Juca 64919Mestre em Direito pela UFPA. Doutor em Direito do Estado pela USP e em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, Livre Docente em Direito Financeiro pela USP. Professor Titular da Faculdade Auntônoma de Direito de São Paulo – FADISP, na Pós Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado). Pesquisador da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior –FUNADESP. Pós Doutorado na Universidade de Salamanca (Espanha). da Academia Paulista de Letras Jurídicas –APLJ. Juiz do Trabalho em São Paulo.

Lauro Ishikawa

Mestre e Doutor pela PUC/SP. Coordenador de Extensão e Professor das Faculdades Integradas Rio Branco. Coordenador Adjunto e Professor da Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP. Coordenador dos Cursos de Extensão do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – UNIFMU. Pesquisador da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular – FUNADESP. Advogado em São Paulo.

Vivemos o que podemos chamar de período da constitucionalização do direito, no qual cada vez mais e mais matérias são incorporadas ao texto das constituições, alçando, assim status constitucional, migradas desde a esfera das leis ordinárias.

O fenômeno é complexo e desafiador. Tem merecido encômios de muitos e críticas severas de outros, ambos com respeitável fundamento argumentativo. Diante da realidade posta, que é a constitucionalização, o que se entende caber fazer é compreender o fenômeno, identificar suas causas, aferir seus objetivos e avaliar as conseqüências, tudo com serenidade e sem apegos apaixonado por modelos estabelecidos.

Não pode ser ignorado e muito menos negado o caráter histórico do direito, malgrado este seja condicionante e não determinante exclusivo. E se examinar-se o tema sob o enfoque da historicidade será perceptível que as características da sociedade nas últimas décadas problematizaram fatos novos, categorias novas (porque antes inexistentes) e, em conseqüência, construíram formulações que procuram ser ajustadas para responder a estas demandas.

Veja-se num brevíssimo escorço, mais lógico do que cronológico (excluída a periodização), o que se pode considerar como sendo o processo evolutivo do constitucionalismo.

Tomando como ponto de partida que as sociedades problematizam as coisas a partir das necessidades postas, portanto daquilo que precisam enfrentar no momento, tem-se que daí desenvolvem seus esforços buscando elaborar respostas e, a partir delas, responder às mesmas necessidades postas, senão vejamos.

Num período que podemos, grosseiramente, rotular de proto histórico[1], o problema fundamental estava na busca pela organização do poder político e do seu exercício, buscando estabelecer mecanismos de contenção, limitadores do que poderia se considerar como excessivo e em conseqüência abusivo. Neste ponto, é possível ver-se a formação das relações de poder lançando as bases legitimadoras na aceitação (formação de consensos básicos), vindo daí a inspiração para a experiência inglesa da Carta de João sem Terra e da Relação de Direitos, do que buscamos destacar dois pontos fundamentais: a necessidade da aceitação e concordância com os tributos, que significa embrionariamente consenso político e aceitação, em suma, legitimação do poder e seu exercício; e a enumeração de direitos que significam, sobretudo e principalmente, instrumental capaz de manter o consenso, limitando concreta e objetivamente o exercício do poder político, pondo-o nos limites do aceito e contrapondo-se ao considerado excesso e abuso. Com efeito, esta construção atendeu às necessidades de uma etapa histórica e foi capaz de cumprir as finalidades para a quais foi proposta.

Na etapa seguinte, tal ordenação estrutural e espartana do poder político se revela insuficiente. O aumento significativo da complexidade da organização social (considerados os padrões históricos) provoca a exaustão do modelo, especialmente porque a consolidação evolutiva do processo político acentua a concentração forte do poder, que busca se legitimar com uma justificação de cunho ideológico, sendo exemplo ilustrativo e esclarecedor a chamada doutrina do direito divino, na qual se justifica e fundamenta o poder do soberano em delegação da divindade (algum traço da herança romana da divinização de Cesar), de sorte a que seja o intérprete o explicitador da vontade divina.

A concentração de poder absoluto, contraposta a ampliação da sociedade e a divisão social do trabalho e da produção (no sentido de Durkheim), quedam absolutamente incompatíveis, forçando a ruptura, remarcada pela violência explosiva na Revolução Francesa, que sintetiza (grosseiramente) que a liberdade individual é valor em si mesma, portanto incompatível com a submissão severa a uma vontade individual, ainda que se considere este indivíduo como um restrito grupo que detém e exerce arbitrariamente o poder político, reservando-se privilégios que passam de naturais a odiosos, decorrendo disso uma massiva exclusão demográfica e econômica. Parece-nos que o eixo central desta mudança é a descoberta da existência de um poder econômico, centrado no controle real e direto dos meios de produção e das riquezas, porém sem coincidência com o poder político, com o que é um poder de exercício impossível, negando sua própria natureza de poder como fato (exercício concreto).

A ruptura busca a coincidência e a concentração do poder econômico com o poder político, daí porque a Revolução Francesa é Revolução Burguesa, os detentores dos meios de produção em aliança com o resto da população, pela violência, desmontam o antigo regime, e buscam deter para si parcela significativa do poder político. A justificação ideológica do processo está na racionalização iluminista da explicação da realidade nova, sintetizada na trinômia Igualdade, Liberdade e Fraternidade, que deve ser entendida nos seus termos e no seu tempo: quebra de estatutos particulares e estabelecimento de estatuto único para todos; ruptura com a dominação espoliadora da aristocracia não produtora, e por isto parasitária, mas controladora, e como decorrência o reconhecimento de relações entre os indivíduos e algum grau de compartilhamento de responsabilidades, com a identificação mais clara da coisa pública como sendo interesse de todos, da sociedade no seu conjunto, refletindo matizadamente sobre os interesses dos indivíduos.

Esta ruptura desenvolve um discurso estruturado e busca lógica interna. Neste discurso, emerge a idéia da legalidade, como sendo a submissão de todos à lei (mesma lei) porque expressão da vontade geral, arrimando-se que, submetido a vontade geral, o individuo não estava submetido a nenhuma vontade individual, e, portanto, isto garante sua liberdade individual que se materializa nas liberdades públicas (passo inicial em nosso ver da teoria dos direitos fundamentais tal como os conhecemos), lançadas, assim, as bases para a organização renovada da sociedade.

Esta é a idade do que podemos chamar de constitucionalismo político, isto porque, novamente o problema posto é a necessidade de organizar de maneira mais racionalmente marcada a política e o seu processo. Não é sem razão que o Direito Constitucional, desde então e durante largo tempo, foi chamado de Direito Político (é a matriz francesa).

Nesta concepção, cabe ao Direito Constitucional organizar e disciplinar a organização, acesso e exercício do poder político, remetendo todo o universo restante das relações sociais ao direito infra constitucional, oferecendo a tutela constitucional apenas ao estabelecer a separação dos poderes, disciplinando, assim, a produção normativa; daí a constituição desempenhar o papel de norma de produção de normas.

Para as relações privadas, gizando tudo o que não pertinente ao político, havia um grande estatuto geral que era o Código Civil (constituição da vida privada). Foi à época do liberalismo clássico.

Nesse tempo do constitucionalismo político é ilustrativa a palavra de Bourdeau[2] de que:

“Du moment où l’État procede La distinction entre Le pouvoir et sés agents d’exercise...c’est-a-dire une règle dèterminant le mode de désignation, lês fontiones assignées aux governants, oires lês objectifs quy’il poursuient..”

Todo o restante da vida social, as relações individuais restritas, pertenciam ao campo civil, cujo traço fundante era a “pacta sunt servanda” derivada da autonomia da vontade (formalmente livre e igual). Neste universo é importante destacar, que cabia ao Estado Liberal Clássico, organizado pelo Constitucionalismo Liberal Clássico a que nos reportamos, garantir o direito fundamental de propriedade e o cumprimento dos contratos, mantendo, assim, a ordem interna; e cuidar das relações estrangeiras e da defesa externa, para tanto, cumprindo-lhe manter Polícia e Justiça e Forças Armadas e Diplomacia. Considerados estes aspectos, sendo tais parâmetros rígidos, estaria consubstanciado o abuso de poder e a invasão intolerável do Estado na liberdade individual, quando ultrapassado tais limites.

Esta etapa dura até a Revolução Industrial, quando acontece uma primeira viragem significativa, advinda da radical alteração do processo produtivo, da organização econômica e do surgimento da sociedade de massa.

A incorporação da força valor e mecânica no processo de produção a transforma em produção de massa, com fragmentação do processo produtivo; e a concentração produtiva, ocupa um exército de reserva de trabalhadores, consolidando a monetização da sociedade (dependência da moeda), e leva a substituição do valor de uso pelo valor de troca, fazendo a invasão deste modo de produção à agricultura[3].

A mutação grande e rápida promove a quebra da ordem estabelecida e a superação dos paradigmas e referências de então, com o que se abre vigoroso conflito, iniciando-se na Inglaterra[4]. Tal quebra se dá de maneira violentamente conflitiva, descrevendo a história com destruição e perda de vidas. Neste tempo, também se vem construindo uma alternativa marcada pela radicalidade, originária das formulações de Karl Marx, que situado em Londres, epicentro da tempestade e caixa de ressonância, com a sua Internacional, contribui significativamente para acender as massas revoltadas. A Alemanha também começa a entrar em chamas.

Não baste a agitação (interna) nos Países da Europa, eclode a I Guerra, com potencial destrutivo assustador pela incorporação tecnológica às ações bélicas, e, a Alemanha, para acabar com a frente oriental e tirar a Rússia de seus flancos, ajuda a financiar e apóia o retorno àquele País de um exilado na Suiça, Wladimir “Lênin” Ilich, que com apoio une-se a Stalin, Trotsky e outros, fazendo a Revolução Russa. É importante destacar neste particular, que a grande questão posta não foi propriamente a Revolução em si, que foi capaz de derrubar o czarismo, mas, outro aspecto pouco discutido, a possibilidade de “a onda operária derrubar um governo, constituir outro e, mais do que isto, efetivamente exercer este governo de maneira duradoura”.

O problema então posto foi o de fazer frente ao quadro conflitivo. A resposta formulada ao tempo se pode associar a ação da Igreja Católica Romana, com a edição da Encíclica Rerun Novarun (Coisas Novas) que, com mais ou menos sutileza, lança as bases do solidarismo cristão, propondo a revisão dos parâmetros e referências a partir da fraternidade cristã, fazendo o contraponto com a ruptura violenta marxista (a violência e o motor da história). Talvez com algum grau de inspiração nisto, o mundo laico também busca um caminho, e o faz com o matiz de Weimer, que incorpora uma “ordem econômica e social” no seu texto, trazendo de maneira organizada e sistematizada um estatuto constitucional dos fatores de produção, como o denomina Manoel Gonçalves Ferreira Filho no seu Direito Constitucional Economico[5]. É, assim, dado o nascimento às normas de organização da economia e de proteção ao trabalho, surgindo assim, como com argúcia pontua Gastão Vidigal na sua Introdução ao Direito Econômico, os dois irmãos siameses, o Direito Econômico[6] e o Direito do Trabalho, ambos com raízes constitucionais fortes e explícitas, nutrindo-se diretamente da ordem constitucional econômica e social. É o nascimento do Constitucionalismo Social.

É relevante notar aqui, que se rompe um paradigma assentado. O Direito Político, qual seja o do Direito Constitucional como direito da organização política, como estatuto do poder, do qual deriva uma classificação de matérias, a materialmente constitucional, porque envolvendo o político, e a formalmente constitucional, porque está no texto constitucional pura e simplesmente (quase como intrusa). Isto acontece pela atribuição de estatuto político à chamada questão social, que consiste na constatação da necessidade social, e portanto política, do estabelecimento de estatuto em nível constitucional para os fatores de produção (como antes referido). É preciso deixar claro que na essência o fenômeno que ocorre é o reconhecimento da temática econômica e social como cláusula relevante do pacto político.

Temos a esta altura, que se pode considerar a constituição como sendo “instrumento jurídico do pacto político”, e como tal, considerando-se o alargamento do alcance deste pacto, que vai além da organização do estritamente político, espraiando-se para outros campos da vida social, o natural e lógico, é a incorporação por esta de matéria relativa às relações privadas ao elenco de cláusulas deste pacto.

A experiência histórica, tanto do entre guerras, mas, principalmente, no pós II Guerra, conduziu ao aprofundamento desta viragem na concepção constitucionalista. Primeiro porque ganha destaque especial a valorização das instituições democráticas e seus mecanismos, em decorrência da traumática época autoritária e totalitária dos modelos nazi-fascistas que pontificaram no entre guerras e concorreram vigorosamente para a eclosão do segundo conflito mundial. Depois, a necessidade de reconstrução institucional e econômica da devastação consectária do choque levaram a acentuação da necessidade de apoio social, de assistência e busca de bem estar social.

É importante acentuar que o eixo da mudança da qual se cogita está na alteração havida do Estado Liberal clássico, marcado pelo abstencionismo sócio-econômico, pelos estreitos limites de atuação antes demonstrados, fundados no exercício do poder de polícia, para um Estado progressivamente intervencionista, atuante na economia, regulador de atividades, buscando corrigir desigualdades, procurando construir equilíbrio nas relações sociais, além da pura e simples contenção da conflitividade.

O aspecto mais relevante é que o Estado pós 2ª Guerra acolhe as referências da planificação econômica, não importando aqui a forma ou matiz, mas, invariavelmente passa a atuar na economia, direta ou indiretamente, como ator econômico na figura do estado empresário, indutor substancial do desenvolvimento econômico, ou como regulador de atividades e serviços.

É ponto fulcral da matriz nascente a percepção e a concepção estratégica da economia e da sociedade. A forma de relacionar-se entre o Estado e a economia adquire a perspectiva de estratégia, não mais acompanhando o curso das coisas, mas, interferindo nelas, e mais do que isso, tentando direcionar-lhes o curso; manifestando opções e escolhas entre setores da economia. O Direito Econômico, estatuto jurídico do meio de produção capital, ganha corpo, exatamente buscando disciplinar, regular e definir as ações estatais e mesmo influir nas ações dos particulares (agentes econômicos), estimulando umas e inibindo outras; estabelecendo monopólios estatais e incorporando recursos ao patrimônio público para controlar atividades e serviços através de instrumentos administrativos de permissão, concessão e outorga, de sorte a incorporar recursos e iniciativas particulares, mas com algum grau de tutela estatal, em princípio norteada pelo interesse geral.

Na outra ponta, se vê reconhecida a tutela do trabalho e do trabalhador, a intervenção impondo regras mínimas de garantias ao trabalhador, com a busca pela construção de compensações para a igualdade real ou substancial, patenteando, assim, a insuficiência então vigente da igualdade formal.

Integra o eixo desta mutação a técnica da limitação heterônoma da autonomia da vontade e o estabelecimento de direitos reconhecidos e inegociáveis.

Nota-se no processo de reconstitucionalização da Europa, exemplificativamente Itália, França e Alemanha, a inserção de normas e o estabelecimento de princípios de valorização do trabalho e da dimensão social da economia e das riquezas, em clara tentativa de estabelecer conexão entre o econômico e o social, marcada pela redistribuição das riquezas, diminuição das distâncias sociais e econômicas entre os indivíduos, e, no curso do processo evolutivo, a expansão, também progressiva, do universo dos direitos humanos fundamentais, sendo possível perceber que a tendência é a de reposicionamento do tratamento jurídico do ser humano, atribuindo-lhe mais centralidade.

Vem daí a consolidação da legitimação da intervenção estatal no domínio econômico e social, e também a legitimação de que se direcionem recursos públicos em atividades de benefício social e de assistência às parcelas pobres da sociedade, de forma mais ou menos explícita de transferência de rendas entre as diversas camadas da sociedade.

É possível dizer que se acentua a instrumentalidade do Estado. É fato que ele continua a desempenhar o papel de intermediário e árbitro soberano e imperativo da conflitividade na sociedade, mas, adquire gradativamente outros papéis de importância na influência sobre a economia e na ação das políticas de caráter social.

É importante acentuar que este processo constitucional e político não foi sincrônico, ao contrário, bem diacrônico, porque carrega consigo os traços históricos e evolutivos de cada sociedade, curvando-se às vicissitudes próprias dos respectivos processos sociais; daí porque as experiências constitucionais dos diversos países apresentam características próprias, ainda que perceptível o intercâmbio de influências recíprocas.

É importante mencionar duas experiências constitucionais mais tardias, destacando a influência direta ou indireta que exerceram nobre a vida brasileira.

Estas duas experiências, pertinentes ao mundo ibérico, com o qual os traços de ligação com o Brasil são profundos, tanto explícitos, quanto sutis, em nosso ver são tardias porque a mutação política em Portugal e Espanha aconteceram diferidamente em relação ao restante da Europa, eis que seus regimes e modelos políticos, inegavelmente autoritários, sobreviveram bem mais, além do que, não estiveram diretamente envolvidas no 2º conflito mundial, embora, mantendo neutralidade formal e ambígua, não se mantiveram na realidade tão neutras assim.

A Portugal estadonovista de Salazar, durante a guerra, se manteve neutra, com relações comerciais com os dois lados em conflito, embora autoritária e algo totalitária – queria Salazar construir o novo português - , não pode ser considerada sequer facistóide, porquanto seu autoritarismo tem as marcas essenciais de nacionalismo com fundamento católico tradicional, estando a história a demonstrar sobejamente. Da mesma maneira, a Espanha franquista, também autoritária e com traços totalitaristas, mas, de maneira semelhante num rasgo que se pode qualificar como nacional-catolicismo, como Portugal, fez a transição do autoritarismo para a democracia e o estabelecimento de um Estado de Direito através de reconstitucionalização, que de maneira mais explícita incorpora a constitucionalização de aspectos importantes da organização sócio-econômica e das relações privadas.

Ambos os modelos tinham como traço comum um projeto de autarquia econômica e política, uma busca atávica pela autossuficiência, talvez como eco do passado imperial, com o que de certa forma mantinham significativo grau de isolacionismo, destacando-se Portugal com a incorporação de matizes de Império Colonial, tão caro ao salazarismo.

Na Península Ibérica o processo político, e, em conseqüência, o ciclo político e seu ciclo constitucional, foi diacrônico porque posterior ao dos demais países europeus.

Esta decalagem temporal, porém, carregou consigo aspectos relevantes, que se podem considerar frutos da maturação das experiências anteriores de outros países, e, além disso, ainda flutuaram no embate ideológico da guerra fria, e, pela característica de ambiguidade e hibridismo (a nosso ver própria da cultura ibérica), matizaram nos seus processos de reconstitucionalização traços mais ou menos expressivos dos dois pólos antagônicos, deixando, assim, à mostra, um caráter claramente pactício, de compromisso político na forma de pontes transacionais do antigo regime para os tempos atuais.

Nelas se identifica traços de preocupações sociais bastante pronunciadas, conceitos de bem estar bem alargados, responsabilidade estatal aumentada, busca de construção de solidariedade social mais forte, mas, ao mesmo tempo, aberturas liberais que favorecem ao capital e ao processo produtivo competitivo. A nós parece-nos que esta ambigüidade, antes de ser um defeito, é uma qualidade porque de certa forma rompe com as concepções de modelo único e unívoco, tão peculiar e claro aos tempos da guerra fria; acena, com mais sucesso ou menos sucesso, a uma via intermediária, que busca construir os consensos políticos equilibrando-se em parâmetros marcados pela diversidade que, convenhamos, é inerente tanto à condição humana, quanto às organizações sociais, invariavelmente plurais.

A construção do consenso político quanto ao constitucionalismo que daí se desenvolve, tem como eixo a conciliação dos diferentes, a identificação de pontos e interesses comuns capazes de unificar em equilíbrio estável, superando, assim, as naturais divergências e dissonâncias.

O relevante a destacar é que nestas experiências constitucionais já foram incorporados os elementos da maturação das anteriores (pertencentes ao imediato pós-guerra), e assim consolidaram a incorporação de cláusulas do estatuto dos fatores de produção, e, mais do que isto, inseriram determinações pro ativas, atribuindo ao Estado e aos Governos a imposição de desenvolverem ações concretas (através de políticas públicas e legislação infra-constitucional) em busca de objetivos econômicos e sociais estabelecidos.

A esta altura, já se pode considerar superada a formulação clássica que distinguia as matérias constitucionais substanciais ou materiais das meramente formais, esta última como que “quase impropriamente” inseridas no texto constitucional; superada exatamente porque a necessidade social e política de ordenação e disciplina jurídicas dos fatores de produção, e mais, seu direcionamento a horizonte e objetivo apontado, são pontos relevantes para o pacto político de organização da sociedade.

O reconhecimento desta importância traz consigo a consolidação da legitimação política da intervenção estatal na economia e na organização social, convertendo o Estado em protagonista partícipe do processo, ator relevante, não mais expectador passivo, cuja ação estava condicionada a contenção da conflitividade em concreto, pelo exercício da face interna da soberania – poder de polícia.

Este Estado contemporâneo muda seu perfil de maneira sensível, sendo interessante destacar que a relação entre governantes e governados, Estado e sociedade, também se modifica, como que se quebrasse uma “hierarquia” com superioridade e dominância do Estado, atribuindo-lhe identificação essencial com o interesse público de caráter monopolista – o Estado e só ele representa o interesse público – em que se confundiam os interesses do Estado como pessoa e os interesses da coletividade.

Neste perfil a distância entre as sociedades política e civil diminui, a subordinação real se converte em colaboratividade. O valor democrático e participativo que emerge no pós 2ª Guerra ganha corpo, as instâncias de participação no processo decisório se ampliam, como se alarga o conteúdo de cidadania, a qual ganha cada vez mais caráter de inclusão e participação em mais amplos campos da vida social e, ainda, caminhando no sentido de corresponsabilidade, remetendo o interesse público a responsabilidade conjunta, solidária e concreta, envolvendo: Estado, Sociedade e Governo.

Neste contexto, a visão individualista do direito em sua formulação essencial vai gradativamente perdendo a exclusividade, a visão coletiva vai progressivamente deixando de ser exceção e ganhando espaço, revelando, assim, o reconhecimento da “sociedade de massas” dos “grandes números” em que vivemos. É conseqüência disso, que mesmo as relações individuais têm reconhecido a existência de reflexos na coletividade de variada amplitude, sendo aos poucos reconhecida a função social de tudo, que tem base na inserção social o indivíduo e na articulação dos interesses individuais com os dos demais.

Temos que o “modelo novo” está em construção. Não o temos pronto e acabado de forma a permitir afirmações peremptórias do que seja certo e do que seja errado; antes se está vivendo o tempo da experiência, na sequência de acertos e erros, própria e inerente ao processo evolutivo das sociedades, que não é uma marcha regular e uniforme, ao contrário, está inçado (naturalmente) de avanços e recuos. Daí, podermos afirmar com segurança a inexistência de modelos perfeitos.

Mesmo assim, o que existe já permite especular que o redesenho da evolução constitucional experimentada aponta no sentido de valorização dos interesses sociais – considera-se a coletividade em si - , e, ainda, centraliza-se o valor humano, o que como apontamos antes, sinaliza a acentuação do caráter instrumental do Estado, que se vem convertendo em estrutura organizada à serviço da sociedade e do homem, perdendo os traços autoritários de existir em si e para si. Antes, se está desenhando uma teleologia mais humana, sem dúvida.

Doutra banda, as funções governamentais vão perdendo o caráter de intérpretes autocráticas do interesse público porque cada vez mais se lhes cobra auscultar substancialmente a sociedade, curvar-se (ainda que sutilmente) aos seus reclamos. Eis que se é fato que as “vozes das ruas” não são determinantes, é fato, também que não podem mais ser simplesmente reprimidas, silenciadas e ignoradas, impondo-se gradativamente o diálogo, mesmo que não seja direto e explícito.

O constitucionalismo mais do que nunca se vem construindo com base na elaboração de consensos razoavelmente estáveis, acerca de concepções de direito e justiça, mas, com o elemento informador (ético) projetado para a vida concreta e real. Obviamente que a dinâmica da sociedade mantém em permanente movimento estes consensos, pelo que o lapso temporal da sua duração se vem encurtando em relação a etapas históricas anteriores, gerando mutações constitucionais constantes, tanto formais, com alteração do texto em si, como informais, através de hermenêutica construtiva, elaborada a partir de seus valores fundantes que permanecem socialmente vigentes.

A visão constitucional do nosso tempo é, invariavelmente, pactícia. Suas elaborações de compromissos relativos aos consensos estabelecidos e sua formulação alteram-se como e quando se alteram estes consensos, porque, ao fim e ao cabo, é necessária esta plasticidade que permite sua sobrevivência.

Todos os governos e setores da sociedade defendem com freqüência, em todos os países, “as reformas necessárias” que quase sempre envolvem textos constitucionais; isto nada mais do que evidencia a fugacidade dos consensos e a nova relação que se estabelece entre a conjuntura e a estrutura na vida das sociedades.

É neste contexto e com este pano de fundo que o processo constitucional dos nossos dias acontece, e este panorama nos revela dois aspectos essenciais e indissociáveis, presentes das discussões e mesmo nas disputas travadas em nossos dias: direitos fundamentais e função social.

O constitucionalismo dos nossos dias, bem assim como a ordem internacional, caminham no sentido de valorização e quase-prevalência dos direitos fundamentais, centrando suas preocupações e atenções na condição e na dignidade do ser humano erigido como valor em si, ao lado disso e por isso mesmo, ganha relevo a acentuação de identificar a presença de função social em universo cada vez maior das relações sociais, cada vez menos tais coisas existem e acontecem para si, porque inegável é que todas elas, de alguma forma e em algum grau, refletem em outros.

O ponto central é que: “descobriu-se o outro e sua importância.”

De todas as maneiras, a construção normativa dos nossos dias vem revelando sensibilidade com o fator inserção e considerando as repercussões dos atos nos outros.

A função social é exemplo eloqüente disto. Com efeito, há certo traço de institucionalismo aí, mas todas as ações são conduzidas a levar o outro e as repercussões em conta. Os direitos e o exercício deles têm a condicionante da observação da função social, que nada mais é do que o reflexo nos interesses dos outros.

Não há dúvida de que a empresa tem função social, atua no interesse dos seus proprietários, visa o lucro, e isto é legítimo e desejável a todos os títulos; mas ao lado disso, também gera riqueza na forma da produção e dos salários que paga, gera serviços públicos através dos tributos que recolhe, gerando receita para o Estado.

Esta função social gera também responsabilidade social, eis que, além dos seus interesses, as atividades encerram em si responsabilidades para com a sociedade e cada vez mais se tornam imperativas as normas de preservação ambiental e de uso racional de recursos (com eliminação de desperdícios).

Este universo incorpora-se nos textos constitucionais revelando, assim, a feição nova da relação entre as sociedades política e civil, com a diminuição da distância entre elas, e mais do que isto, com a tentativa cada vez mais acentuada de relação interativa e de reciprocidade. Tal matiz relacional vem sendo incorporada disseminadamente nos textos constitucionais, tornando-os imperativos, mandamentos de natureza jurídica, com caráter de obrigatoriedade.

Mas é possível notar além da dimensão estritamente constitucional, que os imperativos dela se projetam, direcionando a normatividade infra-constitucional, estabelecendo sentido conforme para as normas inferiores e, também, funcionando como elemento reitor da hermenêutica do sistema jurídico no seu todo.

É decorrência destas concepções que a unificação sistêmica da ordem jurídica de maneira clara tem como ponto de partida a Constituição, em nosso ver, ela ganha papel maior porque, além de ser a “norma de cúpula”, que coroa o ordenamento, de ser a norma de produção de normas, passa a ser também a norma de base, que não apenas empresta a legitimação formal à normatividade, mas, bem mais, aponta o caminho da validade social, da efetividade da ordem estabelecida e em caráter de unificação.

Vai, além de organizar o poder político e estruturar o Estado, como nas suas origens, chega a orientar o legislador no seu mister quanto ao conteúdo e sentido do que edita, bem como, orientar o sentido da administração pública e estabelecer as balizas para as escolhas políticas, tanto de governo quanto de estado.

Com isso a figura do governo passa a ter limitações explícitas e implícitas nas suas ações, mas, ao lado dele, também a sociedade e os indivíduos se submetem a igual diretriz, porque o consenso justificador de tudo demanda pelo estabelecimento de um sentido único, de um horizonte determinado para o qual caminham a sociedade e o estado, os governantes e os governados.

Neste caminhar junto vemos que já se reconhecem, cada vez mais intensamente no âmbito das relações privadas, os efeitos dos imperativos de direitos fundamentais e de função social das coisas.

O destinatário destes mandamentos continua sendo o Estado, mas, igualmente ganham esta natureza os cidadãos, reconhecendo-se que não apenas o Estado e seu poder de coerção podem violar direitos humanos fundamentais, mas o particular também eventualmente o pode fazer e, portanto, é também responsável e contra ele se podem exercer tais direitos. Da mesma forma, como em tudo, se vem reconhecendo a existência de função social também nas relações privadas, sendo conduzidas a acolher estes mandamentos, como o prevê expressamente o código civil brasileiro quanto aos contratos.

Os encargos de sobrevivência da e na sociedade caminham no sentido de compartilhamento e solidariedade social, é fato que por imperativo de valores éticos, mas também, pelo reconhecimento de que somente este compartilhamento e solidariedade oferecem a necessária estabilidade aos consensos estabelecidos tornando possível a sobrevivência do sistema.

A concepção individualista e o individualismo possessivista perdem terreno exatamente porque minam, sutil ou explicitamente, a estabilidade dos consensos políticos, como o esta a demonstrar sobejamente a história. Noutras palavras, a união, como nos tempos primitivos, é que possibilita a sobrevivência da sociedade; a predação individualista caminha em sentido contrário e vai deixando de interessar ao conjunto social, e mesmo aos segmentos com papel dirigente no contexto social.        A superação (ainda transacional) do modelo tradicional de remeter à ordem jurídica infraconstitucional a disciplina e regulação de matérias não diretamente relacionadas à organização e exercício do poder político está em que a busca e a tentativa em curso consistem em construir os consensos e mantê-los estáveis, com maior duração possível no tempo, transmitindo à sociedade a sensação de segurança e confiabilidade. Dessarte, para preservar o consenso construído dá-se a inserção de seus pontos fundamentais, como cláusula do pacto político do qual a Constituição é instrumento jurídico.

Por opção, se exclui desta reflexão o apuro ou qualidade da técnica jurídica utilizada pela tal inserção, fixando a atenção no fato da inserção em si, destacando que as constituições prevêem alterações de seus textos com ressalva de intangibilidade de outros (cláusula pétreas ou núcleo duro), e que para tais alterações estabelece processo legislativo especial, mais complexo, forçosamente mais demorado, sobretudo estabelece a exigência de quorum qualificado, percebendo-se claramente que o objetivo da constitucionalização é o de preservar a estabilidade (permanência temporal) do pactuado, de certa forma dando tempo para que as relações sociais sejam adaptadas e ajustadas dentro dos modelos pactuados.

Neste particular, uma discussão que se estabelece é a da dificuldade de reajustamento das cláusulas (revisões) constitucionais diante das mutações da realidade e das imposições de adequação conjunturalmente forçadas, para que também aconteçam alterações estruturais, sempre na tentativa de manter as partes mais essenciais do pacto político.

É preciso considerar, no entanto, que a preservação ou conservação do intangível, está realmente limitada, por óbvio, enquanto efetivamente capaz de expressar a concepção de direito e de justiça socialmente vigente. Vale trazer à colação a explicação a respeito de Jorge Miranda(7)·, após assinalar que a dimensão política é ampla, indo claramente além dos estreitos limites fixados na formulação clássica antes referida, quando observa:

“Ao Direito constitucional pertence dispor sobre o poder político (que, no Estado moderno, se designa por soberania) e sobre algumas das suas manifestações essenciais;......”

Explicitando mais adiante:

“O político é global, o que respeita a todos, o que abrange e coordena a pluralidade de interesses e situações. O Direito constitucional ou político é igualmente global, o que organiza e integra a comunidade e o poder, o que contém (na frase célebre de Pelegrino Rossi) as tètes de chapitres dos vários ramos do direito, os princípios fundamentais que os informam; e contém-nos porque tais princípios revestem um significado político, identificam-se com as concepções dominantes – também elas globais – acerca da vida coletiva, consubstancial uma idéia de direito(8).”

Com efeito, não se pode ignorar que o processo social dos nossos dias tem velocidade superior a que estávamos acostumados. Vivemos o que Paul Virílio em monografia específica(9), chamou de “revolução democrática”, qual seja, a alteração vertiginosa da velocidade das coisas e dos processos, que é inerente à sociedade pós-moderna e pós-industrial, caracterizada segundo Harvey (10)como fragmentada e marcada pelo paradoxo do individualismo e da identificação em pequenos círculos ou grupos convivendo com paradigmas globais, decorrentes da sociedade da informação(11).

Nesta “nova sociedade”, em sua organização e na sua dimensão estrutural, assistimos ao surgimento de novas categorias e instituições-realidades, com características tão próprias e fortes, que ganham caráter de poder político e com as quais, ainda que já explicitamente reconhecidas, ainda não se tem disponível arsenal efetivamente adequado para lidar, pois, como assinala Touraine(12), a incorporação ao processo de categorias como as Corporações, o Mercado, o Consumidor e as Organizações Sociais específicas têm vida própria, constroem estatuto próprio e quase sempre transbordam e ultrapassam os limites das fronteiras dos Estados-nacionais, enfraquecendo a atuação das normas nacionais sobre eles, e, ainda, também dificultando a incidências de normas de Direito Internacional, constituindo, assim, um desafio permanente e de certa forma assustador.

Ao lado destes imperativos, por força de evolução das relações internacionais, da interdependência econômica (própria do processo produtivo atual), a crescente e evolutiva expansão da tutela jurídica aos direitos humanos fundamentais no nível das normas e instituições internacionais, vem promovendo a incorporação constitucional (internação compulsória) nos textos constitucionais, acentuando, assim, a dinâmica do processo das mutações constitucionais. Por isso mesmo, ganha nesta visão, importância especial os mecanismos de defesa jurídica da constituição, valendo relembrar Herman Finer, utilizado por José Afonso da Silva(13), quando pondera que:

“a previsão de um modo especial de mudança constitucional constitui o pressuposto fundamental da estabilidade e, também, de todos os mecanismos de garantia e defesa jurídica da constituição.”

Assim sendo, o quadro de problemas postos ao constitucionalismo dos nossos dias vai além do que se convencionou denominar de “constitucionalização” do direito, com a incorporação de mais do que as “têtes de chapitres” de Rossi relembrada por Miranda (antes citado), fazendo inserir no textos constitucionais disposições dos “ramos” do direito mesmo, particularmente no concernente às linhas organizacionais da economia em seus elementos capital e trabalho, além das normas relativas ao meio ambiente.

Todo o quadro pode ser entendido como decorrência da tendência de construir-se a humanização do capitalismo, que devemos entender clara e friamente, norteada por dois vetores ou referenciais, um, sem dúvida, ético, mas, embora sutilmente expresso, o segundo vetor e mais forte, é o utilitário, voltado a preservação da estabilidade temporal dos consensos políticos construídos, quase sempre a duríssimas penas, levando em conta, como orienta José Afonso da Silva(14) que:

“A formação de uma constituição democrática é processo longo, incerto e conflitivo. É submetido a jogo de interesses e tensões de toda a ordem. Nunca é linear e isento de contradições.”

A realidade e o processo que dela decorre, portanto, se apresenta em dupla face, a tensão estabelecida é exatamente entre as duas faces, duas necessidades imperiosas, a de preservar os consensos e a da constante atualização das suas expressões.

Na verdade, é forçoso convir que não se trata de algo fácil e tranqüilo, desafia a capacidade criadora da sociedade e, como toda a novidade e mudança, impõe severo grau de perplexidade e mesmo de medo, porém, não há alternativa senão enfrentá-los.

É preciso ter claro que o processo social não espera, segue seu curso no seu ritmo, cabendo ao direito ajustar-se para desempenhar o papel de ferramenta da engenharia social, tanto da organização em si mesma, quanto da manutenção do sistema organizacional da sociedade.

Daí ser pertinente repensar paradigmas tradicionais.

A tendência do constitucionalismo contemporâneo é o de constituições pactícias, fundadas em situações de compromisso político e social entre parcelas distintas das sociedades, com identidades, interesses e porções de poder próprias, que constroem em certos momentos da sua história consensos políticos mais ou menos estáveis, em torno do qual formulam pactos políticos, que são juridicamente instrumentados pelas Constituições, em conseqüência dessa origem compromissária decorre explicitação mais  ou menos grande de estipulações, alcançando alargadas parcelas da ordem econômica e social, com discriminação também mais ou menos alongada e cheia de detalhes.

Esta tendência nos força a acolher que as chamadas constituições analíticas precisam ser compreendidas mais como filhas do tempo do que como “um tipo constitucional”, e, ainda, que seu caráter pactício, com traços necessariamente ambíguos de contradição aparente, são mais características do que defeitos, valendo colacionar a observação do já citado José Afonso da Silva(15) de que:

“Raramente o processo constituinte chega ao fim sem alguma forma de transação política, quer se instaure por via revolucionária, como se deu em Portugal em 25.4.1975, quer se efetive pelo trânsito pacífico de uma ditadura para uma democracia, como ocorreu na Espanha depois da morte de Franco e no Brasil com o esgotamento do regime militar.”

Naturalmente, estes traços fundantes tornam eventualmente necessárias alterações nos textos constitucionais, dando azo a uma mentalidade “reformista” permanente; também isto é marca do tempo, da velocidade das mutações sociais aceleradas, típicas da pós-modernidade como antes se referiu. Não sem razão é que José Afonso da Silva, na sua recentíssima Teoria do Conhecimento Constitucional(14), observa, examinando a constituição que se projeta sobre objetos culturais, que:

“Por essa razão, como os objetos culturais são históricos, sua constituição sofre o impacto da evolução histórica; e, assim, se modificam sob a influência desta impacto.”

O ponto de partida para uma reflexão razoável e sensata acerca do tema é “ter humildade ante as evidências”, o que significa reconhecer o quadro dos fatos e as características do processo e, desde esta compreensão, buscar identificar o esboço dos paradigmas e referências que se vem apresentando e, então, com base neles, tentar operar “o sistema”.

É nesse contexto que se precisa compreender a constitucionalização do direito, a incorporação de institutos, princípios e regras antes infraconstitucionais às constituições, nada mais sendo do que a globalidade política das relações sociais como pontuou Jorge Miranda antes citado. Ora bem, sendo na essência o Direito Constitucional Direito Político (a França o enfoca academicamente como Direito Constitucional e Instituições Políticas), nada mais natural do que estabelecer tratamento “político” aos fatos, situações e relações as quais reconheça natureza ou reflexo “político”, isto porque passam a transcender a si mesmos, gerando reflexos coletivos, ganhando significado social relevante, e como tal, tocando aos interesses gerais e, portanto, políticos.

Exatamente pela politização (alargamento de interesses e reflexos), vivemos a mutação que estamos vivendo, da qual a constitucionalização é parte integrante indissociável, e, daí é conseqüência que não apenas a dimensão normativa, como também o surgimento de normas constitucionais e a hermenêutica do direito como um todo segue o mesmo caminho, porquanto, as Constituições, seus princípios e fundamentos, o perfil organizacional e o sentido em que aponta, assumem a condição e o papel de centro unificador do sistema jurídico, ponto de partida para todo o comércio

jurídico, como o denominou a doutrina antiga, o “modus” constitucionalmente estabelecido é que dirige a interpretação e a aplicação do direito infraconstitucional, construindo, assim, a harmonização necessária do sistema e viabilizando a concretização daquilo que é estabelecido, com o imperativo da maximização dos efeitos das normas constitucionais, como o defende Hesse(17), especialmente considerando-se que o direito infraconstitucional “desdobra” e especifica o elemento constitucional ao tratar concretamente das matérias respectivas, dando o passo seqüencial na concretização do mandamento.

O fenômeno da constitucionalização do direito conduz à aproximação entre o Estado e a Sociedade, entre governantes e governados, se pondo como ponte e meio da alteração da relação hierarquizada e rígida que se mencionou ao começo, e por isto mesmo exerce ao seu modo função social.

O constitucionalismo contemporâneo está a caminho de instrumentalizar a organização da sociedade em seu conjunto, normatizando os pontos fundamentais e basilares desta organização, reconhecendo caráter político àquelas relações que, em origem, mesmo de índole privadas, direta ou indiretamente, repercutem nas demais relações do conjunto da sociedade (cerne da função social), e, exatamente isto considerado, precisam de normas de adequação para ajustar estar repercussões inevitáveis; com isto, o político vai além da organização estrutural do estado, das normas competenciais das estruturas e da enunciação de garantias de direitos com alguns instrumentos de efetivação. Vai ao lançamento das linhas mestras da organização da sociedade, acolhe em seu meio tudo aquilo que de alguma forma e em algum grau interessa ao conjunto social, caminha na direção da corresponsabilidade entre governantes e governados na condução do processo social e na consecução dos objetivos estabelecidos na pactuação política.

Sem dúvida, é um constitucionalismo renovado no sentido de que difere substancialmente do que até então existia, mas, antes de se o considerar uma ruptura, há de se qualificá-lo como etapa ou passo no processo evolutivo, na tentativa da elaboração de uma resposta útil e consistente às necessidades e demandas postas pelos tempos atuais.

Não pode olvidar as implicações e conseqüências da vida econômica da sociedade, Não pode fossilizar modelos e proposições. Há de ser vivo e capaz de ajustar-se à evolução dos tempos, e, mesmo observando como assinala Dromi(18) que:

“Las normas sociales de La Constitucion han juridizado, el real y efetivo goce de los derechos personales a través de uma más justa disctriución de riqueza, de la regulación del derecho de propriedad; de la igualdad de posibildades culturales y materiales; uma relación equilibrada entre empleados y empleadores com posibilidad para éstos de uma efectiva intervención em el proceso de produccíon; del reconocimiento de los grupos intermédios y, em definitiva de los postulados propios del Estado de justicia social o de democracia social”

Konrad Hesse, Escritos de Direito Constitucional, Ed. saraiva,2013

José Roberto Dromi, Constitucionalismo y Humanismo, in Doutrinas Essenciais do Direito Constitucional, Coord. Clàmeerson Merlin Cleve, e Luiz Roberto Barroso, vol, I, Ed. Revista dos Tribunais, 2011, PP.135-141

Se de um lado a conformação constitucional dos nossos dias avança para a integração cooperativa e co-responsável do binômio estado/sociedade, e por isto mesmo ganha conteúdo etino substancial na normatividade, com o que carrega certa dose de idealismo, doutro lado, não pode desconsiderar o que se chama de limites de possibilidade, e considerar a real capacidade de dar efetivação ao projetado, quando o equilíbrio entre o projetado e o viável se esgarça, a conseqüência nefasta é o desprestígio da formulação constitucional que acabe por conduzir ao declínio de sua efetividade social, e pondo em questão a sua validade social real.

Como é possivel concluir a constitucionalização do direito, entendida como o alargamento do texto constitucional incorporando normas e institutos antes pertinentes ao direto infra-constitucional, resulta de um processo histórico em conseqüência da complexidade da organização da sociedade conducente ao reconhecimento de caráter político à relações jurídicas  que passam a ter repercussões no conjunto social, transcendendo, assim, aos interesses diretamente a elas ligando, alcançado universo mais amplo. Este fenômeno significa também que tais relações merecem atenção especial e integrar parte do consenso que estabelece o pacto político.

De tudo deriva que, do quadro resulta em integração maior e dialógica entre a sociedade política e a sociedade civil, com relações efetivamente mais interativas, alargando uma função social do direito em geral, e particularmente da Constituição.

[1]usando a metodologia de Nelson Saldanha na Formação do Constitucionalismo, Ed. Renovar, 2000

(2)  Geroges Bourdeau, Droit Constitutionnel ET instituitions politiques, LGDJ, Paris, 1980, p.60

[3]           produção para a comercialização, v. Wakefield

[4]           v.Thompson, Formação da Classe Operária na Inglaterra, Paz e Terra, 1993

[5]           Ed. saraiva, SP., 1991

[6]          Ed. RT, 1991

[7]           in Manual de Direito Constitucional, vol.2, Coimbra Editora Ltdª, Coimbra, 1987

[8]           op.cit.p.10

[9]           Paul Virílio, Velocidade e Política – Ed, Estação Liberdade – 1996

[10]           David Harvey, Condição Pós Moderna: Uma Pesquisa sobre a origem da mudança cultural, Ed. Loyola, SP, 1993

[11]           Giddens, Antony. As conseqüências da Modernidade, Ed. UNESP, SP., 1991 e Modernidade e Identidade Pessoal, Ed. Celta, Oeiras, 1994

[12          Alain Toureine, Crítica da Modernidade Ed. Vocez, 1994

[13]           op.cit.p.269

[14]          op.cit.p.257

[15]           op.cit.p.257

[16]          Ed. Malheiros, SP.,2014, p. 49

[17]           Konrad Hesse, Escritos de Direito Constitucional, Ed. saraiva,2013

[18]          José Roberto Dromi, Constitucionalismo y Humanismo, in Doutrinas Essenciais do Direito Constitucional, Coord. Clàmeerson Merlin Cleve, e Luiz Roberto Barroso, vol, I, Ed. Revista dos Tribunais, 2011, PP.135-141

*PUBLICADO EM A Constitucionalização do Direito.Seus Reflexos e o Acesso à