De longa data o nosso país vive um regime de pandemia legislativa.Kiyoshi Harada 2 0e052

Lembro-me da década de 80, quando o Prof. Ruy Barbosa Nogueira no final da Mesa de Semanal de Debates escolhia um tema para ser abordado nos debates da semana próxima indicando a legislação respectiva. Só que no dia dos debates a legislação sobre o tema a ser discutido havia sofrido uma alteração profunda.

As três entidades políticas componentes da Federação vêm despejando diariamente novos diplomas legais, muitos deles, sem o caráter de generalidade e de abstração, adentrando para o campo do casuísmo para favorecer grupos ou pessoas determinadas.

A fúria legislativa é de tal ordem que nem sempre respeitam a hierarquia vertical das leis, e o cidadão brasileiro vive em total insegurança jurídica, por absoluta ausência de previsibilidade que resulta de leis estáveis e duradouras.

E mais, esse amontoado de leis não são cumpridas, a começar pelo Estado que as edita. Há quem associe o número de diplomas legais ao nível de corrupção. Quanto maior a corrupção, maior é a quantidade de instrumentos normativos.

Para agravar esse quadro de desobediência à lei surgiu, de algum tempo para cá, o fenômeno do ativismo judicial, inovando a ordem legal em busca do suposto consequencialíssimo jurídico.

Por isso, a imprevisibilidade para o cidadão é quase total.

De outra banda, políticos, magistrados, juristas e de resto toda a sociedade falam muito na necessidade de respeito à Constituição, que ao contrário da legislação ordinária deveria ser perene e duradoura.

Porém, desde a sua promulgação em 5-10-1988 a chamada Constituição cidadã já sofreu 109 emendas. Ressalvado o núcleo pertinente a preceitos protegidos por cláusula pétrea, tudo foi mexido e remexido, nada, ou quase nada, restando do perfil original da Constituição de 1988.

Agora, nem cláusulas pétreas a fúria do poder reformador está respeitando. Há, pelo menos, duas propostas de reforma tributária — as Pecs 45/2019 e 110/2019 — que quebram o princípio federativo ao retirar dos Estados e dos Municípios os seus impostos de maior arrecadação, o ICMS e o ISS, respectivamente.

Esse poder reformador vem se valendo do expediente de inserir Ato das Dispositivas Constitucionais Transitórios — ADCT — na Constituição promulgada há mais de 33 anos.

Logo o número de ADCTs irá superar o número de preceitos originários da Constituição de 1988.

Contudo, é certo que a sociedade se caracteriza pelo dinamismo, demandando regulamentação de fatos novos não previstos no ordenamento jurídico.

Mas, é exatamente por causa desse dinamismo social que a Constituição não deve regular situações casuísticas. Ela deve se limitar, sobretudo, à organização do Estado, à organização dos poderes, à elaboração de normas do orçamento anual, à proclamação de princípios gerais de direito e enumeração de direitos individuais e sociais, deixando tudo o mais para a legislação infraconstitucional. Não é o que vem acontecendo na Constituição detalhista de 1988.

Realmente, todo o direito de família, caracterizado pelo seu dinamismo conhecido, foi constitucionalizado pelo legislador constituinte de 1988, que regulou também e de forma minudente os direitos de presos e das presas.

Ressalte-se, outrossim, que há uma tendência de constitucionalizar preceitos legais descumpridos, como se a alteração da posição hierárquica da lei pudesse induzir a todos ao seu cumprimento. Isso só tende a desmoralizar a Carta Magna, porque aquele preceito legal constitucionalizado continuará sendo descumprido.

Apenas a título exemplificativo citemos um caso que diz respeito à instituição de incentivos fiscais, que vêm sangrando os cofres públicos em cerca de R$ 300 bilhões anuais, que repercutem na carga tributária daqueles que estão fora dos benefícios fiscais. É sabido que, quando poucos deixam de pagar, muitos pagam mais!

Estamos nos referindo ao art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF — que veda a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária do qual decorra renúncia de receita SEM prévia demonstração pelo proponente da medida de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária e que não afetará as metas de resultados fiscais previstos na LDO. Além disso, o citado art. 14 da LRF exige a prévia demonstração de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois exercícios seguintes.

Aludido dispositivo e vários outros da LRF não vêm sendo cumpridos. Aliás, na prática, essa Lei transformou-se na Lei de Irresponsabilidade Fiscal. Exemplo expressivo disso é a costumeira alteração das metas fiscais, com efeito retroativo, no apagar das luzes do exercício em curso.

Com o propósito de reforçar o cumprimento daquele importante art. 14 da LRF, o legislador constituinte derivado aprovou a Emenda Constitucional nº 95, de 15-12-2016, enxertando o art. 113 do ADCT com a seguinte redação:

 “Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

 Só que ao contrário do disposto no art. 14 da LRF, o art. 113 do ADCT limita-se a exigir o impacto orçamentário e financeiro, sem menção a exercícios financeiros.

Ora, esse tipo de norma, além de não induzir a sua observância, só se presta a gerar dúvidas ao aplicador. A exigência de demonstração do impacto econômico-financeiro nos dois exercícios subsequentes à instituição do incentivo, como previsto no art. 14 da LRF foi recepcionado pelo art. 113 do ADCT?

Na ooverdade há um excesso de normas, tanto no nível da legislação infraconstitucional, quanto no nível da Constituição, desnorteando os operadores do direito em geral, que não conseguem dar conta de tantas alterações legislativas que se sucedem com incrível rapidez.

O Congresso Nacional, também, também, já perdeu o controle das leis em vigor, apesar da Lei Complementar 95, de 26-2-1988, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, exigir a menção expressa dos dispositivos legais revogados.

Por isso, dizia o saudoso Roberto Campos que a “Constituição Brasileira é uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero”, além de um “hino à preguiça e uma coleção de anedotas”.

Realmente, os problemas que decorrem do descumprimento de normas não podem ser resolvidos pela edição de novo instrumento normativo, mas com vontade política, esforço e muito trabalho para atuar de forma intensiva e dentro da legalidade, a fim de propiciar a existência de uma sociedade harmônica e ordeira.

Inserir na Constituição, por exemplo, o princípio da razoável duração do processo de nada adiantará se os operadores do direito não arregaçarem as mangas para botar a mão no processo. O princípio não é auto operativo, por isso tudo continua como dantes.

 

SP, 6-12-2021.