(O Estado de S.Paulo)

A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal – CDH, resolveu realizar audiência pública para debater o projeto de lei do Estatuto das Famílias – PLS 470/2013.

Essa decisão é muito importante, porque um Projeto de lei que pretende revogar toda a regulamentação sobre Direito de Família que consta do Código Civil, diploma legal que foi objeto de profundos estudos nas duas casas do Congresso Nacional, não poderia tramitar no Senado sem debates.

Por sinal, foi um pedido rejeição da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões – ao PLS 470/2013 que contribuiu para a realização de audiência pública, que, antes, não estava prevista.

A audiência pública é um instrumento de participação popular importantíssimo – tão importante que previsto pela própria Constituição – de que se vale o Congresso Nacional no processo de elaboração das leis mais sérias e graves, daquelas que, se aprovadas, trarão grandes impactos na vida dos brasileiros.

Na audiência pública, entidades da sociedade civil (associações, ongs, etc.), autoridades, especialistas e a população em geral são convidadas a manifestar sua opinião, suas dúvidas e preocupações sobre certo projeto de lei com potencial de afetar diretamente a vida dos cidadãos, transmitir informações e argumentos relevantes aos nossos representantes que devem ser levados em conta no momento destes votarem, aprovando ou não, a conversão daquele projeto de lei em lei efetiva.

Trazer o projeto de lei do Estatuto das Famílias para audiência pública é uma postura elogiável da CDH do Senado.

A bem da verdade, a tramitação do Estatuto das Famílias não poderia se dar de outra forma, tamanho é o impacto que esse projeto de lei traria para o povo brasileiro se fosse aprovado. Impacto brutal e desastroso, diga-se, desde logo, sem eufemismos.

O Estatuto das Famílias é um verdadeiro “zumbi” legislativo. Retornou à vida no Senado Federal, na forma do PLS 470/13, depois de ter sido paralisado na Câmara dos Deputados quando tramitava como PL 2.285/2007. Não por acaso, esse projeto de lei praticamente morreu na Câmara dos Deputados justamente depois de ser submetido ao escrutínio civil e popular da audiência pública convocada pela Comissão de Cidadania e Justiça à época, da qual participei.

Pressentindo a inevitável derrota do projeto de lei na Câmara dos Deputados, os principais patrocinadores do Estatuto das Famílias, num movimento estratégico, resolveram reapresentá-lo uma segunda vez, mas agora no Senado Federal. A esperança deles é de que o Estatuto das Famílias tenha melhores chances no Senado. Trata-se de uma estratégia legislativa censurável, para dizer o mínimo, mas que está longe de ser o maior problema desse projeto de lei.

O mal maior do Estatuto das Famílias está em sua pretensão de (i) revogar todo o Livro de Direito de Família do Código Civil, que, apesar de algumas atualizações necessárias que podem ser realizadas tranquilamente no próprio Código Civil, regulou de maneira extremamente competente e exemplar as relações jurídicas familiares no Brasil; e (ii) impor, no lugar, uma verdadeira subversão, perversa em todos os sentidos, das bases sociais e jurídicas em que se assenta o Direito de Família no Brasil.

Não há exagero em descrever o Estatuto das Famílias como a completa subversão das bases sociais e jurídicas do nosso Direito de Família. O Estatuto das Famílias de fato valoriza e protege tudo o que o Direito e a sociedade repudiam; e repudia tudo o que o Direito e a sociedade valorizam e protegem. Isto é subversão.

Quer o leitor um exemplo dessa subversão? Ofereço o maior e mais claro de todos.

O Estatuto das Famílias institucionaliza a poligamia no Brasil.

E, apesar de seus patrocinadores jurarem o contrário por razões estratégicas, o faz de forma aberta e grosseira. Com a palavra, o artigo 14 do PLS 470/13:

Art. 14. As pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção da família.

Parágrafo único: A pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais.

A expressão atenuante “relacionamento familiar paralelo” não engana a ninguém e não muda a realidade: o que essa proposta legislativa pretende é atribuir às relações extramatrimoniais, ou seja, aos amantes, efeitos jurídicos do casamento pessoais, como direito à pensão alimentícia, e indenizatórios pelo fim da relação de mancebia. Ainda que o Estatuto, por astúcia, preveja a invalidade do duplo casamento, aparentemente proibindo-o, o que faz na realidade é legalizá-lo e reconhecê-lo, ao prever que todas as ditas relações familiares paralelas deveriam gerar efeitos jurídicos. E tal se aplica às relações duplas, triplas, quádruplas, quantas forem.

Isso tem nome: poligamia.

Poligamia que a sociedade brasileira rejeita e rejeitou em toda a sua história, e que a Constituição Federal, lei maior e fundamento da ordem jurídica brasileira, também rejeita, mas que o Estatuto das Famílias pretende consagrar e proteger.

As proposições nefastas do Estatuto das Famílias não se esgotam na institucionalização da poligamia.

A própria proposta de revogar o Livro de Direito de Família do Código Civil e de regular as relações familiares numa lei completamente à parte do restante do Direito Civil, como se Direito de Família não tivesse nada a ver com Direito Civil, já é absurda em si mesma.

E há outras inúmeras disposições absolutamente repudiáveis no Estatuto das Famílias.

Certamente voltarei ao tema nas próximas semanas.

Mas já faço um aviso e um apelo ao leitor: apesar da soma formidável de absurdos, o Estatuto das Famílias conta com intenso e incansável trabalho para sua aprovação, que não pode ser subestimado e que deve ser enfrentado. Aqui proclamamos os leitores a se manifestarem junto ao Senado Federal, afinal fomos todos nós que elegemos nossos Senadores, que devem prestar contas aos eleitores de seus atos.

Precisamos nos manter alertas e ativos na luta contra esse espúrio “zumbi” legislativo para o enterrarmos de uma vez por todas.