Desde o advento da Constituição Federal de 1988, em 5 de outubro, 106 emendas já foram incorporadas na Magna Carta, sendo que seis delas são de revisão e outras noventa e nove são de natureza ordinária, isto é, emendas que obedecem ao processo legislativo previsto no art. 60 da Constituição.
Quase tudo foi mexido e remexido pelo Poder Reformador, só restando o núcleo protegido por cláusulas pétreas que, também, vem sendo alterado por decisões da Corte Suprema.
É simplesmente fantástico o número de propostas de emendas constitucionais – PECs - em discussão no Congresso Nacional: 1.500 propostas das mais variadas matérias.
A impressão que se tem é que a Constituição Brasileira é a que mais alterações vêm sofrendo, só sendo superada pela Constituição Mexicana que data de 5-2-1917, com cerca de 300 emendas.
A maioria dessas PECs é de natureza casuística, ora para atender interesses de determinados grupos ou categorias aboletados no poder ou próximos dele, ora para tentar neutralizar os males decorrentes de descumprimento sistemático de preceitos constitucionais e legais. Nessa última categoria insere-se a PEC proposta pelo deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) que prevê a demissão de servidores públicos e o corte na concessão de benefícios tributários se houver risco de violação da chamada regra de ouro das finanças publicas. Convencionou-se chamar, equivocadamente, de regra de ouro a disposição do inciso III do art. 167 da CF que veda a realização de operação de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ou seja, as operações de crédito só podem ser realizadas para custear despesas de capital, notadamente, as de investimentos destinadas a gerar aumento da capacidade produtiva. Na verdade, a regra de ouro das finanças públicas é a representada pelo princípio do equilíbrio orçamentário que estava no art. 66 da Constituição de 1967 e que não foi mantido pela Emenda 1/69, nem pela Constituição vigente.
A justificativa do parlamentar é a de que uma vez violada essa “regra de ouro”, o governante estaria sujeito ao processo de impeachment por crime de responsabilidade [1], como se as demais dez hipóteses previstas no art. 167 da CF continuamente afrontadas no curso da execução orçamentária não caracterizassem o crime de responsabilidade [2]. Daí, a PEC sob comento prevendo a suspensão de pagamento de abono salarial e cortes nas jornadas de trabalho de servidores, com redução de vencimentos, além da suspensão dos benefícios fiscais e tributários. A PEC em questão prevê, ainda, a demissão de servidores estáveis na hipótese de o governo não conseguir cumprir essa “regra de ouro” por três anos consecutivos. O previdente deputado entende que neste cenário é provável a quebra da “regra de ouro”, porque o governo atual está projetando rombos bilionários até o exercício de 1921. Só para o exercício de 2019 a previsão orçamentária é a de aprovar um crédito suplementar de R$ 260 bilhões para executar as despesas que ficariam travadas por conta dessa “regra de ouro”.
Só que a política de remuneração dos servidores, bem como a sua demissão a Constituição Federal em sua redação original já fixou as diretrizes em seu art. 169 e parágrafos. E nos termos do § 4º do art. 169 da CF a demissão de servidores estável só poderá ocorrer observados os requisitos aí previstos e unicamente nas hipóteses de as despesas com pessoal ativo e inativo das entidades políticas ultrapassarem os limites que vieram ser fixados pela lei complementar, e o art. 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal já definiu esses limites para a União, Estados e Municípios. Quanto aos incentivos fiscais é preciso respeitar aqueles outorgados por tempo certo.
Enfim, essa proposta de Emenda Constitucional visa remediar os nefastos resultados financeiros do Estado decorrentes, de um lado, de desvios de dinheiro público e de nomeação excessiva de servidores públicos, notadamente os comissionados, e de outro lado, de concessão de incentivos fiscais de toda ordem e natureza e de forma casuística, descumprindo o art. 151 [3] da Constituição Federal e o art. 14 [4] da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Outros exemplos poderiam se citados. Para combater a ineficiência no serviço público a EC nº 19/98 introduziu o princípio da eficiência ao lado de outros princípios consignados no art. 37 da CF. Só que nada mudou no serviço público servindo, contudo, para produzir doutrinárias de altíssima qualidade sobre esse novel princípio, além de provocar seminários e simpósios de direito para debater e estudar esse princípio que na área tributária já está se sobrepondo ao principio da legalidade. Outro exemplo é a introdução do princípio da razoável duração do processo pela EC nº 45/04 para “resolver” o problema da morosidade da Justiça. Só que poucos se dispõem a por a mão na massa para fazer o processo andar. O resultado disso é que os direitos e garantias fundamentais continuam sendo ignorados, bem como a impunidade vem se alastrando de forma perigosa. Os processos julgados com celeridade são os que foram contemplados pelo critério seletivo e que na maioria dos casos nenhum, ou quase nenhum interesse tem para a sociedade em geral [5]. Mas, a exemplo do outro, esse princípio vem rendendo debates e estudos em Congressos e Simpósios nacionais e internacionais.
Enfim, além de elaboração de leis ordinárias para remediar situações indesejáveis decorrentes de descumprimento de leis, agora, temos emendas constitucionais para remover ou minorar os efeitos negativos decorrentes de descumprimento sistemático das normas constitucionais. Como as normas são elaboradas para serem descumpridas instaura-se um círculo vicioso que lembra a figura do cachorro girando em seu torno tentando morder o seu próprio rabo. Será que essa PEC sob comento, quando aprovada, dará resultado? Tenho a impressão que nem o autor da proposta, parlamentar experiente que é, espera qualquer resultado!
Enquanto os detentores do poder político do Estado não se habituarem a agir conforme os textos legais e constitucionais vigentes, as emendas não terão fim. Cada governante quer a “sua” Constituição e quando ela começa a incomodar seus incontidos desígnios infracionais lança mão de emendas.
SP, 16-6-18.
* Acadêmico perpétuo da Academia Paulista de Letras Jurídicas ocupando a cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira).
[1] O nobre deputado quer esvaziar preventivamente a deflagração dos efeitos das normas jurídicas violadas.
[2] Apesar da denominação dada trata-se, na verdade, de infração político-administrativa, pelo que o acusado é julgado pelo órgão do Poder Legislativo, ainda que presidida a sessão de julgamento pelo Presidente do STF.
[3] O art. 151 da CF veda concessão de incentivos fiscais que não sejam aqueles destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País. Sabemos que infinidades de incentivos fiscais que somam perda de arrecadação anual de R$ 245 bilhões são outorgados em sua maioria por critérios políticos.
[4] O art. 14 da LRF só permite a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício fiscal mediante prévia estimativa do impacto orçamentário no exercício da concessão e nos dois subseqüentes e mediante atendimento de uma das duas condições seguintes: I – demonstração pelo proponente de que a renúncia fiscal foi considerada na estimativa de receita orçamentária e que não irá comprometer as metas de resultados fiscais fixadas na LDO; ou II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período referido, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo novo.
[5] Por exemplo, qual o interesse para a sociedade em julgar repentina e celeremente a questão da condução coercitiva do investigado que tem previsão no art. 260 do CPP desde a sua aprovação e sanção? Não será pior para o investigado se a autoridade policial requerer a prisão temporária ou a prisão preventiva?