Fonte: Revista Consultor Jurídico, 28 de novembro de 2022
Durante a campanha eleitoral, em artigos, palestras e através do Instagram, manifestei minha absoluta convicção de que a possibilidade de uma ruptura institucional seria zero multiplicado por zero dividido por zero, vale dizer, nenhuma.
Em face de declarações em defesa da democracia contra golpe de entidades que vislumbraram tal possibilidade, pelo Conselho Superior de Direito da Fecomercio de São Paulo, veiculamos declaração à parte, reiterando nossa posição de que tal risco inexiste.
O referido conselho, que presido há 33 anos, é composto de 50 juristas de expressão nacional, entre os quais o próprio relator da Constituinte, o ex-senador Bernardo Cabral. Seis juristas ostentam a comenda ministro José Geraldo Rodrigues Alckmin outorgada pela instituição, a saber: o ministro do Supremo Tribunal Federal José Dias Toffoli; os ministros aposentados do STF Nelson Jobim e Marco Aurélio de Mello; os ex-presidentes do Tribunal de Justiça de São Paulo José Renato Nalini e Ivan Sartori e o ex-presidente da República Michel Temer.
Passadas as eleições e apesar das multidões em frente aos quarteis pedindo intervenção militar, continuo esclarecendo que o risco continua sendo zero, convicção esta que advém não só dos 33 anos que leciono na Escola de Comando e Estado Maior do Exército e nas conferências na Escola Superior de Guerra, mas das poucas conversas que, nestes últimos quatro anos, mantive com o presidente da República, Jair Bolsonaro, uma delas depois das eleições.
Afirmo, com tranquilidade, que não há nenhuma possibilidade de ruptura institucional, devendo os resultados das eleições ser respeitados.
Como velho professor, todavia, não poderia, neste artigo, deixar de trazer aos meus alunos, leitores e seguidores a maneira como interpreto a Constituição Brasileira, e em que ponto reside minha divergência doutrinária com os atuais eminentes ministros da Suprema Corte, tendo já ministrado palestras, participado de bancas de doutoramento e escrito livros com muitos deles, sobre gozar da amizade, o que muito me honra, com grande parte dos ilustres julgadores.
Por estar em férias, li a primeira condenação do presidente eleito pelo então juiz Sergio Moro, em sentença de mais de 200 páginas, lastreada exclusivamente em provas.
Tal sentença foi confirmada, com aumento da pena, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em câmara constituída por 3trêsreconhecidos magistrados e juristas, tendo o STF, por maioria de seus ministros, confirmado a condenação.
Todas as decisões foram tomadas com base em provas não elididas pelos combativos advogados do ex-presidente.
O ministro Edson Fachin, anos depois, descobriu uma incompetência de foro — tese alegada em todas as instâncias e não acolhida nos julgamentos anteriores — e anulou, monocraticamente, todas as decisões, decisão confirmada posteriormente pelo Plenário. Por ser o exame preliminar de incompetência de foro matéria de elementar complexidade, causou surpresa na comunidade jurídica o fato de não ter sido percebida pelos eminentes julgadores em todas as instâncias.
Posteriormente, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, foi declarada a suspeição do juiz Sergio Moro. Coordenei à época do julgamento pelo referido magistrado, o livro A importância do direito da defesa, editado pelo Conselho Federal da OAB, ao lado de Marcos da Costa, então presidente da seccional de São Paulo, e com a colaboração do presidente e ex-presidentes do Conselho Federal, além de ilustres penalistas do país. Vi um tratamento melhor, naquele julgamento ao Ministério Público, mas não vi qualquer cerceamento de defesa ao ex-presidente Lula. Ao contrário, houve até a autorização de oitiva de um número maior de testemunhas do que o permitido pelo Código de Processo Penal.
Por fim, o ministro Ricardo Lewandowski proibiu a utilização, nos novos julgamentos, das provas constantes nos processos de condenação do ex-presidente Lula, provas estas nunca elididas. Uma juíza de Brasília chegou a, em um dos processos, absolver o ex-presidente Lula e alguns outros réus, dizendo ter indícios para a condenação, mas, proibida que estava de utilizar as provas de corrupção pelo STF, era obrigada a absolvê-los.
O resgate do ex-presidente Lula para concorrer às eleições levou a um embate eleitoral entre dois candidatos carismáticos, em que a nação se dividia, tendo o resultado demonstrado o surpreendente equilíbrio com a diferença aproximada de menos de 2% dos votos entre o vencedor, de 60 milhões contra 58 milhões do atual presidente.
Desta forma, dos em torno de 150 milhões de eleitores brasileiros, 60 milhões votaram em Lula, 58 milhões em Bolsonaro, 7 milhões anularam ou votaram em branco e 25 milhões não compareceram para votar. Tivemos, pois, 60 milhões votando em Lula e 90 milhões não votando nele.
É de se considerar, por outro lado, que, durante a campanha, a Suprema Corte censurou redes de comunicação social tradicionais e redes sociais privadas conservadoras no segundo turno, atingindo diretamente a candidatura do presidente Bolsonaro.
A destacada ministra e eminente professora universitária Carmen Lúcia chegou a dizer que a censura era proibida pela Constituição, mas a admitia para casos excepcionais sem que a exceção constasse da Lei Maior.
Alguns dos ministros, na linha de entendimento de que seguidores de Bolsonaro seriam contrários à Lei Suprema, para justificar sua intervenção no processo eleitoral, lastrearam-se no conhecido constitucionalista alemão Karl Loewenstein, que admitiu uma intervenção maior dos tribunais constitucionais além da lei suprema para preservação da democracia.
Em seu famoso livro Teoria da Constituição, baseado em palestras que proferiu na Universidade de Chicago em 1956, tal posicionamento hermenêutico não fica expresso de forma clara como citado em seus estudos anteriores, ainda no período da 2ª Guerra Mundial e da reconstrução europeia.
É de se lembrar que a 1ª Guerra Mundial foi uma guerra de realocação de poder geográfico no continente europeu, enquanto a 2ª Guerra foi entre países democráticos e governos ditatoriais. A própria formação acadêmica germânica sofria de uma influência que pretendia a reabilitação da grandeza do povo através da força, no período.
Muito embora o notável livro de Loewenstein — utilizei-o muito com Celso Bastos nos Comentários que fizemos da Constituição — seja um marco no estudo do Direito Constitucional, reproduz muito mais uma realidade europeia visto que no fim da década de 40 e na década de 50, os governos são de sistemas parlamentares, em que a integração dos poderes é maior e a separação menos nítida, ao ponto de os tribunais constitucionais serem formados fora do Poder Judiciário de cada país.
Sendo uma justiça de preservação da Constituição com viés político, como uma espécie de Comissão de Constituição e Justiça fora do Parlamento, a ação de tais tribunais, não poucas vezes, é mais política que jurídica. Por exemplo, na França, o nome do tribunal é Conselho Constitucional da França.
Trazer, pois, dos sistemas parlamentares de governo modelos para sistemas presidenciais, sem levar em consideração as razões do sistema admitido e a cultura do povo, importa sempre em um risco de inadaptação.
Como a Constituinte de 1988 adotou o sistema presidencial e a rigorosa separação dos três poderes, com exaustiva definição de competências, ouso divergir dos eminentes ministros em sua atuação, desde o resgate da candidatura de Lula até a imposição de censura, como um velho professor universitário de Direito desde o distante ano de 1964.
Como, todavia, as minhas posições doutrinárias valem apenas para reflexões acadêmicas, entendo que, na democracia brasileira, tem que se aceitar a orientação do Pretório Excelso para que a transição presidencial ocorra em ambiente no qual o diálogo volte a prevalecer e o Tribunal Superior Eleitoral e o STF colaborem com o mínimo de intervenção para que os poderes voltem a ser harmônicos e independentes.
Consideraria também relevante que, nas audiências públicas do Senado Federal para discussão desta linha consequencialista da Suprema Corte de maior flexibilidade exegética, os ministros convidados comparecessem, com o que a distensão constante, em uma democracia de diálogo, substituiria à permanente tensão entre poderes.
Tenho dito em palestras que, como Martin Luther King tinha o sonho de ver brancos e negros fraternalmente construindo, em igualdade, a nação americana, o meu sonho é que volte a Suprema Corte, com os seus ínclitos ministros a ser aquela que se tornou, no passado, a instituição mais respeitada do país, com o que os poderes voltariam a ser harmônicos e independentes, como desejaram os Constituintes de 88.