Fonte: Poder 360 - 9/5/2023

Os racismos nossos de cada dia diante da PEC da anistia aos partidos políticos, escreve Roberto Livianu.

Roberto Levianu a

João Alberto, espancado cruelmente por seguranças privados em um estacionamento de um hipermercado, e o congolês Moïse, em um quiosque de praia no Rio de Janeiro, tiveram o mesmo desfecho trágico. Mais recentemente, a passageira Samantha, tentava ir de Salvador para São Paulo em voo de carreira e foi constrangida diante dos demais passageiros, sendo obrigada a desembarcar, sob o argumento de que sua mochila teria tamanho fora do padrão. São alguns episódios que evidenciam o quanto o racismo ainda pode seguir presente e latente entre nós.

João Alberto e Moïse foram espancados até a morte –a violência e a criminalidade vivem momento extremamente agudo e exacerbado e a impunidade é fator estimulante. Mas, o ingrediente de serem negros, indiscutivelmente contribuiu decisivamente para o desfecho de ambos os episódios. João Alberto e Moïse foram mortos em virtude da cor da pele –inúmeros estudos relacionados à violência e à criminalidade têm confirmado tal conclusão, infelizmente.

Samantha, de outro lado, embarcou em Salvador com uma mochila grande. E quem de nós já não viajou com uma bolsa de grandes dimensões, pouco maior que o permitido, ou com 2 volumes? A companhia aérea compara usualmente todos os volumes que os passageiros trazem consigo? Fez isto no voo em que estava a passageira Samantha?

Por que ela, exatamente ela, uma mulher negra, e apenas ela, recebeu a determinação tão drástica e nada usual de desembarcar do avião diante dos demais passageiros, sendo humilhada, em comparação com os demais? Será que nenhum outro passageiro traria consigo uma bolsa maior que o tamanho permitido naquele voo proveniente de Salvador? Detalhe: sua mochila já havia sido acomodada no compartimento interno de bagagens, pelo que se divulgou amplamente. Ou seja, não causava estorvos.

E ampliando o alcance de nosso olhar, qual seria o motivo de tão implacável campanha racista, de tamanha perseguição ao jogador de futebol Vinícius Júnior (o Vini Jr.), que atua na Espanha e na seleção brasileira, que ostensiva, repetida e permanentemente é alvo de atitudes desta natureza por parte de torcedores?

Tais ofensas não têm ensejado punições por parte da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF).

Depois de investigação acerca de gritos racistas de “você é um macaco, Vinícius, você é um macaco”, dirigidos ao brasileiro antes e durante a partida do Real Madrid contra o Atlético de Madrid, em 18 de setembro de 2022, a La Liga informou que o promotor local de Madri não prosseguiu com o caso porque os gritos estavam dentro do contexto de outros cânticos “desagradáveis ​​e desrespeitosos” durante uma “partida de futebol de máxima rivalidade”.

Piara Powar, diretora-executiva da Fare Network, organização criada para combater a discriminação no futebol europeu, afirma que as ligas de futebol e as autoridades da Espanha estão lamentavelmente “lavando as mãos” em relação a tais incidentes. Para ela, seja por desinteresse ou falta de compreensão do futebol e da gravidade dos fatos, os promotores locais não estão lidando adequadamente com as investigações.

Vini Jr. tem demonstrado extraordinária maturidade e altivez diante de tão horrenda e inaceitável campanha racista da qual tem sido alvo, pelo simples fato de ser negro. Igualmente são vítimas Samantha, João Alberto e Moïse, em dimensões obviamente distintas.

Como na letra da música de Caetano, Vini Jr. tem sido “tranquilo e infalível” como Bruce Lee, apesar de tudo e todos, do alto de seus 22 anos, com um futebol que seu técnico Carlo Ancelotti define como o mais decisivo de todo o planeta. Mas nem sempre são esses os desfechos: Samantha, mesmo tendo coragem, foi obrigada a deixar a aeronave; João Alberto e Moïse foram assassinados de forma impiedosa e covarde.

As injustiças lamentavelmente se mantêm vivas e presentes à luz do dia e na calada da noite. Para as minimizar, ações afirmativas são debatidas e aprovadas no Congresso e sancionadas pela Presidência da República, assegurando espaços de poder para negros, além de mulheres, na legislação eleitoral, assim como a imposição de transparência e regras de financiamento na política.

Pois, eis que num passe de mágica, todas as construções sociais protetivas das minorias podem ser demolidas pela PEC 9 de 2023, que os partidos pretendem ver aprovada –a anistia global, a maior da história, da total ruptura da ordem jurídica, do total desrespeito ao sistema democrático.

Eu, você que me lê e todos e todas devem cumprir a lei. Menos os partidos políticos, que pretendem ser a única exceção –querem ser elevados à categoria de deuses, não sujeitos à lei, intocáveis, acima dela. Neste momento de busca da burla à lei, petistas, bolsonaristas e outros grupos (são poucas e honrosas as exceções) dão as mãos irmanados por mais bizarro que isto possa parecer, esmagando os princípios da moralidade, legalidade e prevalência do interesse público.

É o que se lê nas assinaturas de apoio à PEC 9 de 2023, onde se quer fazer com que partidos não se sujeitem à lei. Todos os demais seres, sim, menos os partidos políticos. Cabe a nós resistir, constrangê-los e repudiar com veemência tal patifaria, que contraria de forma brutal e sórdida a Constituição Federal.

Roberto Livianu, 54 anos, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, e a Academia Paulista de Letras Jurídicas. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Rádio Justiça, do STF. Escreve para o Poder360 às terças-feiras.