(O Estado de São Paulo)
O padre italiano Antonio Puca, da Ordem de São Camilo, acaba de publicar oportuno livro – As Santas Casas de Misericórdia: de Florença a São Paulo, a epopeia da caridade.
O cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, na apresentação do trabalho, ressalta que a história da assistência médica ligada à Igreja começa nos primeiros séculos e chega até o século 21. O que surpreendeu o padre Puca foi a fundação da Santa Casa de Misericórdia de Olinda e, logo depois, em outras cidades, como Santos, Salvador e São Paulo – e isso ocorreu poucos anos depois do descobrimento e da chegada dos portugueses ao Brasil.
Na busca das origens da Santa Casa, o autor volta para Florença e Lisboa, onde encontra as raízes da Irmandade da Misericórdia, fundada por São Pedro Mártir em 1244, e da Santa Casa fundada pela rainha Leonor de Lencastre em 1498, em Lisboa.
A pesquisa atinge várias áreas de investigação. Florença, Lisboa, Washington e São Paulo são as etapas do trabalho, que é um testemunho desta obra meritória que permanece no tempo.
Chamam a atenção as dificuldades financeiras cíclicas por que passaram e passam todas elas.
Misericórdia, lembra o autor, deriva do latim miseris cor dare. E os miseráveis são todas as pessoas que, de um modo ou de outro, se encontram em necessidade. As mais recentes pesquisas histórico-científicas identificam as raízes das Misericórdias nas primeiras Societas romanas, que tinham inspiração religiosa na manifestação civil.
As causas principais da crise relatada coincidem: maiores responsabilidades e menores aportes financeiros.
A Misericórdia de Lisboa (1851) passou por grave crise financeira e diversas medidas foram implementadas: em síntese, “maior rigor no controle das despesas e na fiscalização das obras; prestação de contas ao governo”.
“Simultaneamente, em face da aplicação das leis de desamortização, a Misericórdia de Lisboa viu-se obrigada a vender uma parte significativa dos bens imobiliários e a aplicar o produto da venda em títulos do tesouro”.
No caso das Santas Casas de Misericórdia no Brasil “nem todas as realidades atingem o mesmo padrão, mesmo por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), do qual depende grande parte dos recursos para sua gestão. Compreende-se facilmente que as do interior de um Estado ou as da periferia são penalizadas ainda mais em relação às existentes nos grandes centros urbanos”. “Considerando-se que mais de 50% da população é assistida pelas Santas Casas de Misericórdia e por outros organismos filantrópicos com um gasto muito contido em relação a outras instituições públicas, vê-se bem como é necessária uma reforma na direção da subsidiariedade”.
Como síntese final, o padre Puca cita um dado impressionante: “As milhares de Santas Casas de Misericórdia brasileira somam dois terços dos leitos hospitalares no País. Ao menos 60% de seus serviços são dedicados aos pobres. Elas também têm servido para o ensino médico, comumente sendo solicitadas por escolas médicas. Vitimas de uma falta de interesse crônica para com a saúde pública, elas sobrevivem graças aos esforços daqueles que trabalham nelas e ao trabalho voluntário de membros das comunidades locais. Seus conselhos administrativos tentam conciliar as diferenças entre o alto custo da medicina moderna e os pagamentos simbólicos frequentemente atrasados, buscando renda atendendo clientes privados e economizando com sua própria produção de alguns remédios, alimentos, caixões e outros bens. Muitas vezes o presidente deve lutar incansavelmente com as autoridades para conseguir o pagamento de impostos devido a seus hospitais. As Misericórdias costumavam receber doações, sendo incluídas em testamentos privados, uma tradição que praticamente desapareceu com a instituição de planos de saúde oficiais e privados”.
E conclui “as admiráveis Misericórdias estão entre as mais dedicadas, extensas, perseverantes e duráveis instituições humanas”.
O autor sugere algumas digressões como a diferença entre caridade e filantropia, a relação entre caridade e justiça. O livro proporciona pistas para investigações mais acuradas.
O importante papel dos hospitais filantrópicos, responsáveis por mais da metade dos atendimentos realizados pelo SUS, sinaliza as urgentes e inadiáveis providências que precisam ser tomadas pelo poder público.
Entre as medidas, incluem-se programa de renegociação das dívidas das filantrópicas (a exemplo de medidas que o governo federal já adotou para outros setores) e reposição parcial ou total das perdas acumuladas em anos anteriores; agilização do sistema de repasse de pagamentos (hoje há demora de meses entre o atendimento e a chegada do dinheiro público); revisão e adequação da tabela do SUS à realidade dos custos do atendimento médico-hospitalar; e oferta de linhas de financiamento favorecidas para os hospitais filantrópicos (novamente a exemplo do que é feito para outros setores), como a recente aprovação pelo Congresso de medida provisória que prorroga o vencimento de dívidas de clubes esportivos.
É cada vez mais urgente a revisão da política pública de saúde, para evitar a repetição da crise que o Conselho Federal de Medicina, manifestando a indignação de 400 mil médicos, chamou de “mais um episódio dramático na história da saúde pública brasileira”. Crise que pode prejudicar milhões de pessoas por ano, incluindo aquelas que viajam de rincões remotos em busca de tratamento adequado oferecido pelos hospitais filantrópicos. Crise que também pode se agravar com a pressão dos milhares de pacientes que estão abandonando os planos de saúde complementar, por questão de custo e queda de qualidade no atendimento particular, e engrossam as filas às portas estreitas da rede pública de saúde.