Como o polímata, morto há 1 século, ainda pode inspirar uma estudante de direito em Salvador, escreve Roberto Livianu.
Quarto ano de direito em Salvador, a aluna bolsista Joana conservava o sonho de justiça, que a levou com extremas dificuldades à faculdade. Devorava os livros sugeridos pelos mestres e procurava ir sempre além. De todas as descobertas, talvez a que tivesse impactado mais em sua caminhada tenha sido a trajetória do igualmente baiano Ruy Barbosa, cuja morte acaba de completar um século, cuja existência foi marcada pela vigília permanente em prol da civilidade democrática, das liberdades civis, dos valores republicanos.
Joana nutria profunda admiração pela luta de Ruy –advogado, deputado provincial, deputado geral, senador, ministro de Estado, candidato a presidente da República em mais de uma oportunidade, diplomata, escritor, estudioso do direito e jornalista. Seu legado é de dedicação à construção de um país com verdadeira identidade democrática e republicana. Como Ruy lidaria com a tentativa de apropriação do verde-amarelo por um ex-presidente, como se pertencessem tais cores a si ou a seu grupo? Que chegou a afirmar que somente Deus o retiraria da cadeira presidencial, como se não existisse democracia, república e muito menos o povo, privado de celebrar o bicentenário da independência, que se transformou em calendário de eventos de campanha, custeados com dinheiro público? Joana perdia-se a imaginar a grandiosidade da existência de Ruy, com sua luta de todos os dias por enraizar perenemente a ética, a liberdade, a democracia e os valores republicanos acima de interesses privados. Foi figura nuclear da abolição da escravidão, da moldagem da Constituição de 1891, militante em prol dos direitos sociais e lutou pelo voto feminino. Tudo isto o levou a ser o patrono do Senado, do Tribunal de Contas da União, dos advogados.
Mas a luta de Ruy certamente o deixaria estarrecido com a liberdade falsamente etiquetada pelo deputado Daniel Silveira, que fez pregação contra o Estado Democrático de Direito argumentando estar abrigado na liberdade de expressão, como se ali tudo coubesse.
Mas, nem tudo é ruim. Dezesseis milhões de reais em diamantes escondidos numa escultura de cavalo e não declarados à Receita Federal, numa mochila de um ajudante de ordens da Presidência. Um suposto “presente” dos reis sauditas, destinado à ex-primeira-dama, que em 8 ocasiões o ex-presidente tentou liberar.
A Receita Federal inspirou-se em Ruy Barbosa e resistiu com galhardia, não se deixando intimidar pelo “sabe com quem você está falando?” A fortuna em diamantes está retida no Fisco até hoje e graças à revelação feita pela imprensa corajosa e investigativa, as providências já começaram a ser tomadas.
Joana começava a compreender a ética republicana e a origem dos princípios constitucionais da moralidade administrativa e da impessoalidade, semeados decisivamente por Ruy. Como será que ele lidaria com o fato de um ministro de Estado que, em 2023, requisita com urgência jatinho da FAB e diárias para supostamente realizar suas funções administrativas, mas, na verdade, dedica-se na viagem a suas paixões pessoais, ligadas à criação de cavalos?
Que deixa de declarar patrimônio de mais de R$ 2 milhões ao TSE ao se apresentar candidato a deputado federal, além de usar emendas do “Orçamento secreto” para beneficiar preponderantemente terras de sua família? E o presidente da República nem ao menos o afasta do cargo, mesmo diante de pressões convergentes da sociedade civil, da imprensa e até da presidente de seu próprio partido.
Ela pensou: se Ruy aqui estivesse, certamente seria defensor ardoroso do modelo de Ministério Público esculpido na Constituição de 1988, com poder de investigação criminal independente, conforme reiterado no Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional, sem cogitar ideias ultrapassadas, do século passado, na direção de serem tolerados certos níveis de corrupção como “graxa” necessária para que o sistema funcione.
Ruy certamente defenderia sempre a preservação da autonomia do MP. Hoje ela é preservada com o respeito à lista tríplice votada pelos membros do MP. Se não for assim, o presidente da República escolhe livremente quem o fiscalizará, o que, obviamente, pode trazer riscos de fiscalização ineficiente.
Como Ruy lidaria com esta novidade que acaba de ser divulgada –a Bolsonaro Store, para vender calendários, canecas e outros penduricalhos cultuando a imagem de um ex-presidente da República que foi vencido nas eleições e sequer teve a decência e a compostura de transmitir a faixa presidencial ao vencedor? Pior: reuniu, durante a campanha, embaixadores para disseminar inverdades sobre o funcionamento do sistema de urnas eletrônicas, com o qual se elegeu 6 vezes deputado federal e jamais questionou.
Joana mergulha profundamente nos pensamentos e tenta imaginar como seria para Ruy Barbosa viver no Brasil de hoje, em que um senador é surpreendido com dinheiro nas nádegas, e simplesmente não é punido pelo respectivo Conselho de Ética. Num país em que se perdeu a linha divisória entre o público e o privado, em que o nepotismo é louvado como virtude, assim como a cultura do compadrio. Em que se aprova na Câmara um projeto que pretende regular o lobby, autorizando particulares a oferecer presentes de luxo a particulares, além de convidar a participar de feiras ou seminários nababescos, dentro da lei.
Em que a regra é o uso do poder por seus detentores visando ao autobenefício, como a cogitação de subjugar o STF à Câmara em decisões não unânimes ou a PEC da vingança contra o Ministério Público, assim como a deliberação formal do Senado (do qual é patrono) sobre a semana de 3 dias, e o mês de 3 semanas.
No qual projetos são aprovados “de boiada” sem aprofundamento de debate, com a banalização do expediente da “urgência de votação”, sem ouvir a sociedade. Em que leis em vigor há pouco tempo podem ser mudadas (“leis líquidas”) para acomodar interesses de ocasião. Onde a quantidade de emendas à Constituição em uma legislatura (4 anos) equivale à de 233 anos nos Estados Unidos. Será que alguém daria ouvidos a ele ou seria tratado como um louco pregando no deserto?
Ela fica imaginando como Ruy Barbosa encararia a soltura pelo STF de um ex-governador confesso, condenado em 23 processos por corrupção a uma pena de mais de 400 anos de reclusão. Será que se Ruy tivesse aquela caneta, determinaria esta soltura? O senso republicano de Ruy certamente o levaria a defender seriamente mandatos para os ministros dos tribunais superiores.
Joana sempre abominou a ideia de entronarmos heróis, sintoma de fraqueza de nossa democracia e carência de nosso povo. Mas, por um instante pensou –se existiu alguém neste país que mereceria a capa de herói brasileiro, não seria jogador de futebol ou qualquer esportista, cantor, juiz ou promotor. Seria o nosso polímata Ruy Barbosa, o justo vigilante baiano incansável da democracia republicana brasileira.