir um amplo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) que, futuramente, uma década depois de sua introdução, substituiria o IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. Criará, de imediato, “impostos seletivos” federais sobre tudo aquilo cujo consumo o governo queira “desestimular” pelo aumento da carga tributária. O Simples estaria comprometido, pois o custo tributário provavelmente o inviabilizaria.

     Não se pode engessar o sistema tributário por 10 a 50 anos como pretende a PEC 45/19

     Há uma certeza: além de tudo o que já paga hoje e pagará com os novos “impostos seletivos”, os contribuintes arcariam com mais um tributo, o complexo e engordado IBS, com as suas respectivas obrigações acessórias, sem qualquer benefício visível nos próximos dez anos. Diante de possíveis prorrogações, não há qualquer garantia de que, ao fim deste longo prazo, haveria de fato a eliminação dos cinco tributos, ou apenas a manutenção dos novos impostos criados pela PEC 45/19, em adição a tudo o que já existe!

     É impraticável supor quais seriam as alíquotas do IBS, que tende a aumentar a carga tributária pela amplitude da base de cálculo e os inúmeros entes que fixariam porcentuais (União, 26 estados, Distrito Federal e os mais de 5,5 mil municípios). As milhares de unidades federativas ajustariam a repartição na carga tributária por extensos 50 anos. Garante-se que, por décadas, não perderiam receitas tributárias, ajustadas pela inflação, sendo previsível que a conta iria para o bolso dos contribuintes.

     Lei complementar estabeleceria os princípios do IBS, que demandaria uma ampla regulamentação. Todos os entes federativos integrariam o “gestor nacional” do IBS. Assim, votariam na sua regulamentação e gestão cerca de 5,6 mil representantes! Não se sabe se por unanimidade (como no Confaz) ou por maioria (e quem, então, seria excluído). Antevendo que nunca chegariam a conclusão nenhuma, a PEC, então, atribui ao presidente da República a competência para substituir o gestor nacional e decretar o regulamento do IBS. A autonomia de estados e municípios seria ignorada. Não é justificável tamanha concentração de competência regulamentar em um único agente público. Causa séria lesão ao regime federativo e faz tábula rasa da autoridade de governadores, prefeitos e legisladores.

     Milhares de procuradores federais, estaduais e municipais representariam, judicial e extrajudicialmente, o gestor nacional. É difícil imaginar como seria a coordenação e fiscalização do IBS. Seriam abandonadas décadas de jurisprudência e iniciados múltiplos contenciosos na Justiça Federal, que afastaria os tribunais estaduais. Adotar o princípio do destino aos estados será um enorme desafio e causará desajustes nas contas públicas. Aplicá-lo aos municípios é uma tarefa colossal e mesmo irrealizável. Nada se fala sobre direitos fundamentais do contribuinte.

     A PEC 45/19 não simplifica, mas complica e onera o contribuinte. Sem solucionar os atuais empecilhos, criará outros problemas políticos, federativos, financeiros e práticos para o país. Tomará tempo e esforços preciosos até que sua inviabilidade seja percebida por todos, pois o texto não é bom para o contribuinte e menos ainda para estados e municípios. Por outro lado, é possível efetivamente melhorar e simplificar o sistema tributário, por exemplo, com a adoção de um número único de contribuinte pela União e estados, a harmonização das obrigações acessórias do ICMS, o aproveitamento imediato de créditos e outras necessárias reformas infraconstitucionais.

     Enfim, não se pode engessar o sistema tributário por 10 a 50 anos como pretende a PEC 45/19. Os próximos anos continuarão a produzir revisões importantes nos modelos de trabalho e de prestação de serviços, nas interações globais e nas relações políticas e sociais em face de novas e imprevisíveis tecnologias. É preciso aprimorar no curto e médio prazo o ambiente de negócios e a geração de empregos, e não apenas criar, no presente, tributos novos, complexos e onerosos, em troca de uma promessa, futura e distante, de que algo poderá efetivamente melhorar para os cidadãos e as suas empresas.

Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, advogado tributarista, é doutor pela USP, LL.M. e especialista em Tributação Comparada e Internacional pela Universidade de Harvard, professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e visiting scholar na Columbia Law School (Nova York)."