fonte: Espaço Aberto - O Estado de São Paulo 1/5/2018 -
Em Direito, denominamos racionalidade jurídica (legal reasoning) o método de raciocínio e argumentação utilizada pelos operadores de Direito e, principalmente, pelas Cortes para aplicar os princípios e regras aos casos concretos, tendo em conta o sistema jurídico como um todo. Entre vitórias, derrotas, expectativas e esperança na consolidação do Estado Democrático de Direito instituído pelo preâmbulo da nossa Constituição federal, poderíamos perguntar-nos com a mesma perplexidade do filósofo Alasdair Macyntire, em sua obra: “Justiça? De quem? Qual a racionalidade?”.
Celebramos recentemente uma vitória cidadã, ainda que edificada sob controvérsias hermenêuticas, comprovadas pela decisão equilibrada no limite da balança de nosso Supremo Tribunal Federal. O fato é que o povo teve de sair às ruas para exigir um mínimo de consistência na aplicação do Direito diante de uma Corte que, mesmo sendo extremamente competente, encontra-se não só ferida em sua colegialidade, mas fragilizada em sua atividade interpretativa, frustrando as expectativas de oferecer à Nação uma segurança jurídica linear.
Muitos têm falado sobre uma reforma do Judiciário ou em simplesmente exigir a efetiva independência dos Poderes, fortalecendo o Legislativo e limitando a atividade judicial à sua função de julgar e aplicar corretamente a lei como princípio de ordem e do justo político. Nesse sentido, gostaria de evocar uma solução mais viável para o momento, trazendo à reflexão um procedimento jurídico que facilita a manutenção saudável do sistema, que, em última análise, visa a orientar a conduta humana por meio de regras seguras - “boas cercas fazem bons vizinhos”, como afirmava Robert Frost - que possam promover o desenvolvimento livre, justo e harmônico da sociedade. O denominado legal reasoning aborda, em geral, uma sequência de passos reflexivos - questão, fatos, regras aplicáveis, costumes, valores, a análise propriamente dita e a conclusão ou decisão - que um juiz deveria seguir para decidir uma controvérsia. Dessa forma podemos avaliar melhor o ativismo judicial reinante em nosso país.
Em tese, ao receber uma questão - que deve ser efetivamente jurídica, já que poderia tratar-se de políticas públicas ou de problema moral que ultrapassa o espectro do Direito, preservando-se a liberdade pessoal -, o juiz deve ater-se somente aos fetos relevantes para o Direito, passando por eles, como afirma o jusfilósofo norte-americano Lon Fuller, não como uma máquina, mas, sim, como um etnólogo, não como um estatístico; as provas também devem secundar as exigências do Direito para poderem sustentar efetivamente os argumentos racionais. A comprovação factual juridicamente bem conduzida facilita a visualização das regras aplicáveis ao caso e sua correta interpretação. Como afirma o professor supracitado: “As formas libertam” (forms liberate), pois conduzem à correta compreensão do direito devido.
Encontrando as regras aplicáveis, cabe interpretá-las em seu real sentido, conjugando a literalidade que veicula o propósito, dentro do sistema doutrinário e jurisprudencial, para oferecer a moldura que orientará a determinatio em cada caso.
Os costumes servirão de luz, não como pressão da opinião pública, mas por incorporarem princípios cidadãos que os recomendam como verdadeiros e justos, merecendo presumidamente a sanção da lei, não somente pela repetitividade, mas pela vontade/e idoneidade do objeto. Nesse sentido, não se identificam com o mero fato social de cunho sociológico, mas com uma reta e reiterada tradição generalizada no tempo e no espaço. Os valores, por sua vez, aproximam-se dá razoabilidade do homem comum - e não de uma visão pessoal que poderia ameaçar a segurança jurídica - e sua apreciação, ainda que despojada da covardia que Fuller denomina hobbesiana, porter medo das mudanças necessárias que acompanham os tempos, não deveria frustrar as expectativas éticas comunitárias. De certa forma, costumes e valores fundamentam também o teor histórico e narrativo da interpretação.
A análise da questão levará em conta os passos anteriores, imbuídos de estudo e reflexão, unificando-os no exercício de julgar propriamente dito.
A reta interpretação da doutrina existente - o que supõe também a formação acumulada - ilumina a análise rumo à conclusão. Por sua vez, a articulação da questão deve buscar a clareza necessária - tão desejado ingrediente da juridicidade! - para concluir o processo com a decisão, que dessa forma respeita o sistema jurídico vigente e a sociedade como um todo, pela segurança jurídica prometida pelo que se entende por Estado Democrático de Direito, instituído por nossa Constituição.
Para tal, em nossa racionalidade jurídica, talvez coubessem alguns expurgos: não oferecer questões políticas próprias das Casas Legislativas ou preferências morais à apreciação jurídica; exigir dos juízes que julguem de acordo com o Direito, interpretando-o jurídica e não politicamente, para oferecer aos cidadãos não caixinhas de surpresas, mas efetiva segurança jurídica, e principalmente que auxiliem, a partir do cumprimento estrito de sua função, a que cada Poder exercite seu próprio papel, leve de bagagem, ou seja, desprendido de interesses particulares, que necessariamente acabam por conduzir à corrupção institucional, para que possam prestar, como lhes cabe, o devido serviço à Nação.
A aplicação dessa racionalidade que respeita o Direito como tal é uma garantia do cidadão. Como comenta Lon Fuller sobre a conhecida afirmação do juiz Oliver Wendell Holmes, “o Direito é a profecia do que as Cortes farão de fato, e nada mais pretensioso”, acrescentando que ,“se essa ordem é respeitada, das Cortes não nos deveríamos proteger!”.
* Doutora em Filosofia em Direito (UFRGS). Sócia da Advocacia Gandra Martins. É membro da Academia Brasileira de Filosofia e da Academia Paulista de Letras Jurídicas.