Fonte: Opinião - Folha de SP 15/6/18

Angela Gandra feeafA argumentação em defesa da descriminalização do aborto oferece frágil e desproporcional nexo causal.

Tive a oportunidade de participar da recente audiência pública promovida na Câmara dos Deputados sobre a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 422, na qualidade de advogada e professora de filosofia do direito, desejando defender não só o direito à vida, de forma razoável e humana, mas o que juridicamente se entende por Estado democrático de Direito, para demonstrar o quanto o acolhimento do pedido em questão significaria, de fato, um aborto jurídico. Em primeiro lugar, chama a atenção que um partido vocacionado a discutir questões de políticas públicas entre seus iguais recorra ao Poder Judiciário para que legisle positivamente em matéria de extrema relevância representativa, delegando sua competência e responsabilidade e violando o pluralismo político. A separação e a independência dos Poderes, das quais depende também sua harmonia, são uma das características mais fortes de um Estado democrático de Direito. Outro ponto jurídico crítico é evocar descumprimento de preceito fundamental, alegando a não recepção dos artigos 124/126 do Código Penal no ano em que celebramos 30 anos de Constituição. Por outro lado, como bem lembrado pela Advocacia-Geral da União, “o aborto não foi diretamente disciplinado pela Carta Magna, não sendo possível inferir do seu texto a existência de suposto direito constitucional ao aborto”, não tendo sido ainda objeto da reforma legislativa do Código Penal promovida em 1984.

De fato, a completude sistêmica de nosso ordenamento jurídico é consistente e coerente: a Constituição não estabelece condições à inviolabilidade do direito à vida; o Código Penal simplesmente despenaliza o aborto em duas situações, sem descriminalizá-lo; o Código Civil protege o nascituro ainda que a personalidade civil e seu registro só possam efetuar-se pósnascimento, como é óbvio; e o Pacto de São José da Costa Rica, do qual somos signatários, reconhece o direito desde a concepção. Ainda que recorrêssemos a uma interpretação pragmática, tergiversando conceitos, uma hermenêutica correta, englobando sentido literal, propósito da lei, sistema, valores e história, elimina qualquer possibilidade de êxito da ação, a não ser que a vontade de nossa Corte fosse mais política do que jurídica, o que não ocorre. Vejamos ainda o recurso à ficção jurídica. Nem a ciência é unânime em afirmar o início da vida, ainda que filosoficamente não haja dúvida de que o ser se dá "in continuum", não se podendo atribuir outra natureza ao nascituro geneticamente já definido. Em sua obra "Legal Fictions", o jusfilósofo Lon Fuller manifesta sua preocupação sobre ajustes jurídicos com relação à realidade: “mudar os fatos para que possam adequar-se à teoria”. Nesse sentido, não cabe ao Judiciário determinar de forma arbitrária que a vida começa aos três meses da gravidez, principalmente em se tratando de um direito fundamental, minando os alicerces do sistema.

Se a vida —primeiro direito e não sujeito a debate— deixa de ser um direito absoluto, todos os demais se relativizam. Pertencer à espécie humana sem ser considerado humano é um limite à própria dignidade humana. Quanto ao conteúdo constitucional tergiversado, já que perfeitamente aplicável ao nascituro, como, por exemplo, a proibição de tortura e tratamento degradante —sendo hoje prática a anestesia no feto para que não sofra ao morrer—, escolhemos somente o que se refere à paternidade responsável e ao planejamento familiar (artigo 226, § 7) e a tentativa de que faça parte dele a possibilidade de eliminar a gravidez não desejada. Planejar vem antes, não depois, não se podendo incluir o aborto como parte do plano, em nome de direito reprodutivo. A responsabilidade supõe arcar com as consequências dos atos — ser "res sponsus"—, o que é condição do exercício da liberdade, que, por sua vez, não é oferecida ao feto, um ser dependente da mãe, mas não parte dela, como um dente. Se perguntássemos a qualquer ser humano se desejaria ter sido abortado, seria praticamente impossível obter uma resposta afirmativa. A proteção à maternidade invocada deveria também supor uma proteção à relação cujo polo oposto é a filiação, e não a interrupção desta. Ainda que a partir de um realismo sociológico buscássemos soluções através do direito, estas deveriam ser pelo menos positivas. Não cabe legalizar um crime por que o sistema carcerário é lamentável; eliminar o efeito, proliferando a causa, porque há abusos sexuais; evocar a igualdade para garantir o direito ao aborto para as mulheres indígenas etc. A extensa argumentação em defesa da descriminalização oferece um frágil e desproporcional nexo causal. Como solução positiva, a decisão recente de nossa Suprema Corte, permitindo que as mulheres grávidas possam permanecer em prisão domiciliar, serve como parâmetro, dentro do âmbito que lhes cabe, respeitando o direito e encontrando um caminho realmente humano, sem onerar a mulher com as inevitáveis consequências nocivas ocasionadas pela prática abortiva. Fuller afirmava que o direito está para fortalecer as relações sociais, e sua forma nos liberta, oferecendo segurança jurídica, pauta sobre a qual os cidadãos podem promover o desenvolvimento social equilibrado. Se o pedido proposto fosse acatado a partir do desrespeito da forma do direito, não só negaria aos brasileiros o seu primeiro direito, mas fragilizaria as importantes e decisivas relações que o ser humano, como tal, pode realizar através do sexo, da paternidade e da maternidade, todas fundamentais para a harmonia em sociedade.