A intervenção Federal decretada no Estado do Rio de Janeiro é sui generis. O seu fundamento está no inciso III, do art. 34 da CF, ou seja, necessidade de “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.
Nos termos do Decreto interventivo de nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, a intervenção limita-se à área de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, conforme prescrição do § 1º, do art. 1º do Decreto Presidencial. Foi nomeado como interventor o General de Exército Walter de Souza Braga Neto tendo o referido cargo de interventor a natureza militar.
É certo que a Constituição permite especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução da intervenção.
Porém, essa intervenção limitada à área de segurança pública delimitada no invocado Capítulo III, do Título V da Constituição, vale dizer, no art. 144 do Texto Magno, não terá a eficiência necessária, nem a esperada eficácia. Conferiu ao interventor o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública previstos no art. 144 da CF, mas não lhe foi conferido o poder de polícia que é inerente ao poder público, consistente na intervenção, no interesse geral da sociedade, na propriedade e nas liberdade dos indivíduos impondo-lhes comportamentos omissivos ou comissivos respeitados os limites da lei. No caso, a divisão de poder político do Estado do Rio figurando, de um lado, o governador com uma parcela maior desse poder, e de outro lado, o interventor federal com parcela menor desse mesmo poder, restrito ao setor de segurança pública poderá, em tese, gerar conflitos de atribuições.
É que a segurança pública não se constitui em um órgão estatal isolado que possa desenvolver as suas atividades, sem interação com os demais órgãos do Estado.
Só para ilustrar, a administração dos presídios, por exemplo, é atribuição da pasta da Secretaria de Justiça. Ela não está incluída no rol de órgãos previstos no art. 144 da CF que versa sobre a segurança pública. E como sabemos nos presídios a prática de delitos é uma rotina. Vai desde entrega de entorpecentes, celulares para comunicação entre bandidos presos e aqueles fora da prisão etc. até as chacinas de presos por diversos motivos.
Exatamente porque o exercício das atribuições inerentes à segurança pública demanda recursos materiais e financeiros, o Decreto de intervenção consignou que o interventor poderá requisitar “os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção” (§2º do art. 2º). É bom que se esclareça que o vocábulo “requisitar” significa solicitar com sentido de ordem emanada da autoridade competente.
Só por esse § 2º já se pode notar a dificuldade de natureza orçamentária, tendo em vista o princípio constitucional da legalidade das despesas. Se o orçamento anual do Estado do Rio de Janeiro foi elaborado e aprovado de conformidade com as prioridades eleitas pelo governante e de conformidade com as diretrizes constantes da Lei de Diretrizes Orçamentárias, as verbas orçamentárias destinadas ao setor de segurança pública podem ser insuficientes à luz da nova estratégia de combate à criminalidade aventada pelo interventor federal. Poderá haver necessidade de remanejamento de verbas por meio de transposições e transferências de verbas de uma dotação para outra, bem com a abertura de crédito adicional especial. Tudo isso deve ser feito com rigorosa observância dos princípios orçamentários previstos na Constituição e das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal, o que dificulta a geração de novas despesas no curso da execução orçamentária.
Um governador que tenha perdido o controle da segurança pública ou das finanças públicas (art. 34, III e V da CF) não pode continuar no cargo ao lado do interventor federal que não é seu subordinado como são os Secretários de Estado.
A presença do governador do Rio no ato da assinatura do Decreto de intervenção para prestigiar o ato confere o caráter de um convênio entre o Estado do Rio e a União para combater a criminalidade naquele Estado. No mínimo aproxima-se da figura de uma “intervenção federal consensual” que não tem previsão constitucional.
Não é preciso ser um bom entendedor para saber que o convênio então existente entre o Estado do Rio e a União no setor de segurança pública (Garantia de Lei e da Ordem) não produziu os resultados esperados por causa das ingerências do Governo do Estado, sob pena de presumir a falta de capacidade operacional das Forças Armadas.
Ora, se isso for verdadeiro nada assegura que a presença das mesmas Forças Armadas, agora sob o rótulo de intervenção militar, irá restabelecer a ordem pública ferida. Se o restabelecimento dessa ordem pública não tem motivação na falta de capacidade operacional das Forças Armadas, o instrumento jurídico apropriado para o equacionamento dessa questão é aquele previsto na CF, ou seja, a intervenção federal com o afastamento do Governador. O interventor federal exerceria em sua plenitude as atribuições inerentes à Chefia do Poder Executivo. O interventor deve ter necessariamente o poder de proceder a recomposição dos quadros da polícia do Rio (PM e polícia civil) com expurgo de elementos atolados no mar da corrupção que impera nos meios policiais, inclusive, com o poder de extirpar a corrupção em outros órgãos fora da segurança pública, mas que tenham vinculação direta ou indireta com os atos de corrupção praticados na área da segurança pública.
Diante dessa singular intervenção federal surgiu uma corrente de pensamento sustentando que o fim visado pelo Decreto interventivo é de natureza política. Um dos objetivos seria a de suspender a votação da reforma previdenciária, provocando a incidência do § 1º do art. 60 da CF até que o governo consiga garantir o quorum necessário à sua aprovação. Obtido o quorum faltante, a intervenção seria suspensa.
Fortalece essa tese o fato de o Senhor Presidente da República ter anunciado um dia após ter assinado o Decreto de intervenção a criação do Ministério da Segurança Pública que não se insere no âmbito de competência da União. Esse novo Ministério só contribuirá para aumentar as despesas do Estado no momento em que o governo está empenhado em diminuir o rombo nas contas públicas.
A singular forma de intervenção adotada pelo governo central, além de não erradicar a bandidagem que se incorporou na vida da sociedade carioca, poderá ocasionar a contaminação dos efetivos das Forças Armadas que passam a lidar diretamente com os perigosos infratores da lei que elegeram a corrupção como uma bandeira para sua perpetuação no caminho da criminalidade.
Enfim, somente o futuro apontará a verdadeira causa da intervenção. Se o banditismo daquele Estado do Rio continuar durante e após o término da intervenção estará comprovada a tese de que o Decreto interventivo não visava de fato “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.
* Acadêmico da Academia Paulista de Letras Jurídicas ocupando a cadeira nº 20, cujo patrono é Ruy Barbosa Nogueira.