A invasão da Ucrânia pelos russos têm provocado, no chamado “Ocidente”, um coro geral de reprovação daqueles que consideram condenável a iniciativa de Puttin. Sucede que este assunto não pode ser discutido de maneira leviana. Para o abordar com propriedade, é preciso mergulhar na História Russa. E esta revelará que “Russia” e “Ucrânia” se interligam a tal ponto, que é impossível falar de qualquer dos dois países de maneira isolada...
Foi pela Ucrânia que teve início a evangelização dos eslavos, levada a cabo por São Cirilo de Alexandria e São Metódio. O alfabeto “Cirílico” retém o nome daquele missionário. E, no decorrer da História, existiu a chamada “Rússia de Kiev.” Tão importante era a capital da Ucrânia para a Rússia que uma parte das cerimônias da coroação do Czar era realizada em Moscou, e a outra em Kiev.
Um outro ponto que os observadores ocidentais têm deixado de lado, é o relativo à concepção do poder político que informou a criação, o desenvolvimento e a consolidação do Império Russo: --- Trata-se da concepção própria do Dominato Romano, instituído por Diocleciano. Esta concepção via no Imperador o “Dominus et Deus”, ou, por outras palavras, era uma concepção autocrática do poder político. Levada para Bizâncio por Constantino, a concepção autocrática do poder politico regeu toda a vida do Império Romano do Oriente, até 1453. E --- e isto é o que importa nestes comentários --- a concepção autocrática do poder presidiu o Czarismo e toda a vida do Império Russo. Para resumir, a Rússia nunca foi, não é e nem será “democrática”...
O outro ponto a ser examinado é a tradição russa da centralização política. Ivan IV, que passou à História como “Ivan o Terrível”, foi o primeiro soberano a ostentar o título de “Czar.” E o Czarismo sempre foi centralizador ao extremo. Seja dito que a centralização era uma exigência até da soberania nacional, sempre ameaçada pelos tártaros. Esta centralização foi posta à prova em 1613. Depois de cruentas lutas civis, os boiardos (senhores feudais) perceberam que o poder tinha que estar nas mãos de uma só pessoa. Esta pessoa foi o Príncipe Miguel Romanov, fundador da dinastia cujos membros foram assassinados pelos comunistas em 1918.
Autocracia e centralização política construíram o mais vasto império da História. E após o acidente histórico do Comunismo, o Império, prestes a entrar em colapso, viu criada uma “Federação” alheia às tradições nacionais, e tão artificial quanto a “Federação” implantada no Brasil pela República, depois de 1889...
O Comunismo foi, repito, um reles acidente histórico, que não logrou extinguir a alma nacional russa. Esta é cristã, é ortodoxa, é mística e profundamente messiânica. A religião exsurge do próprio título do soberano: “Czar Ortodoxo e Autócrata de todas as Rússias.” Aqui, o “todas as Rússias” não é um mero artifício retórico; é ao revés uma profissão de fé religiosa e geopolítica.
Há um motivo histórico para a importância da Igreja Ortodoxa, em se tratando da Rússia: Ela foi a responsável pela sobrevivência do sentimento nacional, e pois a responsável pela unidade política, finda a dominação mongólica...
Passo ao que importa neste momento. Wladimir Putin não é um dirigente produzido pela mentira chamada “sufrágio universal e direto.” Bem ao contrário, ele é fruto da rigorosa seleção que havia no bojo da polícia política, ao tempo do Comunismo. É um homem culto, e preparado para o mando. É claro que deixou para trás --- se é que as teve um dia --- quaisquer convicções marxistas. É um nacionalista russo que teve o bom senso de se aproximar da Igreja Ortodoxa, perseguida pelo comunismo, internacionalista e ateu...
Preocupações com a segurança da Russia guiaram a sua conduta, em todos os assuntos relacionados com a Ucrânia. Nada mais pretende do que restaurar um estado de coisas que sempre existiu. É pueril que os “estadistas” do Ocidente fiquem a questionar a legitimidade da atuação russa na Ucrânia. Podem esses senhores ter certeza de uma coisa: Putin não leu a Carta das Nações Unidas. Mas tenho a certeza de que leu --- e entendeu --- o testamento político de Pedro “O Grande.” E também leu --- e entendeu --- o relato da conquista de Kazan por Ivan “O Terrivel”!...
*Acacio Vaz de Lima Filho é Livre-Docente em Direito Civil, área de História do Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, e Acadêmico Perpétuo da Academia Paulista de Letras Jurídicas, titular da Cadeira de nº 60, patrono, Luiz Antonio da Gama e Silva