(O Estado de S. Paulo)
A respeito da policrise da República brasileira muito se tem escrito, lido e comentado. Um dos raros consensos nacionais é o de que a situação atingiu gravidade singularíssima. Sem precedentes no passado recente. O panorama é sombrio e a ausência de perspectivas contamina a Nação, perplexa diante dos desmandos e da falta de horizonte. Esta página trouxe inúmeras leituras, nenhuma delas suficiente a arredar os temores generalizados e consistentes. O que está reservado ao brasileiro no futuro próximo?
Os reflexos da tibieza na economia, da queda de arrecadação, do desemprego e da estagnação a evidenciar violenta recessão ainda não chegaram ao Judiciário. Mas chegarão. Talvez não já, mas prevê-se a intensificação das demandas geradas por fratura das relações familiares, com a nefasta sequela decorrente do desfazimento de lares. O desemprego produz separações, entrega ao vício do álcool, consumo de substâncias psicoativas, desentendimentos e outras misérias do convívio humano.
A inadimplência representa compromissos rompidos e a tentativa de seu cumprimento por ordem judicial. Ações de cobrança, falências, despejos, reintegrações, tudo pode se intensificar após um período relativamente prolongado de economia anêmica.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) é o maior da Federação e do planeta. Responsável por um quarto de todos os processos em curso por esta República, seguramente sentirá os efeitos retardados do desastre nacional.
Como reagir ao vendaval?
O mais audacioso projeto implementado em 2015 foi a Digitalização 100%. Até o fim deste ano, todas as unidades judiciárias paulistas estarão prontas a receber peticionamento eletrônico e a adotar o processo sem papel. Mudança drástica, porque uma comunidade formada sob a cultura analógica teve de se adaptar à concepção virtual, e isso representa mutação traumática. Mais de 40 mil funcionários são capacitados para assumir os desafios da Justiça informatizada. Assim que treinados, quase todos percebem as vantagens dessa tramitação, que evitará deslocamentos físicos de volumes densos, recheados de documentos que não farão falta à solução dos problemas postos à apreciação de um juiz.
Talvez se consiga, como subproduto considerável, a desejável concisão das peças dos processos, hoje avolumadas pela facilidade com que se copiam doutrina, legislação e jurisprudência, tornando cada vez mais sofisticados e complexos os pleitos que poderiam ser solucionados de maneira mais objetiva, fossem sintetizados com sensatez.
O Cartório do Futuro já é uma experiência exitosa, pois elimina o patrimonialismo ainda reinante em grande parte do universo judicial, com a reserva de funcionários para atuar com um só chefe e para um só magistrado. A estratégia adotada no Fórum João Mendes evidencia as vantagens de uma verdadeira oficina de trabalho, em que se padronizam praxes e se organiza uma produção racional sob a orientação de um só juiz corregedor. Por rodízio, todos os demais nove juízes também exercerão tais atribuições. Mas, enquanto delas estiverem dispensados, poderão se dedicar intensamente à decisão, o que multiplica a produtividade da unidade.
O teletrabalho, antes chamado home office, também se mostrou viável. Tem-se de pensar que São Paulo é uma insensatez de 22 milhões de almas que se locomovem horas para chegar ao local de trabalho e devem fazer o caminho de volta ao fim da jornada. Permitir que o funcionário atue em sua casa – ou em qualquer outro lugar –, sem a necessidade de se dirigir ao posto funcional, desnecessária a ritualização de roupas adequadas, com evidente economia de tempo, mostrou-se muito satisfatório. Quem almejou uma produtividade de 30% se surpreendeu com o índice de 66% e até mais. Prova de que a confiança e a responsabilidade ainda constituem molas propulsoras do convívio no ambiente de trabalho e de que nem sempre aquilo que se fazia como algo imutável é imune a modificações ousadas.
O funcionalismo, o maior patrimônio do equipamento estatal chamado Justiça, foi chamado a colaborar e respondeu.
Deu o seu voto de confiança a uma gestão que não mentiu, não prometeu benefícios inviáveis numa fase de contenção, mas procurou provê-lo de esperança e ofereceu um clima saudável de resgate da autoestima. Foi criada a Escola Judicial do Servidor, velha reivindicação, que já está a funcionar. Solucionou-se o problema dos agentes a prestar serviços como escreventes, evitando as inúmeras ações por desvio de função. Flexibilizou-se a implementação de benefícios já aprovados em legislação que precisa ser cumprida.
Incentivou-se a disseminação de boas práticas, implementou-se o Projeto Arte e Cultura no TJ, realizaram-se inúmeros concursos e a presidência esteve disponível a qualquer tempo para um diálogo frutífero e imprescindível.
Sem prejuízo, estimulou-se a participação da sociedade na rediscussão do projeto de Justiça para o futuro, formado o Conselho Consultivo Interinstitucional, e prosseguiu-se na divulgação e conscientização de que negociar, conciliar, mediar e qualquer outra fórmula viável de composição consensual de controvérsias é melhor do que se submeter à álea de um sistema de Justiça complexo, sofisticado, de quatro instâncias e mais de 50 recursos.
O que falar, então, da audiência de custódia, que funciona graças ao esforço de muita gente, inclusive do setor extrajudicial, que nada tem que ver com a tutela da liberdade e colabora, espontaneamente, para uma iniciativa que deu certo?
A Justiça de São Paulo, a despeito das adversidades, procura cumprir o seu papel de tornar a vida mais fácil, de desatar nós e de solucionar controvérsias. E aguarda melhores dias para intensificar a implementação de novas ousadias, pois parar e não inovar é o mesmo que perecer.