A Lei nº 17.719, de 26-11-2021, instituiu um pacotão tributário que, entre outras coisas, eleva a valor venal de imóveis para fins de tributação pelo IPTU e altera sub-repticiamente o critério de tributação pelo ISS das Sociedades Uniprofissionais – SUPs.Kiyoshi Harada 2 0e052

No que tange ao valor do IPTU de 2022, que não é objeto deste artigo, limitamo-nos a lembrar que existe uma trava de 10% para todos os imóveis. Mediante sutil alteração do art. 9º, da Lei nº 15.889/2015 fez desaparecer a trava de 15% para imóveis não residenciais. Em compensação, nos exercícios de 2022, 2023 e 20024 o valor do IPTU fica limitado à variação do Índice Nacional de Preços a Consumidor Amplo – IPCA – no exercício anterior.

Dessa forma, o IPTU de 2022 não poderá superar 10% do IPTU pago no exercício de 2021, nem ser superior à variação do IPCA do exercício anterior. Caso haja superação desses limites o contribuinte poderá apresentar impugnação administrativa, no prazo de 30 dias, a contar da data da notificação do lançamento.

Vejamos, agora, a inovação inconstitucional perpetrada pelo artigo 13 da Lei sob exame:

“Art. 13. O art. 15 da Lei nº 13.701, de 2003, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 15. Adotar-se-á regime especial de recolhimento do Imposto quando os serviços descritos nos subitens 4.01, 4.02, 4.06, 4.08, 4.11, 4.12, 4.13, 4.14, 4.16, 5.01, 7.01 (exceto paisagismo), 17.13, 17.15, 17.18 da lista do caput do art. 1º, bem como aqueles próprios de economistas, forem prestados por sociedade constituída na forma do § 1º deste artigo, observadas as faixas de receita bruta mensal previstas no § 12 deste artigo.

  • § 1º As sociedades de que trata o caput deste artigo são aquelas cujos profissionais (sócios, empregados ou não) são habilitados ao exercício da mesma atividade e prestam serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica.
  • § 2º Excluem-se do disposto no caput deste artigo as sociedades que:

...

  • § 4º Para os prestadores de serviços de que trata o caput deste artigo, o Imposto deverá ser calculado mediante a aplicação da alíquota determinada no art. 16 desta Lei sobre as importâncias estabelecidas no § 12 deste artigo.
  • § 5º As importâncias previstas neste artigo serão atualizadas na forma do disposto no art. 2º da Lei nº 13.105, de 29 de dezembro de 2000.

...

  • § 12. As faixas de receita bruta mensal são:

I - R$ 1.995,26 (mil novecentos e noventa e cinco reais e vinte e seis centavos) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, até 5 (cinco) profissionais habilitados;

II - R$ 5.000,00 (cinco mil reais) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, para o número de profissionais que superar 5 (cinco), até 10 (dez) profissionais habilitados;

III - R$ 10.000,00 (dez mil reais) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, para o número de profissionais que superar 10 (dez), até 20 (vinte) profissionais habilitados;

IV - R$ 20.000,00 (vinte mil reais) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, para o número de profissionais que superar 20 (vinte), até 30 (trinta) profissionais habilitados;

V - R$ 30.000,00 (trinta mil reais) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, para o número de profissionais que superar 30 (trinta), até 50 (cinquenta) profissionais habilitados;

VI - R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, para o número de profissionais que superar 50 (cinquenta), até 100 (cem) profissionais habilitados;

VII - R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) multiplicados pelo número de profissionais habilitados, para o número de profissionais que superar 100 (cem).

  • § 13. A apuração do imposto devido decorrerá do somatório progressivo dos produtos entre as faixas de receita bruta obtidas e a alíquota incidente sobre o serviço prestado.
  • § 14. O enquadramento da sociedade em uma das faixas descritas nos incisos do § 12 não prescinde da necessidade, para fazer jus ao regime especial de que trata este artigo, da observância de todos os requisitos a ele inerentes, inclusive a pessoalidade na prestação dos serviços, a responsabilidade ilimitada do profissional sócio ou associado, e a ausência de caráter ou estrutura empresariais da sociedade." (NR)

 Como se verifica, a Lei nº 17.719, de 26-11-2021, alterou a redação do art. 15 da Lei nº 13.701/2003 modificando a base de cálculo para a tributação das SUPs.

Conforme se depreende do seu § 4º aplica-se a alíquota determinada no art. 16, ou seja, 5% sobre as importâncias estabelecidas no § 12 deste artigo 15 em sua nova redação.

E esse § 12 estipulou como base de cálculo do imposto uma receita bruta per capita presumida que vai aumentando de acordo com o número de sócios componentes da SUP.

Dessa forma, no caso do item II, ou seja, uma sociedade com 8 profissionais, a base de cálculo do ISS será igual a R$5.000,00 x 8 = R$40.000,00. Aplicando-se a alíquota de 5% sobre essa base de cálculo resultará no ISS a pagar de R$2.000,00. Na hipótese do item VII, a base de cálculo será igual a R$60.000,00 x 100 = R$6.000.000,00 que resultará no ISS a pagar de R$300.000,00.

Esse § 12 estabeleceu uma presunção absoluta (iuris et de iruis) da receita bruta apurada de forma progressiva fundada no número de profissionais integrantes da SUP, fazendo incidir sobre ela a alíquota de 5%.

Ora, isso é uma afronta aos §§ 1º e 3º, do art. 9º do Decreto-lei nº 406/68 que prescrevem a tributação por alíquota fixa ou variável, vedando a inclusão da importância paga a título de remuneração do próprio trabalho. Transcrevemos os citados parágrafos para melhor compreensão:

“Art 9º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

  • § 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.

[...]

  • § 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.”  (Redação dada pela Lei Complementar nº 56, de 1987)

Os itens referidos no § 3º correspondem aos seguintes serviços:

  1. Médicos, inclusive análises clínicas, eletricidade médica, radioterapia, ultra-sonografia, radiologia, tomografia e congêneres;
  1. Enfermeiros, obstetras, ortópticos, fonoaudiólogos, protéticos (prótese dentária);
  1. Médicos veterinários;
  1. Contabilidade, auditoria, guarda-livros, técnicos em contabilidade e congêneres;
  2. Agentes da propriedade industrial;
  3. Advogados;
  4. Engenheiros, arquitetos, urbanistas, agrônomos;
  5. Dentistas;
  6. Economistas;
  7. Psicólogos;

O § 3º do Decreto-lei nº 406/1968 não está com a sua redação atualizada, mas, os itens aí mencionados estão abrangidos na lista de serviços anexos à Lei Complementar nº 116/2003.

A burla aos §§ 1º e 3º, do art. 9º do Decreto-lei nº 406/1968, recepcionados com status de lei complementar pelo STF (RE nº 940.769/RS e Súmula nº 663), mediante artifício legislativo de adotar uma base de cálculo aleatória com força de presunção iure et de iure é absolutamente inconstitucional.

No regime do art. 9º do Decreto-lei nº 406/1968 a receita bruta da sociedade uniprofissional é completamente irrelevante. A SUP deve pagar um valor fixo para cada sócio ou empregado integrante da sociedade.

A alteração da base de cálculo, um dos elementos do fato gerador da obrigação tributária, implica, ipso facto, alteração do tributo. O ISS de que cuida a lei sob comento não corresponde àquele ISS previsto no art. 156, inciso III da Constituição e regulado pela Lei Complementar nº 116/2003.

A alteração da base de cálculo prevista no art. 9º do Decreto-lei nº 406/1968, que continua regendo a matéria, desnaturou esse imposto de competência municipal.

Essa noção é pacífica na doutrina do Direito Tributário. Daí a suma importância de conhecer em profundidade a teoria geral do fato gerador da obrigação tributária em seus múltiplos aspectos.

A definição do fato gerador, da base de cálculo e de contribuintes de impostos previstos na Constituição está sob reserva de lei complementar, conforme art. 146, III, a da CF:

 “Art. 146. Cabe à lei complementar:

[...]

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

  1. a)definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;”

 E o art. 9º do Decreto-lei nº 406/1968, como vimos, foi recepcionado como lei complementar, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal que até sumulou a matéria

Outrossim, no entendimento da Corte Suprema nem o requisito da uniprofissionalidade é reclamado pelo Decreto-lei nº 406/1968 de aplicação cogente em âmbito nacional.

Com efeito, à época em que o STF era competente para conhecer da matéria formou-se uma remansosa jurisprudência não distinguindo a sociedade uniprofissional da sociedade pluriprofissional, para o fim de tributação pelo regime especial, conforme decisões abaixo proferidas sob a égide da Emenda nº 1/1969:

 “Imposto sobre serviços. Decreto-lei 406/68, art. 9, parágrafo 3º (redação do Decreto-lei 834/69). – Nega vigência a tais dispositivos a decisão que os considera aplicáveis tão somente a sociedades civis constituídas exclusivamente de profissionais de uma mesma categoria, pois a Lei Federal em causa não autoriza a distinção pretendida pelo fisco municipal. A hipótese de incidência contempla a sociedade civil prestadora de serviços profissionais de caráter interdisciplinar. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE n° 91.311, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 21-12-1979, p. 09667).

“Imposto sobre serviços. Sociedade civil de profissionais de qualificações diversas. Tratamento tributário favorecido (art. 9º, pars. 1º e 3º do DL 406/68, modificado pelo DL 834/69). Ausência de afronta a Lei Federal, que não autoriza a distinção pretendida pelo fisco municipal. Precedente do STF (RE 81.193, DJ 17.3.78). Recurso extraordinário não conhecido” (RE n° 88.531, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJ de 25-4-1978, p. 02627).

“Imposto sobre serviço. Sociedade civil, composta de profissionais de qualificações diversas, que prestam serviços mistos. Calculo do imposto. Ausência de afronta a Lei Federal. Recurso extraordinário não conhecido” (RE n° 81.193, Rel. Min. Bilac Pinto, DJ de 17-2-1978).

“Imposto sobre serviços. Sociedade civil. Profissionais de qualificações diversas. Benefício fiscal. Decreto-lei 406/68, art. 9º, par-3º (redação do Decreto-lei 834/69). O art. 9º, par. 3º. c/c o art. 1º do DL. 406/68 (redação do DL 834/69). Assegura a tributação do ISS, na forma fixa, quer as sociedades uniprofissionais, quer as pluriprofissionais. Precedentes do STF. Recurso extraordinário não conhecido” (RE n° 96.475, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 4-6-1982, p. 05463).

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, está retomando a antiga jurisprudência do STF, conforme se verifica das ementas abaixo:

“TRIBUTÁRIO. ISS. ART. 9º, §§ 1º e 3º, DO DECRETO LEI Nº 406/68. SOCIEDADE PLURIPROFISSIONAL DE ARQUITETOS E ENGENHEIROS. INEXISTÊNCIA DE CARÁTER EMPRESARIAL. RECOLHIMENTO DO ISS SOBRE ALÍQUOTA FIXA. POSSIBILIDADE. CONCLUSÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM COM BASE EM FATOS E PROVAS DOS AUTOS. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal a quo ao analisar os fatos e as provas dos autos, concluiu que a parte agravada não apresenta natureza de organização empresarial, permitindo o recolhimento do ISS sobre alíquota fixa. A alteração destas conclusões demandaria, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório constante dos autos, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto na Súmula 7/STJ. Precedente. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no REsp nº 1486568 / RS, Rel. Min. Sérgio Kukina, Dje de 13-11-2014).

“TRIBUTÁRIO. ISS. ARTIGO 9º, PARÁGS. 1º E 3º, DL 406/68. SOCIEDADE SIMPLES PLURIPROFISSIONAL DE ADVOGADOS E CONTADORES. INEXISTÊNCIA DE CARÁTER EMPRESARIAL. SERVIÇO PRESTADO DE FORMA PESSOAL. RECOLHIMENTO DO ISS SOBRE ALÍQUOTA FIXA. POSSIBILIDADE. 1. O que define uma sociedade como empresária ou simples é o seu objeto social. No caso de sociedades formadas por profissionais intelectuais cujo objeto social é a exploração da respectiva profissão intelectual dos seus sócios, são, em regra, sociedade simples, uma vez que nelas faltarão o requisito da organização dos fatores de produção, elemento próprio da sociedade empresária: doutrina do Professor ANDRÉ LUIZ SANTA CRUZ RAMOS (Direito Empresarial Esquematizado, São Paulo, Método, 2014). 2. Ambas as Turmas que compõem a Primeira Seção entendem que o benefício da alíquota fixa do ISS somente é devido às sociedades uni ou pluriprofissionais que prestam serviço em caráter personalíssimo sem intuito empresarial. Precedentes. 3. No caso, tratando-se de sociedade em que o objeto social é a prestação de serviços técnicos de consultoria e de assessoria, prestados diretamente pelos sócios, em que o profissional responde pessoalmente pelos serviços prestados, faz jus ao recolhimento do ISS na forma do art. 9º, parágs. 1º e 3º do DL 406/1968. 4. Recurso Especial provido para reconhecer o direito da recorrente ao recolhimento do ISS com base no art. 9º., parágs. 1º e 3º. do DL 406/1968. Invertido os ônus sucumbenciais.” (REsp nº 1512652/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 30-3-2015).

TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ISS. ART. 9o., PARÁGS. 1o. E 3o., DL 406/68. EXISTÊNCIA DE CARÁTER EMPRESARIAL. IMPOSSIBILIDADE DE RECOLHIMENTO DO ISS SOBRE ALÍQUOTA FIXA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

  1. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento firmado por ambas as Turmas que compõem a 1a. Seção é que o benefício da alíquota fixa do ISS somente é devido às sociedades uni ou pluriprofissional que prestam serviço em caráter personalíssimo sem intuito empresarial. Precedentes: REsp. 1.512.652/RS, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 30.3.2015; AgRg no REsp.

1.486.568/RS, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, DJe 13.11.2014; EDcl no AREsp. 425.635/PE, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 16.12.2013.

  1. No caso dos autos, muito embora se trate de uma sociedade simples que tem por objeto social a prestação de serviços de auditoria contábil e demais serviços inerentes à profissão de contador, não se pode deixar de observar os documentos trazidos pelo agravante, colacionados do sítio eletrônico da empresa (fls. 571), em que a KPMG afirma ser uma rede global de firmas-membro que empregam 174.000 profissionais por todo o mundo. Dessa forma, não há como afastar a existência do requisito da organização dos fatores de produção, com intuito empresarial.
  2. Agravo Interno da empresa desprovido. (AgInt no AgInt no AREsp 923.685/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 21-03-2017, DJe 31-03-2017).

Como se verifica, esses Venerandos Acórdãos não distinguem as sociedades uniprofissionais das pluriprofissionais para fazerem jus ao regime especial de tributação, somente vedando em ambas as hipóteses o caráter empresarial das sociedades de pessoas que provocaria a descaracterização do trabalho sob forma pessoal.

Concluindo, essa Lei nº 17.719/2021 sob exame agrava a inconstitucionalidade preexistente (exigência de uniprofissionalidade que a lei nacional não permite), ao invadir esfera de atribuição exclusiva da lei complementar na definição da base de cálculo de impostos previstos na Constituição.

SP, 28-2-2022.