Fonte: Correio Braziliense - Caderno Opinião - 21/8/19
Bastou o início da nova legislatura para que se evidenciassem, mais uma vez, certas distorções do universo político brasileiro. A falta de efetivo compromisso com causas, ideologias e programas torna muito frágeis as alianças entre partidos, que sucumbem aos caprichos de interesses pessoais e de grupos, e implode a sinergia até mesmo no âmbito interno de cada agremiação. Assim, assiste-se com frequência a episódios surrealistas.
Os acontecimentos atuais deixam muito claro que a democracia brasileira, apesar de amadurecida e institucionalmente consolidada, necessita urgentemente de uma reforma política. O último Código Eleitoral é remanescente de 1965. A cada eleição que se realiza, são estabelecidas normas específicas como a que buscou impedir coligações estaduais conflitantes com as nacionais. Isso mobiliza tempo precioso do Congresso, do Poder Executivo e da Justiça Eleitoral, além de dar margem à improvisação e ao casuísmo. O Brasil precisa de um Código Eleitoral definitivo, que incorpore avanços compatíveis com a nova realidade nacional.
Um desses avanços é o voto distrital misto, ou seja, metade dós parlamentares seria eleita no universo de seus respectivos distritos eleitorais—ampliando-se sobremaneira a representatividade do voto—e os outros 50% continuariam sendo eleitos em eleições proporcionais. Outra medida desejável é a fidelidade partidária. O partido é o berço do exercício político. Deve ter um programa, baseado em princípios ideológicos e filosóficos. No entanto, as 'régias atuais permitem que princípios fisiológicos determinem o compromisso — ou melhor, o descompromisso — partidário. Troca-se de legenda na esteira de interesses sub-reptícios.
Os partidos políticos funcionam como legendas de aluguel, abrem as portas para os arrecadadores de votos, meros candidatos iscas para robustecer a bancada partidária no Poder Legislativo. A fidelidade partidária eliminaria uma série de vícios no processo político, incluindo a fragilidade do compromisso partidário, que se reflete, muitas vezes, no caráter volátil das alianças e coligações. Outra grande preocupação se refere ao número de partidos políticos que cresce desordenadamente. Por outro lado, para dar mais dinamismo ao processo legislativo, seria importante reduzir o mandato dos senadores, dos atuais oito, para quatro anos. Além disso, os candidatos a vices (República, governos estaduais e municipais) e suplentes de senador também deveriam ser eleitos pelo voto direto.
No que tange aos vereadores, é imprescindível ordenar as proporções das câmaras municipais ao porte de cada cidade. Assim, municípios de até 600 mil eleitores teriam de 9 a 21 vereadores; de 601 mil a 3 milhões, de 22 a 41; acima de 3 milhões de eleitores, de 42 a 55 vereadores. Obviamente, a emenda relativa a este item seria um princípio constitucional, ao qual deveria adequar-se, posteriormente, à Lei Orgânica de cada um dos municípios. É importante lembrar que, até a Carta de 1988, havia a Lei Orgânica dos Municípios, genérica e pouco congruente com a realidade de numerosas cidades. A Lei Orgânica de cada cidade foi, na sequência da promulgação da Carta Magna de 88, um verdadeiro processo constituinte em nível municipal.
Outro ponto a ser revisado seria a proibição da reeleição dos parlamentares após dois mandatos. A reforma política deveria também contemplai a normalização definitiva dos financiamentos das campanhas, com o estabelecimento de recursos orçamentários para cada partido, proporcionalmente à sua representatividade, e regulamentação mais criteriosa e rígida com a imposição de limites às contribuições. Há que se impor controles rígidos dos valores entregues e respectivas prestações de contas. Não é possível que a cada eleição tenhamos de assistir a mazelas em razão de problemas relacionados com financiamento das campanhas eleitorais. A atual proposta de aumentar o Fundo Partidário é inadmissível é deve ser rejeitada de imediato.
Há outras medidas, voltadas à valorização do voto, que deveriam ser implementadas: rever a proporcionalidade da representação dos estados na Câmara dos Deputados. No dimensionamento atual das bancadas, o voto dos eleitores de estados mais populosos vale menos do que os de menor índice demográfico. Finalmente, a reforma política deveria extinguir a obrigatoriedade do voto. Afinal, escolher os governantes e parlamentares não é um dever, mas sim um direito intrínseco à cidadania, prerrogativa que somente uma democracia forte, moderna e participativa pode assegurar à sociedade brasileira.
Ruy Altenfelder - Presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e do Conselho Superior de Estudos Avançados (Consea/Fiesp) e membro do Conselho de Ética da Presidência da República